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domingo, 25 de julho de 2010

Saiu na Ilustríssima da Folha de S.Paulo

André Setaro fala sobre a crítica de cinema

EUCLIDES SANTOS MENDES
DE SÃO PAULO

Três perguntas para o crítico e professor de comunicação na Universidade Federal da Bahia André Setaro -que tem textos reunidos na trilogia "Escritos Sobre Cinema" (Edufba/Azougue, org. Carlos Ribeiro, 656 págs., R$ 65).
O que é a crítica de cinema?

A rigor, a função da crítica de cinema é ajudar o espectador a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento da sua linguagem, de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante e o que não é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva "racionalização", quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios. É necessário que o aspirante a crítico construa primeiro um repertório para depois se aventurar na análise fílmica. A crítica é a arte da paciência.
O cinema é uma arte em crise?
A linguagem cinematográfica, a partir de David Wark Griffith -diretor de "O Nascimento de uma Nação" (1915), filme que instaurou a montagem narrativa com eficiência dramática-, foi sendo elaborada e enriquecida durante seis décadas do século passado. Os realizadores inventores de fórmulas, que contribuíram na evolução da linguagem (Orson Welles, Hitchcock, Godard, tantos!), se esgotaram em meados da década de 1960, quando houve uma espécie de exaustão e a invenção foi substituída por estilos pessoais. O cinema é uma arte em crise porque todos os bons filmes já foram feitos, como gostava de dizer o cineasta americano Peter Bogdanovich.

Como caracterizaria o cinema brasileiro contemporâneo?
Ao depender da captação de recursos, perdeu muito a sua independência criativa. Se houve evolução na técnica (a qualidade pode ser comparada a dos filmes estrangeiros), não se percebe, atualmente, a emergência estética. O chamado cinema de invenção (Ozualdo Candeias, Mojica, Sganzerla...) não tem mais espaço no panorama atual. A produção mais independente se encontra concentrada nos filmes feitos em digital por uma nova geração (como os apresentados na Mostra Aurora de Tiradentes neste ano).

domingo, 18 de julho de 2010

Revista Filme/Cultura rediviva

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Notícia de uma morte anunciada


