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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Retirei a crônica de Veríssimo sobre o Big Brother Brasil por ser apócrifa e não escrita por ele.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Retrato do pensador quando jovem

Marx, o Jovem

Um "romance" de formação

RESUMO
Escrita por Karl Marx (1818-83) antes de completar 20 anos, a novela humorística "Escorpião e Félix", que tem sua primeira tradução integral do alemão publicada nesta edição, revela uma face desconhecida e absurda de sua obra. Críticos avaliam a importância do texto e especulam sobre suas influências e seu significado.






BERNARDO CARVALHO
ILUSTRAÇÃO PAULO MONTEIRO

QUANDO KARL MARX MORREU em Londres, em 1883, pouco antes de completar 65 anos, trazia no bolso um retrato do pai. O corpo foi enterrado com a foto. A situação é tão mais comovente por o retrato ter sido encontrado no bolso do mesmo revolucionário antiburguês que, anos antes, escrevera ao amigo Friedrich Engels, coautor do "Manifesto Comunista": "Abençoado aquele que não tem família" -e que entrara na vida adulta tentando se livrar do jugo paterno.
Em 1837, aos 19 anos, no final do primeiro ano da faculdade de direito em Berlim, Marx enviou ao pai, Heinrich, em Trier, como presente de aniversário, um caderno de versos contendo a soma de suas veleidades líricas: poemas (ao que parece, péssimos, entre canções, ditirambos e baladas do jovem apaixonado pela futura mulher, Jenny von Westphalen), uma tradução de Ovídio, o início de uma peça em rimas e trechos de um romance fragmentário, "Escorpião e Félix", escrito à maneira alegórica e irônica do que poderia ser associado apressadamente a certo romantismo de época.

PARÓDIA 
Para Sam Stark, editor da "Harper's Magazine" e autor de um ensaio sobre o caderno do jovem Marx, publicado em fevereiro de 2008 na revista "The Believer", o aspecto romântico e fragmentário do "romance" tem menos de influência do que de paródia: "Até onde ele está levando a sério essa visão Até onde está parodiando os mecanismos românticos e se apropriando deles para seus próprios fins políticos". O caderno de versos resume, mas também põe fim, às ambições literárias do jovem Marx. E prenuncia uma crise psicológica que o levará, ironicamente, à leitura de Hegel -ao qual ele tanto resistira, nem que fosse para aplacar as apreensões do pai, sempre tão zeloso em não deixar o filho à mercê da "idealização abstrata" (Karl chega a caçoar da opacidade das ideias de Hegel num poema incluído no caderno e a lhe atribuir a alcunha de anão numa passagem de "Escorpião e Félix"). A carta ao pai que ele escreve em novembro do mesmo ano, fazendo um balanço dos seus fracassos e frustrações (reconhece, consternado, a falta de talento para a literatura) e do estado de seus interesses intelectuais e acadêmicos, permite ver em retrospecto naquele caderno de versos enviado meses antes mais uma confissão -o anúncio de um rompimento e do fim de um ciclo- do que propriamente a intenção reconfortante de um presente de aniversário. O fracasso literário foi, de certo modo, o atestado de independência do jovem Marx. Seis meses depois, na morte do pai, Karl disse que tinha mais o que fazer em Berlim e não compareceu ao enterro.

CONVERSÃO 
O advogado Hein-rich Marx, descendente de uma família de rabinos numa cidade católica como Trier, convertera-se ao cristianismo luterano antes do nascimento do filho, mais por pragmatismo do que por convicção religiosa, uma vez que de nada serviram seus apelos ao governo prussiano pelo fim da discriminação contra os judeus, penalizados e mantidos como cidadãos de segunda classe, por mais prósperos que fossem seus negócios. Sua conversão ao patriotismo germânico, a despeito dos ideais de liberdade que conhecera anos antes, durante a ocupação francesa da Renânia, corresponde ao mesmo senso prático. Quando o filho vai estudar direito, primeiro em Bonn e depois em Berlim, Heinrich acompanha de longe e com atenção cada passo do rapaz brilhante e promissor, procurando guiá-lo pelo bom caminho. Não se pode dizer que por trás das ambições literárias do jovem Marx não houvesse, portanto, também a mão paterna, apostando no futuro profissional do filho e no prestígio da literatura como garantia de acesso aos círculos mais influentes. Karl decidira (não sem reservas) seguir carreira na administração pública. Havia em média dois alunos formados para cada vaga disponível no serviço público na Prússia. Era preciso chamar a atenção para si, e por um momento ele deve ter acreditado que pudesse fazê-lo por meio da literatura.