Reproduzido do blog do autor, 13/7/2010; título e intertítulos do OI.
Só falta marcar a data da morte, aos 119 anos, do melhor jornal em que já trabalhei na vida, um símbolo da imprensa brasileira do século passado.
Ainda esta semana, Nelson Tanure, o atual dono da marca, vai anunciar o dia em que deixará de circular o Jornal do Brasil, um dos mais antigos, revolucionários e respeitados veículos já publicados no país. Fosse uma pessoa, era o caso de dizer como antigamente: trata-se de uma perda irreparável. Para lembrar dele, restará apenas uma versão eletrônica.
O necrológio já havia sido muito bem escrito pelo colega Carlos Brickmann, semana passada, em sua coluna no Observatório da Imprensa. Agora, quem anunciou oficialmente o desenlace, em sua edição desta terça-feira [13/7], por ironia do destino, foi justamente O Globo, outrora principal concorrente e algoz do Jornal do Brasil.
Prestígio
Trabalhei por três temporadas no JB, primeiro como seu correspondente na Europa, na década de 1970, e depois na sucursal paulista, nos anos 80/90.
Para se ter uma idéia da força e do prestígio deste jornal, quando fui contratado pela grande jornalista Dorrit Harazim para ser seu correspondente na então Alemanha Ocidental, ela me alertou para a responsabilidade: "Você vai ter que se comportar como se fosse um embaixador do JB na Europa".
No elegante restaurante da diretoria, onde fui convidado a almoçar para ser apresentado aos meus novos chefes, os homens estavam todos de terno e havia tantos copos e talheres à minha frente que não sabia nem por onde começar – ainda mais, depois da advertência da Dorrit, a chefe dos correspondentes internacionais do jornal.
De roupa esporte, me senti um verdadeiro caipira sentado à mesa da rainha da Inglaterra. Meses depois, participaria com Dorrit de uma reunião dos correspondentes do JB na Europa, um timaço com mais de dez jornalistas na época, convocada para acontecer num grande hotel de Paris –vejam que chique…
Craques
O JB deste tempo ainda reunia a seleção brasileira da imprensa. Não havia limite de despesas para se fazer uma boa reportagem. O grande sonho de todo jornalista era trabalhar lá um dia. Tinha vários craques em cada editoria. Ouso afirmar que nunca mais se montou uma redação daquela qualidade em jornal algum.
Não vou me meter a elencar os nomes, como fez o robusto Carlinhos em sua coluna, "O circo da notícia", porque eram tantas as estrelas que não vou me lembrar de todos os mestres com quem convivi. Basta apenas lembrar, por exemplo, que trabalhei ao lado de Walter Fontoura, Elio Gaspari, Ancelmo Góis, Zuenir Ventura, Ricardo Setti, Célia Chaim, Renato Machado, Augusto Nunes e Evandro Teixeira, entre tantos outros cobras do jornalismo.
O que mais me fascinava no Jornal do Brasil era o ameno ambiente de trabalho e a absoluta independência editorial. Para se ter uma idéia, a dona era uma condessa, a condessa Pereira Carneiro, e o diretor, um lorde, o seu genro Nascimento Brito.
Nunca os vi de perto e jamais recebi uma "ordem da diretoria" para fazer ou deixar de fazer determinada matéria. Mais tarde, as coisas mudariam, e o jornal entraria numa crise financeira e editorial que o levaria à decadência, até ser arrendado para o empresário Nelson Tanure, em 2001. Começava ali a sua agonia. Em 2009, Tanure levou à morte outro grande jornal, a Gazeta Mercantil.
Tempos difíceis
Teria mil histórias a contar sobre o meu trabalho no JB, que não cabem num blog, mas podem ser encontradas no meu livro de memórias "Do Golpe ao Planalto – Uma vida de repórter", da Companhia das Letras.
Ao ver a notícia do falecimento esta manhã, fiquei muito triste. Foi como se estivessem apagando da paisagem e levando embora para sempre o lugar onde passei a melhor fase da minha já longa vida profissional.
Restavam lá trabalhando apenas 60 jornalistas, a circulação vinha minguando abaixo dos 20 mil exemplares, o jornal já tinha encolhido de tamanho e o passivo chegava a 100 milhões de reais. Alguns dos seus antigos craques hoje ainda podem ser encontrados nas páginas de O Globo. A imprensa brasileira deveria decretar três dias de luto.
***
Atualização: meu colega Guilherme Barros, que entrevistou Nelson Tanure, informa aqui mesmo no iG que o enterro do Jornal do Brasil impresso já tem data marcada: 1º de setembro. Na verdade, o velho JB já morreu faz tempo. Só faltava mesmo enterrar.

RICARDO KOTSCHO no Observatório da Imprensa

sábado, 10 de julho de 2010

Vittorio De Sica

Se tivesse realizado apenas Ladrões de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948), obra-prima do neorrealismo italiano, Vittorio De Sica já teria o seu lugar de honra na história do cinema. Há um documentário sobre este grande homem e cineasta: Vittorio De Sica, minha vida, meus amores, de Mario Canale. Apresento aqui o seu trailer.


Ediane do Monte 'in progress'


Foi um sucesso a abertura quinta, dia 8 de julho, no Museu de Cerâmica Udo Knoff (Pelourinho), da exposição Alquimia do Barro e das Formas, que estará aberta a visitantes até princípios de setembro (dê um clique no cartaz para vê-lo mais legível). A artista alternativa Ediane do Monte, Ramiro Bernabó e Naco Sales apresentaram os seus últimos trabalhos. Na foto, Ramiro Bernabó (de barba e óculos), Daniel Rangel (diret0r d0 museu), e Ediane.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Filme de Resnais está há 3 anos em cartaz em SP

Medos privados em lugares públicos (Coeurs), de Alain Resnais, encontra-se, há exatos três anos, em exibição num mesmo cinema em São Paulo. O maior realizador cinematográfico vivo, Resnais, apesar de já a se encostar nos 90, continua com projetos e em plena atividade. Ano passado, deu-nos de presente o maravilhoso As ervas daninhas (Les herbes folles), o melhor do ano, e disparado. A sala de projeção na qual Coeurs está sendo exibido não é grande, mas quase todas as sessões ficam cheias. Resnais é responsável por um choque cinematográfico que tive quando comecei a me interessar pela arte do filme, além das fronteiras do mero divertimento, em Hiroshima, mon amour (1959). Este filme me impressionou de tal forma que passei a procurar conhecer melhor outros grandes autores. Daí veio outro impacto: Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli, 1960), de Luchino Visconti. E de impacto em impacto chego até aqui.

O futebol não é um jogo


PELA PRIMEIRA vez na vida, vou discordar de Theodore Dalrymple. O dr. Dalrymple, pseudônimo do médico britânico Anthony Daniels, é um dos mais brilhantes ensaístas vivos. Discordar da sua sabedoria, sempre intocável, é exercício atrevido. Arrisco na mesma.
Escreveu o dr. Dalrymple, em artigo para a "New English Review", que não consegue suprimir o seu desprezo pelo futebol. Como é possível que países alegadamente ilustrados possam dedicar a um jogo todas as energias da nação?
Como é possível que a França possa reunir "comissões parlamentares de inquérito" para analisar o que sucedeu de errado com a sua seleção? Será que as pessoas não reparam na vulgaridade e, pior, na inutilidade de transformar um mero jogo em que algo que ele não é?
Futebol é futebol, diz o dr. Dalrymple. A paixão mundial por ele é sintoma da nossa decadência presente, mental e cultural.Com a devida vênia, discordo. Futebol não é apenas futebol. Descontando a dimensão financeira e mediática avassaladoras, que sacode o globo inteiro, o jogo tem importância política e até existencial que é impossível não ver.
Politicamente, alguém deveria enviar ao dr. Dalrymple a primeira página desta Folha de domingo: o goleiro da Argentina, de costas e de quatro. E o título, generoso e a negro: "Massacre histórico". Olé!
Imagino o prazer que os editores do jornal tiveram ao planear essa primeira página. E imagino o prazer que os brasileiros tiveram ao lê-la. Melhor, só mesmo se tivesse sido o Brasil a fazer o serviço.
E quem diz o Brasil diz Portugal ante a Espanha. A equipe lusitana perdeu com "sus hermanos" uma semana atrás. Mas perder contra Espanha não é o mesmo que perder contra a Alemanha, contra a Argentina ou mesmo contra o Brasil.
Perder contra Espanha desperta todos os fantasmas históricos de um país que, em rigor, sempre afirmou a sua identidade por oposição a Castela. E que sempre viu em Castela uma ameaça física (no passado) ou econômica (no presente).
Hoje, Portugal e Espanha são membros da União Europeia e parceiros comerciais relevantes. Mas bastaria ler a imprensa portuguesa antes do jogo para perguntar se os jornais desportivos se tinham convertido à erudição acadêmica: as referências a batalhas importantes entre os dois países eram tantas que o leitor médio precisaria de um Ph.D. em história medieval para compreendê-las a todas.
Apenas um jogo? Para os portugueses, defrontar a Espanha era uma nova Batalha de Aljubarrota. Serem derrotados pela Espanha, uma repetição de 1580, quando o país perdeu a independência para os vizinhos. Todos os portugueses esperam agora pela desforra. Esperam por um novo jogo, uma nova Restauração, um novo 1640.A União Europeia fez-se para harmonizar os interesses das nações do continente e, quem sabe, diluir as velhas identidades nacionais num único projeto federal.Mas essas identidades existem e persistem quando Portugal encontra Espanha; quando a França encontra a Alemanha; quando a Irlanda encontra a Inglaterra; quando a Polônia encontra a Rússia. O futebol é a válvula de escape para que os países, formalmente unidos em Bruxelas, possam libertar medos ou ressentimentos que o tempo armazenou no subconsciente histórico.
Mas não apenas no subconsciente histórico. Disse que o futebol tem importância política e existencial. E essa última dimensão encontra-se no torcedor anônimo, que festeja e chora o destino da equipe como se fosse o seu próprio destino.De certa forma, ele tem razão: o torcedor de futebol não deseja apenas contemplar a beleza do jogo e divertir-se em 90 minutos. O torcedor projetou na equipe exigências pessoais que não podem ser frustradas. Ele anseia por ordem, força, criatividade, disciplina, vontade ganhadora; ele exige o que seria incapaz de exigir a si próprio. Porque não pode, ou não quer.
O futebol não é apenas um jogo. No Ocidente global e pós-moderno, onde a religião e mesmo o Estado-nação foram recuando na sua força vital, o futebol preencheu esse vazio, congregando novos fiéis com um novo sentimento de pertença.E com uma nova narrativa. Uma narrativa pulsional e tribal, feita de confrontos maniqueístas, sofrimentos coletivos e a possibilidade de uma redenção final e mundana.
JOÂO PEREIRA COUTINHO (Folha de S.Paulo em 06.07.2010)