CONTADOR DE HISTÓRIAS 
Leitor de Homero, Dante e Shakespeare (que ele acabará recitando para os filhos, assim como os contos de E.T.A. Hoffmann, durante o desterro final em Londres, para onde se muda em 1849 e onde será enterrado como apátrida 34 anos depois), além de admirador de compatriotas como Goethe, Schiller e Heine, Karl Marx teria sido, desde cedo, a julgar por uma anedota, um exímio contador de histórias. Segundo a filha Eleanor, relatando o que ouvira das tias, o pequeno Karl fora um ditador que subjugava as irmãs, obrigando-as a lhe servir de montaria e a comer bolos de lama. E as irmãs se submetiam a todas as suas fantasias, só para depois poder ouvir, como prêmio, as histórias que ele lhes contava. É difícil imaginá- las, entretanto, fazendo o mesmo por uma leitura de "Escorpião e Félix". O britânico Francis Wheen, autor da biografia de Marx publicada em 2001 pela Record, define o "romance" enviado ao pai no caderno de versos de 1837 como "uma torrente disparatada de humor esdrúxulo e chacota, obviamente redigida sob a influência do 'Tristram Shandy', de [Laurence] Sterne [1713-1768]". O mesmo "Tristram Shandy" cuja influência entre nós garantiria algumas décadas depois a entrada da literatura brasileira na modernidade, com "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881). "A inspiração literária mais forte sobre o fragmento é certamente a de Sterne, que também influenciou muito Heine", diz Marcelo Backes, tradutor de Marx e de Heine. Embora os dois só tenham se encontrado em 1843, em Paris, é notável a ascendência do poeta sobre o jovem revolucionário desde os tempos do famigerado caderno de versos. 

GÊNIO DESMISTIFICADOR 
Para Dolf Oehler, professor na universidade de Bonn e autor de "Terrenos Vulcânicos" (Cosac Naify), a razão é outra. "O tom sterniano-heiniano de Marx carece de liberdade, o estilo paródico é laborioso. A tendência é violentamente anti-idealista, anticlássica e mesmo antirromântica", diz ele. "Mas vemos também que, a despeito do talento satírico e paródico, Marx não leva jeito para a ficção. Seus breves capítulos carecem, por assim dizer, de tensão ficcional (que faz o charme de Sterne ou de Machado de Assis). Ele teoriza em vez de narrar. Já se anuncia nesse texto o gênio desmistificador e um certo método paródico e polêmico de atacar sem trégua o pensamento dominante". Para Sam Stark, o estilo informe de "Escorpião e Félix" atraía o jovem Marx "por lhe permitir ao mesmo tempo brincar com certas crenças 'radicais' (ele cutuca o catolicismo, a Alemanha, a aristocracia, talvez o moralismo sexual etc.) e disfarçar um pouco o que realmente pensava. Provavelmente, porque ainda não sabia ao certo o que pensar sobre assuntos como política ou religião (que ele vai trabalhar a partir de Hegel e Feuerbach), para não falar de sexo!". Parte do movimento romântico já era vista pela geração de Marx como conservadora e ultrapassada. "Ele deve muito mais às ironias racionalistas de Lessing e Heine, que admirava abertamente. Eles eram os heróis da 'esquerda' do seu tempo", diz Stark. "A conexão essencial com a obra posterior é que ele já está se debatendo com o problema do sujeito e da sua própria relação com o mundo do conhecimento. Eu diria que ele está vivendo uma crise de ceticismo, está tentando encontrar um lugar de onde partir. E esse é um problema que não desaparece, nem mesmo em 'O Capital'."