Beleza e sensualidade

Creio que a imagem dela basta. Não preciso dizer mais nada.

domingo, 4 de julho de 2010

A pátria sem chuteiras

A SELEÇÃO DUNGA trouxe à tona um remanescente, na vida brasileira, de que o país tanto deveria se livrar quanto se recusa a encarar. Tudo na seleção, desde o primeiro momento, baseou-se em um exíguo corpo de ideias, e consequentes práticas, que caraterizam o mais deslavado autoritarismo. Era a velha e sempre viva regra: contra a liberalidade descontrolada, não a busca do equilíbrio, mas o autoritarismo.
No estilo anos 30 do século passado, o instrumento simbólico foi o patriotismo (com ou sem aspas). Os chamados à seleção seriam os que Dunga considerasse "dispostos a defender a seleção brasileira com todos os sacrifícios". Se assim foi o começo, no fim derrotado Dunga exaltava "esses jogadores que ficaram 52 dias distantes de tudo". Proibidos de contato com a vista do seu público, proibidos de conversar com jornalistas, proibidos de reunir-se a familiares, proibidos, proibidos. Os 52 dias não foram de concentração, foram de repressão de uma parte e sujeição passiva de outra.
Exigência que Dunga estendeu à imprensa, posta, com bastante passividade, sob a boçalidade como tratamento pessoal e a censura como prática, nas proibições ao trabalho habitual de reportagem e na exiguidade das informações permitidas à população ansiosa. Autoritarismo explícito, na forma mais sentida pela imprensa, e nem por isso mais intolerada. Críticas houve, sim, cautelosas e superficiais; reação, nenhuma. Nem quando Dunga investiu, ao vivo e em cores, contra um comentarista equilibrado, competente, sempre bem humorado e educado, Alex Escobar, nem aí houve sequer um mínimo ato representativo de repulsa ao autoritarismo.
Dunga brindou-se como um ser coerente e foi consagrado como tal, nas ressalvas incluídas pelos críticos às próprias críticas. Ficou dado, assim, um novo nome para a prática da injustiça. Na concepção "coerente" de Dunga, de nada valeram o esforço e o mérito de ser o melhor ou estar melhor. Se jogadores caídos na reserva em seus times são chamados a preterir jogadores em fase de excelência, que seleção é essa? E o que significa para os preteridos? E com que autoridade representa o estágio verdadeiro futebol do país? Apenas valeu o voluntarismo autoritário.
Neste sentido, Dunga fez uma síntese exemplar, quando explicou a convocação de um jogador que está como terceiro goleiro no seu time: "Quando eu convoquei o Dani da primeira vez, ele veio contra a vontade do técnico dele e por isso foi posto na reserva quando voltou pra lá. E o que os outros jogadores iam dizer agora? "Olha o que o Dunga fez com ele...'". A prioridade não era a seleção, no sentido esperado, eram considerações particulares. Impostas a partir do poder. Não da coerência, do reconhecimento justo e dos deveres da função.
A todas as críticas, ou ao que sua visão paranóide tomou por tal, Dunga ofereceu como contraste a devoção e a entrega dos seus cativos à pátria. Não por acaso, na hora de partir para a cruzada patriótica a seleção fora receber a bênção do primeiro mandatário e de sua mulher devidamente paramentados em verde e amarelo.
Mas brasileira é que a seleção não foi, nunca. Futebol fosco e tosco, de gente insegura e desnorteada ante a possível adversidade, nenhum momento de brilho verdadeiro, jamais um encanto de brasilidade. E um histérico à beira do campo ao ver que seu autoritarismo não transpunha fronteiras. Tudo não passou de uma manifestação a mais, e inconteste, do autoritarismo persistente na vida brasileira.

JANIO DE FREITAS Folha de S.Paulo (04.07.2010)


sábado, 3 de julho de 2010

A Copa do Mundo

QUANDO A bola bateu no travessão, caiu para dentro do gol e veio para as mãos do goleiro da Alemanha, lembrei da final da Copa de 1966 no estádio de Wembley.
Naquela tarde, o lugar que consegui na arquibancada estava alinhado com as traves alemãs. Sentei tão perto do campo que ouvi o som da bola de couro contra o travessão e vi, com estes olhos que a terra há de comer, que ela bateu no chão sem ultrapassar a linha de gol.
Enxerguei o lance com tanta clareza que fiquei até preocupado ao ver o juiz e o bandeirinha correrem para o meio do campo validando o gol inglês. Imaginei que a torcida da Alemanha fosse invadir o gramado em protesto contra o empate fraudulento.
Faltavam poucos minutos para a Copa terminar com a vitória de seu país por 2 a 1. Não havia alambrado ao redor do campo, só uma cerca metálica de um metro de altura.
Foi minha segunda surpresa naquela disputa. A primeira havia acontecido quando os alemães marcaram o primeiro gol e a torcida inglesa aplaudiu, depois de alguns segundos de hesitação. Que povo era aquele capaz de comemorar um gol do adversário em final de Copa do Mundo?
Comparei a reação anglo-saxônica com a que presenciei aos sete anos no armazém Simões lotado de torcedores, na esquina da Henrique Dias com a Rodrigues do Santos, no bairro do Brás, na decisão da Copa de 1950.
Não existia televisão. Escutei a irradiação sentado numa pilha alta de sacos de arroz que só consegui escalar com a ajuda de meu primo Flavio, já moço. Fiquei ali todo importante, ouvindo a narração no meio dos rapazes mais velhos, astros das disputas futebolísticas na calçada da fábrica em frente de casa nas tardes de sábado, período em que começava a folga de fim de semana dos operários.
Futebol pelo rádio era emoção arrebatadora: "Leônidas mata no peito, baixa na terra, passa por um, dribla o segundo, invade a área, fulmina, e é gol". O grito interminável de gol. Em minha imaginação, o homem que matava no peito, invadia a área e fulminava o inimigo tinha os poderes do Super-Homem e do Capitão Marvel.
Foi uma decepção quando meu tio Odilo me levou pela primeira vez ao Pacaembu para assistir a São Paulo versus Nacional, time escolhido a dedo para não desiludir o coração tricolor do sobrinho fanático. Achei bonito o gramado, as bandeiras da torcida e me emocionei com o som dos fogos quando o São Paulo entrou em campo. Os jogadores de carne e osso, porém, deixaram a desejar: erravam passes, chutavam para fora e perdiam gols feitos, exatamente como a molecada na rua.
Além de maldosos, porque empurravam uns aos outros e davam caneladas, ainda eram mal educados, xingavam e cuspiam no chão, prática que minha avó considerava a pior das grosserias, responsável pela transmissão da tuberculose.
O mais grave é que faziam de tudo para confundir o juiz. No futebol que jogávamos na porta da fábrica havia honestidade: quando a bola batia na mão de um menino, ele era o primeiro a parar o jogo; nas faltas cometidas, acontecia o mesmo.
No Pacaembu, eles chutavam a bola para fora e se apressavam para bater o lateral como se o adversário tivesse sido o último a tocá-la, caíam simulando pênaltis e, quando flagrados em infrações clamorosas, reclamavam do juiz com a veemência dos injustiçados.
Mesmo sem ter consciência, naquela partida aprendi que futebol é um esporte no qual mentira, dissimulação, violência física e mau-caratismo são partes inseparáveis do jogo.
A venda de seu Simões quase veio abaixo quando Friaça marcou o gol do Brasil, em 1950. Todos se abraçavam e pulavam com os braços para cima. No segundo tempo os uruguaios empataram, mas os presentes continuaram com a certeza de que seríamos campeões do mundo.
A desgraça entrou no armazém pelos pés de Gighia. Silêncio sepulcral; no ar apenas a voz do rádio e o cheiro dos sacos de mantimentos.
Quando o locutor anunciou o fim da partida, ficaram todos de cabeça baixa, ninguém falava nem se movia, parecia brincadeira de como está fica. Em procissão, os homens foram saindo, alguns com lágrimas nos olhos.
Encostado na carroceria de um caminhão, seu Isidoro, funcionário do Gasômetro, soluçava feito criança. Foi a primeira vez que vi homem chorar sem ninguém ter morrido.