FANTASMAGORIA 
Marcus Mazzari, professor de teoria literária na USP e autor de uma recente tradução comentada do "Manifesto Comunista" (Hedra), vai além: "Com todo o seu rigor científico, Marx revela em seus trabalhos extraordinários recursos literários, não só nas inúmeras citações, como também pela dimensão imagética e metafórica de seu estilo". A célebre passagem sobre o "caráter fetichista da mercadoria", no primeiro capítulo de "O Capital", é um exemplo: "A forma da madeira [...] é modificada quando se faz dela uma mesa. Nem por isso a mesa deixa de ser madeira [...]. Tão logo, porém, a mesa surja como mercadoria, ela se metamorfoseia numa coisa natural-sobrenatural. Não apenas está fincada no chão com suas pernas, mas também se coloca de cabeça para baixo perante todas as demais mercadorias e de sua cabeça de madeira vai tirando toda sorte de caprichos, coisa mais maravilhosa do que se ela começasse espontaneamente a dançar". "Será que uma intuição dessa 'fantasmagoria' não pode ser vislumbrada em 'Escorpião e Félix'", pergunta-se Mazzari. 

ESBOÇO DE JUVENTUDE 
Afinal, do que trata esse esboço de romance de juventude, recheado de alusões que vão da Bíblia a E.T.A. Hoffmann, passando por Ovídio, Shakespeare e Goethe De uma cozinheira, de deus, do dinheiro, de filósofos, de filologia, dos clássicos, da distinção entre esquerda e direita, do céu, da Lua e das mulheres, da jurisprudência, da primogenitura, de um alfaiate, de seu filho Escorpião, de seu amigo Félix e de seu cão constipado. Tudo num excerto incompleto de 24 capítulos cuja lógica poderia remeter tão somente à dialética do absurdo, para manter algum tipo de vínculo com o vocabulário que terminamos por associar ao marxismo, se não fosse também o que vai permitir ao jovem Marx, "como por um passe de mágica [...], avistar o reino da verdadeira poesia como um palácio distante e imaginário" e intuir a ruptura, o caminho do qual nenhum zelo paterno será capaz de demovê-lo.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

E a Cultura?


Cultura, política de Estado

EDUARDO PORTELLA


Cumpre repensar a mídia eletrônica, longe de conceitos patrimonialistas de integristas e de preconceitos intelectuais das academias engessadas


São válidos, mesmo que contraditórios, os recentes debates sobre o lugar da cultura hoje.
Cabe ao Ministério da Cultura a função de operar políticas públicas enraizadas e promissoras, tornando-se inadiável formular, ver e rever o seu percurso, selecionar questões pertinentes, absorver formas de criação e compreensão. Talvez deva mesmo situar a sua política cultural no contraponto de ação-reflexiva e reflexão-ativa.
O modelo predominante vinculava claramente estabilidade econômica e desenvolvimento. Mas o desenvolvimento já não é uma empresa de alguns, e sim um empreendimento de todos. Por isso mesmo deixou de ser operação contábil para se transformar no esforço radical de qualificação.
É preciso elaborar indicadores qualificativos, capazes de reequilibrar ou até de civilizar a voracidade dos indicadores quantitativos. A cultura perde a sua força vital toda vez que adota a economia como padrão ou referência compulsiva.
Não podemos ignorar que herdamos um pesado deficit cultural que vem de longe. A reversão desse quadro clínico desfavorável deve ser rigorosamente priorizada, o que exige a inclusão da cultura como trabalho social avançado.
É preciso incluir a fatura cultural no empenho de reprocessamento da fratura social. É verdade que o Estado não produz cultura (graças a Deus!), mas pode ter função democratizadora no estímulo, na distribuição e no consumo.
Ao Estado, consciente de ser um mediador social, igualmente voltado para a prestação de serviços públicos, cumpre: contribuir ativamente para a desobstrução dos canais de transmissão existentes e apoiar outros novos meios; formar novas plateias, implantando e ampliando auditórios formais e informais; vitaminar a procriação cultural, mediante a seleção criteriosa de projetos instauradores; e estabelecer um novo repertório de endereços e núcleos culturais.
Sobretudo, cumpre repensar a mídia eletrônica despreconceituosamente, longe dos conceitos patrimonialistas dos integristas e dos preconceitos intelectualistas das academias engessadas. Patrimônio cultural, sim; fundamentalismo, não. Indústria cultural, por que não? Sem o esvaziamento contundente da complexidade.
Tudo isso passa pelo livro, pela leitura em campo aberto, pelas bibliotecas, pelas salas de cinema e de teatro, pelo vídeo, pelos cultos diversos, pela cultura do videoclipe, pelas lonas do circo, pelas quadras e pelos terreiros, pelos estádios esportivos e assim por diante.
Passa antes pela compreensão de que cultura é coisa séria. Para começo de conversa, cultura deve ser política de Estado, mas de Estado socialmente enraizado.
Vale lembrar algumas recomendações, talvez redundantes: reforçar o orçamento do MinC; ampliar as iniciativas interministeriais; descentralizar mais as ações do ministério; reoxigenar os fundos de cultura; trabalhar as emendas parlamentares para ganhar mais musculatura financeira, longe do clientelismo e da propaganda enganosa; reforçar a compreensão federativa.
Isso sem esquecer de que fins e meios devem ser calibrados cuidadosamente. À cultura cabe alistar-se na frente comum do hoje e do amanhã, como parte integrante do processo, e ajudar a devolver a confiança no país. Ela dispõe de condições potenciais.