DRÁUZIO VARELLA

sexta-feira, 2 de julho de 2010

"Vitor ou Vitória": a última grande comédia dos EUA

Publico aqui uma excelente exegese de autoria do crítico Gilberto Silva Jr retirada da revista eletrônica Contracampo. Trata-se de uma bela análise de Vitor e Vitória (Victor/Victoria, 1982), de Blake Edwards, que considero a última grande comédia vinda do cinema americano.

"Logo após exorcizar com S.O.B. as mazelas que lhe estavam entaladas à garganta, Edwards decide presentear Julie Andrews com o grande papel que, não somente ele, mas também todo o cinema, estavam lhe devendo há mais de uma década. E o resultado é nada menos que pure joy. Unindo com incrível coerência elementos de comédia romântica e de equívocos, pastelão, sátira de costumes, vaudeville, teatro de boulevard e musical da Broadway, Edwards alcança com Vitor ou Vitória? o momento de mais completa perfeição em sua carreira, obra-prima absoluta que consegue a façanha de superar trabalhos exemplares como Bonequinha de Luxo, A Corrida do Século ou Um Convidado Bem Trapalhão.

Vitor ou Vitória? é um filme-irmão de Quanto Mais Quente Melhor de Billy Wilder, desde sua origem, ambos remakes de trabalhos que o cineasta Reinhöld Schuenzel dirigira para a U.F.A. alemã nos anos 1930. Partilham também a temática da troca de identidades masculina/feminina. No caso do filme de Edwards, com Julie encarnando Victoria Grant, uma cantora lírica inglesa, desempregada e faminta na Paris de 1934, que resolve, por pura questão de sobrevivência, passar-se por um homem que faz shows travestido – o conde Victor Grazinski - para atrair a atenção das casas noturnas da cidade, tendo como mentor Toddy (Robert Preston), homossexual malandro e calejado, também veterano cantor na noite parisiense. Se a coisa parece a princípio confusa ou mesmo absurda, o próprio filme faz questão de destacá-lo a partir de sua tagline mais famosa: "A woman pretending to be a man pretending to be a woman...ridiculous!". Essa temática de mudança de sexo, por sinal, foi recorrente na comédia americana em 1982, mesmo ano em que Tootsie de Sydney Pollack traz Dustin Hoffman como um ator que se faz de mulher igualmente para arrumar trabalho.