EDUARDO PORTELLA é escritor e professor titular emérito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

"Além da vida", de Clint Eastwood


LUIZ FELIPE PONDÉ 

"Além da vida" 


O que encanta Clint Eastwood é a coragem diante de um mundo que se encontra em agonia


VOCÊ ACREDITA em vida após a morte? Eu não tenho opinião formada, por duas razões. Primeiro, porque se trata de uma questão sem resposta científica, mesmo que a sensibilidade espírita insista que "espiritismo é uma ciência". Bobagem, não há nada de científico no espiritismo.
Quando era adolescente, eu fazia a brincadeira do copo (fazer o copo "andar" e responder questões "soletrando" as palavras a partir de letras escritas sobre a mesa). Nunca funcionou comigo, mas sempre deu certo para pegar meninas assustadas. Corriam para nossos braços na velocidade da luz. Que delícia!
Pânico natural nas mulheres é um belo acessório de beleza e altamente afrodisíaco. Como saia curta e camisetas brancas molhadas. Certa feita, eu peguei uma menina assaz difícil no cinema graças ao bom "Tubarão".
Por outro lado, materialistas não têm tampouco uma resposta negativa definitiva para a questão da vida após a morte.
Minha segunda razão é mais blasé: nunca penso no assunto. Não me preocupo com a imortalidade da alma. O "sobrenatural" não me interessa nem um pouco.
Mas o tema é filosoficamente significativo porque as pessoas, por milhares de anos, têm se perguntado: "O que existe além da vida?"
O novo filme de Clint Eastwood, "Além da vida", trata desse tema de forma magistral. Mas não esqueçamos: trata-se de um Clint Eastwood. Isso significa o seguinte: um pano de fundo trágico permeado pelo problema da coragem versus a covardia diante do sofrimento humano.
Quando falo em "pano de fundo trágico", refiro-me a uma visão de mundo na qual a vida não tem nenhum sentido último aparente e, portanto, seus heróis se movimentam numa falta absoluta de sentido, numa espécie de escuridão moral.
O homem faz o que pode diante da opacidade de um mundo que lhe é, ao final, sempre hostil. O que encanta Clint Eastwood é a coragem diante de um mundo agônico, como todo autor que se move numa atmosfera trágica.
Existem duas virtudes básicas na tragédia: a coragem e a piedade (aos ateus alegrinhos: não confundir piedade com pieguice). Essa piedade é marcada pelo "páthos" que podemos sentir diante de nossos semelhantes torturados por um combate sem fim contra nossa agonia ("agon", em grego antigo, pode ser traduzido por "conflito").
"Além da vida" não é um filme espírita. Não é uma historinha sobre um médium que fica falando com mortos ou escrevendo cartas psicografadas cheias de obviedades.
O filme tem dois heróis e uma heroína. Um deles é um médium que vê nesse "dom" uma maldição, fruto de um erro médico que o destrói (não consegue ter vida profissional ou afetiva). O outro é um menino que perde um ente querido e fica desesperado procurando alguém que "diga" ao morto que ele sente saudade e que não sabe viver sem ele.
E a heroína é uma jornalista famosa, doce e generosa, que tem uma experiência de "quase morte" como vítima de um tsunami. Ela ficará obcecada por procurar respostas para o que sentiu, levando sua vida pessoal e profissional à beira do abismo.
Os mortos no filme não são esses seres falsamente poderosos que fingem poder "fazer nossa vida dar certo", como é o caso da farta "economia do além da vida" que se aproveita de nossa agonia.
A vida após a morte (vista como uma possibilidade séria no filme) pode ser apenas "mais do mesmo". À diferença da cambada de picaretas que o menino encontra em seu caminho (essa turba que vive de enganar as pessoas falando coisas como "sua vida vai mudar se você fizer X" ou "estou bem, mamãe"), o filme eleva essa angústia ao seu sentido trágico piedoso: somos quase sempre egoístas e covardes e poucos são corajosos e generosos, mesmo em se tratando do "além da vida".
Saber (de fato) que existe vida além da morte pode ser um ônus terrível. Conseguir falar com um ente querido morto pode custar sua sanidade. Seguir seu desejo até o fim pode te destruir. Continuamos na escuridão. Só a rara beleza da coragem e da generosidade ilumina.
Para Clint Eastwood, devemos sempre nos ajoelhar diante desta rara forma de beleza. 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Cinema Belas Artes fecha as portas para sempre