O roteiro, adaptado pelo próprio Blake Edwards, começa por introduzir com calma a dupla de protagonistas. Temos Toddy, explorado e traído por um namorado mau-caráter, causando uma briga no bar onde trabalha, e sendo por isso demitido. E Victoria, sem um tostão para comer ou pagar a conta do hotel, ameaçando prostituir-se por uma almôndega – e só não consegue fazê-lo por que lhe faltam forças. Isso já rendendo cenas bastante engraçadas onde o diretor já demonstra, como fará igualmente ao longo de todo o filme, seu domínio do tempo de comédia e sua incontestável maestria no uso do formato cinemascope, trabalhando numa Paris de estúdio, concebida, assim como fora anteriormente nos filmes do Inspetor Closeau, de forma nada realista, mas bastante funcional aos interesses da trama. Tudo deságua na antológica seqüência do encontro de Victoria e Toddy num restaurante, onde uma barata será a agente responsável por puro e completo caos. Merecedora de aplausos é a forma como Edwards opta por retratar a instalação desse caos, partindo de um plano de detalhe – a barata subindo pela perna de uma senhora gorda e posuda – e cortando para um plano geral do restaurante, visto sob a perspectiva do outro lado da rua, enquanto um casal de passantes pára para observar a confusão e foge estupefato, sendo pouco depois seguido por Victoria e Toddy, os reais causadores do tumulto. É momento de perfeição cinematográfica para ser visto e revisto infinitamente.

É assim que Victoria vai abrigar-se no apartamento de Toddy e, na manhã seguinte, um equívoco completamente acidental acaba por levá-los a conceber a idéia que dará origem à intriga principal. Já com pouco mais de meia hora de projeção, Edwards anuncia através de uma sutil superposição de sons, na qual um espirro de Toddy se mistura com a buzina de um carro, toda a confusão que estará por vir daí para frente. E após apresentar o conde Victor ao maior empresário artístico de Paris, em outra magistral seqüência na qual participa um inacreditável equilibrista e que funde humor visual e sons oriundos de fora do quadro numa franca inspiração de Jacques Tati, as portas do sucesso abrem-se para nossa dupla anteriormente fracassada. A apresentação de estréia do falso travesti, assim como os demais números musicais do filme, é encenada com um brilho digno dos melhores momentos da Metro, agrupando elementos da herança modernizadora de Bob Fosse, que, por sinal, havia sido alvo de sátira em S.O.B., concedendo assim a Blake Edwards a chance, várias vezes perseguida ao longo de sua carreira, de se exercitar, dessa vez de forma impecável, por outros gêneros que não a comédia rasgada.

Surge então King (James Garner), gangster de Chicago que se apaixona a primeira vista pela dúbia figura de Victor/Victoria, ficando a princípio abalado em sua "macheza" ao perceber, mas sem nunca acreditar, que o alvo de sua atração seria um homem. Daí para a frente fica estabelecido e vai sendo aos poucos concretizado o romance entre as personagens de Andrews e Garner, com o filme flertando com uma possível quebra da masculinidade por parte de um dos tipos recorrentes mais viris do cinema americano: o gangster imortalizado por atores como James Cagney e George Raft. Mesmo que Edwards tenha confessamente "amarelado" em levar tal idéia às últimas conseqüências, fazendo King descobrir precocemente a real identidade sexual de Victoria – em uma seqüência, diga-se de passagem, digna dos momentos mais inspirados do boulevard, com portas de quartos de hotel sendo abertas e fechadas infinitamente para entrada e saída de cena das personagens – temos aí ainda o capanga Squash (Alex Karras), que inspirado por todo o contexto, acaba assumindo sua homossexualidade. Essa duplicidade sexual também se estende a outra importante personagem, Gloria (Lesley Ann Warren), a namorada de King, um curioso exemplar de "mulher-viado", mais afetada e pródiga em trejeitos que qualquer uma das personagens gays de todo o filme.