Belas Artes 

Mais de uma vez, ao longo das últimas décadas, anunciou-se o fim do Cine Belas Artes. A sala de exibições, uma das mais tradicionais e cultuadas de São Paulo, conseguiu entretanto sobreviver às crises e ameaças, contando ultimamente com o apoio inestimável de patrocinadores e entusiastas.
Recebe-se assim com tristeza, mas não com desesperança, a notícia de que o Belas Artes irá fechar as suas portas em fevereiro. O imóvel foi solicitado pelo seu proprietário. O responsável pela sala, André Sturm, declarou que irá procurar um novo endereço. Seria o menor dos males, quando se considera o pequeno número dos cinemas de rua na cidade -substituídos pelas salas de shopping e por alguns centros multiplex.
Não se repara com isto, entretanto, o que seria talvez a maior perda nesse acontecimento: a memória cultural de gerações que se familiarizaram com as grandes realizações da arte cinematográfica no velho prédio, entre a Paulista e a Consolação.
Repete-se o que aconteceu, em outros tempos, com os frequentadores dos grandes cinemas do centro de São Paulo, nas avenidas São João e Ipiranga; ou com os que, no Rio de Janeiro, sofreram quando o cine Paissandu, que deu nome a uma inteira geração de críticos, cineastas e apreciadores, também fechou.
Misturam-se, em casos desse tipo, questões de patrimônio imaterial, valorização da memória cultural, interesse comercial e, sem dúvida, política urbana.
Entusiasmo, persistência e patrocínio individuais nem sempre são suficientes para enfrentar a contento problemas tão distintos. O acerto entre poder público, iniciativa privada e sociedade civil é tarefa complexa num caso como esse; exige um grau de entusiasmo, talento, habilidade e coordenação que, sem dúvida, levaria a qualificar-se a administração cultural de uma cidade como uma modalidade, rara mas não inatingível, das próprias belas artes. Que, aos poucos, São Paulo consiga se aproximar desse ideal.
EDITORIAL DA FOLHA DE SÃO PAULO EM 10 DE JANEIRO DE 2011

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Palocci no poder novamente. E o crime do caseiro?


quarta-feira, 05 de janeiro de 2011 | 06:10

No lamentável pluripartidarismo brasileiro, os partidos (PT-PMDB) brigam por cargos. Mas não conseguem chegar perto do mais importante de todos: a Casa Civil. Na posse, derrotados e reabilitados.