Faz-se, desse modo, importante destacar o contexto de época no qual Vitor ou Vitória? apareceu. Um período de afirmação da cultura homossexual nos EUA, em meio à política conservadora do governo Reagan, pouquíssimo tempo antes do choque que foi o desencadear da epidemia da AIDS. O filme é uma das primeiras comédias americanas a apresentar uma abordagem bastante simpática e pouco estereotipada da figura homossexual masculina, herança das portas abertas pelo sucesso mundial de A Gaiola das Loucas (1978), produção francesa que mesmo trabalhando com a imagem cômica da "bicha-louca" tinha como tema principal a queda das máscaras da hipocrisia social e sexual.

Voltando a Vitor ou Vitória?, vale ressaltar também a harmonia com a qual Blake Edwards consegue inserir em seu filme cada detalhe individual do conjunto. O diretor une por diversas vezes em uma mesma seqüência a sofisticação do musical à deliciosa vulgaridade do pastelão, como nas sucessivas brigas que acontecem em uma determinada boate. Essa valorização dos pequenos momentos abraça também uma série de personagens menores, todos envoltos em situações inesquecivelmente hilárias, como o dono da já referida boate (Peter Arne), o hóspede do hotel que tenta infrutiferamente colocar um sapato à porta de seu quarto observando o entra-e-sai do aposento ocupado por Victoria, o detetive que parece estar participando de um desenho animado (Sherloque Tanney) e principalmente o rabugento e genial garçom (Graham Stark, ator recorrente na obra de Edwards, sempre vivendo personagens de perfil similar). Sem mesmo assim descuidar de suas estrelas, como Julie, que consegue magistralmente – e sem a nudez-protesto de S.O.B. – superar o estereótipo da babá assexuada, numa composição minuciosa, que dá asas a todo o seu talento musical e senso de humor.

Falando de música, não devemos também esquecer de considerar com o devido valor a premiada trilha musical de Vitor ou Vitória?. As letras do inglês Leslie Bricusse são completamente impregnadas de um humor sagaz que reflete toda a ambigüidade de gêneros que permeia o filme, mais especificamente nos números Gay Paree e You and Me. Neste último, interpretado por Andrews e Preston, um casal supostamente homossexual canta os versos "You and me, we present the kind of people other people would like to be". O fato é que não somente este, mas todos os filmes de Blake Edwards jamais seriam os mesmos sem as melodias de Henry Mancini, responsável ao longo de mais de três décadas pela identidade musical da obra do cineasta. Em toda a história do cinema, apenas a parceria Morricone-Leone se iguala em coerência e fidelidade, se bem que Rota-Fellini, Herrmann-Hitchcock ou Elfman-Burton não ficam muito longe disso. Em Vítor ou Vitória?, Mancini encontra-se especialmente inspirado, com destaque para o belíssimo tema de amor Crazy World, que nada fica a dever a Moon River, a mais célebre das composições de Mancini, com Julie Andrews cantando em puro estado de graça.

Ao fim dos 133 minutos de total deleite que é Vítor ou Vitória? paira, além de tudo que o foi apresentado, o nome daquele cuja estrela brilha tanto ou mais que a do diretor-roteirista ou da atriz principal. Quando o filme termina com Toddy entoando uma versão debochada do número musical The Shady Dame From Seville, não somente o elenco, mas também todo o público parece render-se e se ajoelhar aos pés de Robert Preston. Generosamente, Edwards e Andrews partilham seu espaço com este veterano ator que contava então com mais de 4 décadas de carreira, incluindo raros momentos de estrelato – o maior fora O Vendedor de Ilusões, musical de 1962 – e que atuara quase sempre como coadjuvante em filmes de ação. Em seu penúltimo papel em cinema (morreria em 1987), faz com que seu Toddy, igualmente galante e debochado, mas também distante da caricatura da bicha velha, seja simplesmente uma das maiores atuações da história. Não somente uma cereja no delicioso bolo de inimitáveis ingredientes que é Vítor ou Vitória?, mas sim um outro bolo à parte, igualmente saboroso."

Gilberto Silva Jr.