Helio Fernandes
Houve muita surpresa na posse de Dona Dilma. Alguns não deviam nem ser convidados, outros assombrosamente empossados. A tranquilidade com que Dona Erenice Guerra transitava pelos salões, novidade para muitos, naturalidade para poucos. Estes sabiam que o já quase ex-presidente Lula, na véspera, mandara arquivar os processos contra ela.
Lula ratificou o parecer da comissão de investigação que ele mesmo criou e nomeou: “Não existe prova nem culpabilidade”. Não foi o culto à impunidade que o já ex-presidente tanto pratica, e sim a impossibilidade de contrariar a realidade.
Como punir, execrar e condenar a Chefe da Casa Civil de Dona Dilma, que disse várias vezes: “Ela é minha mão e meu braço direito. Sem ela, não sei o que fazer”. Nada de novo (no front ocidental?) se Dona Erenice Guerra voltar ao Diário Oficial com uma nomeação pelo menos extravagante.
A maldição, assombração ou empolgação da Chefia da Casa Civil dominavam e dominaram a cerimônia de posse, e outras, subsequentes, consistentes, consequentes ou inconsistentes. A glorificação maior ficava por conta da própria Dilma. A primeira a ocupar esse cargo consagrador, se transformou na “primeira mulher a chegar à presidência da República”.
O primeiro a ocupar esse cargo, e já destinado a ser o sucessor de Lula, também presente. Seu nome? José Dirceu. Poderoso mesmo, antes da primeira posse, durante o primeiro mandato, é quase inacreditável que tenha sido afastado, desprezado e derrotado por um episódio menor e insignificante, que se chamou “escândalo da Loterj”.
O assessor de total confiança de José Dirceu, era o precursor da Era de Dona Erenice. A sorte de Dona Dilma é que não estava mais no poderoso cargo, ficou apenas com o constrangimento da indicação e da usurpação dessa indicação. Mas pelo visto, Dona Erenice já recuperou a confiança do ex-presidente, (que a inocentou) e da sucessora (que a convidou).
Dirceu, sem dúvida mais competente do que todos que passaram pelo cargo, foi demitido e atingido pelo tufão chamado mensalão. E as 7 horas do discurso de Roberto Jefferson, um dos raros vistos pelo país inteiro. Apesar do então deputado do PTB, ter dito, “contei tudo ao presidente Lula, que me respondeu que não sabia de nada”.
Poupado pela oposição desnorteada, desorientada e desarvorada, Lula se salvou, se consolidou, se recuperou. Fez até a sucessora, embora nos planos que traçou e planejou, o ocupante do Planalto por mais quatro anos (a partir de 2010) fosse ele mesmo e não a primeira mulher a sair vencedora.
Se o presidente confessou, “não sabia de nada” (e depois se refugiou nessa frase), pelo rumo dos acontecimentos, José Dirceu devia saber de tudo. Pois apesar de ter respondido ao discurso de Jefferson, Dirceu não escapou da cassação, do ostracismo, do abandono. Ele nunca disse publicamente, mas culpa o próprio Lula por tudo o que aconteceu.
Na Câmara, Jefferson foi empolgante, Dirceu apenas hilariante. Em algumas afirmações fez rir toda a platéia. Principalmente quando, atendendo a uma indagação, respondeu perguntando: “Eu, arrogante?” Era mesmo para rir. Ele não foi outra coisa a partir dos tempos em que chamava Lula de “você”, e Lula, mesmo presidente, chamava-o de “senhor”.
Assim como Jefferson, Dirceu foi cassado. Para o deputado do PTB, um simples acidente de trabalho, continuou dono e senhor do PTB, ficou na presidência do partido. Para Dirceu, desastre e calamidade completa. Não perdia a presidência do partido, que jamais lhe interessou, e sim a presidência da República, que lhe estava destinada pelos deuses, perdão, pelo Deus único que passou a ser Lula.
Depois de atravessar esse oceano de acusações, Lula se transformou em herói nacional, Dirceu naufragou num mar de impurezas, Lula não jogou nem uma corda para que não submergisse. Dirceu não se salvaria de maneira alguma, Lula já percebera a força que acumulara, começou a devastação de todos os que podiam pretender sucedê-lo.
Foram muitos. Até o senador Aloizio Mercadante, que jamais teve a menor chance, mas se empossou no Senado, acreditando que precisava convocar o suplente, iria direto para o Ministério da Fazenda. Não foi. Desgastado durante 7 anos, no último, líder no Senado, pediu “demissão irrevogável”, LulaOBRIGOU-O a se desdizer e a continuar como líder sem liderança.
Neste “passeio” pelo mais importante cargo palaciano, o vergonhoso, perigoso e até alarmante, é a reabilitação de Antonio Palocci. Sua entronização na Chefia da Casa Civil é até deprimente. Basta mudar apenas uma palavra no excelente filme de Elio Petri, “Um cidadão ACIMA de qualquer suspeita”. Mudando uma palavra e Palocci reconheceria: “O personagem sou eu”. É mesmo.
Veio de Ribeirão Preto cheio de acusações, suspeitíssimo, ninguém tinha a menor dúvida sobre as irregularidades acumuladas na prefeitura. E até no que aconteceu depois, quando já não estava mais lá, mas dominava os acontecimentos, mesmo de longe. As lágrimas que a agora Ministra, Miriam Belchior, derramou pelo marido assassinado, poderiam muito bem respingar em muita gente na posse. Pois o assassinado Celso Daniel, mais competente, por todos os ângulos, do que muitos dos que estavam “prestigiados”.
Surpreendendo a todos, Palocci foi Ministro da Fazenda, nos chamados círculos do Poder, ninguém entendeu nada. E mais estapafúrdia, que palavra, a insistência com que Lula repetia: “Espero que Palocci me dê sinal verde para baixar os juros”.
Isso jamais aconteceu. O “sinal verde” de Palocci se chocava com seus próprios interesses “vermelhos e negros”. Foi demitido desprezivelmente pelos fatos que aconteciam na mansão do Lago, alugada pelos amigos de Ribeirão. Exposto, perseguiu um simples caseiro. Julgado pelo Supremo, não foi ABSOLVIDO nem CONDENADO, era tão desprezado no julgamento quanto na demissão acintosa do ministério.
Ficou no ostracismo, sem casa oficial, sem salário (nem precisava), sem cargo, sem idoneidade, condição que nele era congênita e adquirida. Quando foi chamado para a campanha eleitoral, mais espanto, era evidente que assistíamos a uma ressurreição.
 ***
PS – Dos quatro que ocuparam a Chefia da Casa Civil e estavam na posse, o mais vulnerável, degradado, desgastado, desprestigiado, desprezado, sem dúvida alguma era o próprio ocupante do cargo.
PS2 – E mais assombroso: foi ele que exigiu e ganhou esse cargo. Sabe que ali mora o perigo, mas é também a habitação da ambição. E afinal, depois de tudo o que lhe aconteceu, não podia acontecer nada melhor do que o segundo cargo em importância no próprio Planalto.
PS3 – Esperemos Dona Dilma definir o que é G-O-V-E-R-N-A-R. Será cortar gastos? Investir? Estabelecer prioridades? Ou se firmar nas reformas indispensáveis, sem as quais não governará?

domingo, 2 de janeiro de 2011

A fonte do sucesso de Lula


JANIO DE FREITAS 

A fonte do sucesso 


Ocorreu uma inovação decisiva, quase estritamente intuitiva, que veio a fazer o sucesso de Lula e do seu governo: a imaginação

A APROVAÇÃO espetacular da presidência de Lula se explica, é claro, pelo uso que fez dos instrumentos de governo, mas daí decorre uma indagação menos óbvia e mais interessante: o que levou a esse uso que se diferenciou do mesmismo governamental brasileiro?
Os dois mandatos de Lula são de presidentes e de governos que têm muito pouco em comum. Não foi por falta de memória que a caracterização do governo Lula como mero continuísmo, tão insistente no primeiro mandato, nunca mais foi repetida no segundo. Continuísmo que não era, como mal se defendiam os petistas, uma incompreensão da crítica nem, tampouco, uma contingência incontornável.
Era a escolha de um presidente e um governo temerosos dos setores dominantes, inseguros da resistência para manter-se no poder, e por isso decididos a apegar-se à cartilha do mesmismo governamental. Um estado muito evidente na contradição entre os ares serviçais voltados para o empresariado forte, em especial o financeiro, e a fúria desabafada por Lula, nas falas ao povão, contra "as elites desse país".
O convencionalismo do governo Lula confirmou-se na disputa pela reeleição. Geraldo Alckmin não era um competidor difícil, carecia de presença nacional e sustentava uma candidatura cujo único possível atrativo era a oposição a Lula. O qual, além do mais, mesmo valendo-se de facilidades e de meios de propaganda do governo, tal como Fernando Henrique em sua reeleição, teve uma vitória muito pouco expressiva. Ainda há pouco se veio a saber, pelo WikiLeaks, que a derrota de Lula chegou a ser temida em seu círculo.
De qualquer modo, a vitória pareceu dar a Lula alguma confiança mais. Embora não suficiente para encorajá-lo a fazer um governo menos preso aos legados históricos e aos recentes -um país a serviço do setor financeiro privado, com o serviço público devastado, um ou outro programinha social para maquiar a face real, a inexistência de soberania nas relações internacionais, e o mais que se sabe.
Nesse vago andar, não seria apenas por acaso a junção de Guido Mantega, Dilma Rousseff e Celso Amorim em torno de Lula e, desde aí, a criação de um sentido para o governo. Lula conquistou, sem o cerceio do duo de regentes conservadores Antonio Palocci/Henrique Meirelles, o estímulo para a segurança pessoal e a redefinição de sua presidência. Afinal formava-se a unidade no centro de decisões do governo.
A velha ideia de crescimento conjugado a combate à inflação enfim teve a sua oportunidade. Nada a ver com o petismo, nada das modificações estruturais e das reformas institucionais que, antes, se esperariam de Lula. Mas ocorreu uma inovação decisiva, quase estritamente intuitiva, que veio a fazer o sucesso de Lula e do seu governo: a imaginação.
Uma das características do Brasil é a falta de imaginação política e, com ela, de imaginação governamental. O exemplo extremo, nesse sentido, é o governo Fernando Henrique, em que "o intelectual no Poder" só se afastou do roteiro mediocremente tradicional para submeter-se, e ao país, às diretrizes externas do neoliberalismo, feitas de muitos interesses e escassas ideias.
Aderido à proposta de crescimento, o governo Lula adotou (até por necessidade) uma dose razoável de imaginação, e agiu em função dela. O PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, é o exemplo mais apropriado. Não compõe um plano de ação, atira-se para todos os lados, mas deu o sentido de ação governamental a enfrentar buracos negros que, em seus variados gêneros, jamais viam ultrapassado o limite das palavras vazias, ou carregadas só de demagogia.
Geração de energia, retorno à indústria naval, transposição do São Francisco, estímulo a novas siderúrgicas, força total à Petrobras -fartas quantidade e variedade de iniciativas que criaram o clima de país em reelaboração. Nesse conjunto caótico do PAC, a urbanização de favelas juntou-se a programas como o Minha Casa, Minha Vida, o gigantismo do Bolsa Família e vários outros para grupos sociais e atividades pouco ou nada assistidos. Combinados, deram ao governo a face de poder voltado para o povo sempre sem governo. A imaginação deu frutos, a Lula e seu governo e, como melhoria das condições de vida, a grande parte da população.
Comparada à inovação nas relações exteriores, tanto políticas como comerciais, a ação interna foi ideologicamente moderada. Hoje se tem certeza, pelo WikiLeaks, de que a aqui tão criticada mediação no problema Irã foi a pedido dos Estados Unidos. Se esse episódio merece revisão, outros, como a insistência malsucedida para ingresso no Conselho de Segurança da ONU e a "aliança estratégica" com o governo francês de Nicolas Sarkozy, continuam deploráveis. Mas o governo imaginou ações que conquistaram uma nova inserção internacional do Brasil e lhe deram a voz de nação. A importância dessa novidade é tão grande que ainda não pode ser percebida na plenitude, como realizadora de nova configuração do país e mesmo do mundo. A imaginação deu frutos.
A própria candidatura de Dilma Rousseff foi o exercício de uma liberação imaginativa, de sentido político, imposta por Lula em uma exibição definitiva da autoconfiança e da autenticidade que lhe faltaram no primeiro mandato. E outra vez a imaginação deu frutos.
O Brasil merece que Dilma Rousseff os reproduza e aprimore.