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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Falta um estadista


Sebastião Nery
Candidato a presidente, em 1995, Juscelino saiu pelo País visitando o PSD. Desceu na Bahia e Antonio Balbino, governador do PSD-PTB, ainda estava em cima do muro:
- Juscelino, qual é a verdadeira posição do Café?
- Qual deles, Balbino? O vegetal ou o animal?
Foi para Pernambuco. Etelvino insistia: - Juscelino, vamos rever o assunto e fazer a união nacional.
- Etelvino, já sei que você está contra mim. Quando você fala em união nacional, na verdade está pensando em União Democrática Nacional.
Candidato não faz união. Candidato disputa. Quem faz união é governo.
***
JUSCELINO
E voltou para Minas. Em 31 de dezembro, o chefe da Casa Militar da Presidência, Juarez Távora (candidato da UDN derrotado por JK), entregou a Café Filho um documento em que “as autoridades militares apelavam para uma colaboração interpartidária, um candidato único e civil”.
O documento só foi divulgado no dia 27 de janeiro, em “A Voz do Brasil”. Juscelino respondeu com um discurso duro, escrito por Augusto Frederico Schmidt, que terminava com a frase magistral:
- “Deus me poupou o sentimento do medo”.
***
FMI
Já no governo, jantar no Palácio Laranjeiras. JK recebe um grupo de amigos: Tancredo Neves, Vinicius Valadares, João Luis Soares, Fausto Fonseca e o coronel Afonso Heliodoro. Chega um oficial de gabinete:
- Presidente, a Radional chamando de Washington, urgente.
Saiu apressado. Silêncio na mesa. Quinze minutos depois, volta Juscelino. Cabeça baixa, mãos crispadas, visivelmente emocionado:
- Era o Walter, de Washington (Walter Moreira Sales, embaixador  nos Estados Unidos). Eles estão querendo demais. Querem o petróleo, a reforma cambial, parando as metas. Nossa paciência tem limites. Haja o que houver, não entregaremos o petróleo nem faremos a reforma cambial.
***
PRESTES                      
JK rompeu com o FMI (Fundo Monetário Internacional), exatamente por não querer fazer a reforma cambial nem interromper o Programa de Metas, inclusive Brasilia, energia e estradas. Choviam telegramas no Catete. “A Voz do Brasil” transmitia pronunciamentos de solidariedade.
Os estudantes anunciaram uma manifestação de apoio a JK, em frente ao Catete. Ele não queria, a UNE insistiu. Concordou, “contanto que fosse apenas uma manifestação de estudantes, sem qualquer marca política, pois o problema do FMI era um problema nacional”.
À tarde, a praça em frente ao Catete estava superlotada: estudantes, trabalhadores, o povo na rua para ajudar o presidente a sustentar a briga. JK apareceu, falou, saiu. No jantar, seu lider Abelardo Jurema contou:
- Presidente, sabe quem estava na praça? Prestes. No meio do povo.
Juscelino deu uma gargalhada. Jurema não entendeu:
- Isso vai lhe causar problemas, presidente. Por que o senhor ri?
- Só quero ver o editorial do “Globo” amanhã.
***
GRÉCIA        
O martírio que a Grécia, patrimonio da humanidade, está vivendo tem uma razão básica : falta-lhe um estadista. O Brasil com Juscelino tinha um estadista no comando. Nossa grande imprensa, venal e vassala dos banqueiros, pergunta por que a maioria da população grega, do governo e da oposição, repele o plano do FMI, da União Europeia e dos bancos.  
Eles já viram essa missa na crise internacional de 2009: varios bilhões de dolares de “empréstimos” “para evitar o calote da Grécia” e não ficou um tostão no pais. Foi tudo para pagar os juros da “divida grega”. Dois anos depois, a Grécia “deve” muito mais e querem  “emprestar-lhe” mais outras dezenas da bilhões para a “rolagem” dos juros dos banqueiros.
E para isso exigem que a Grécia pague com sangue : cortes nos salários, aposentadorias e empregos, desemprego e entrega das empresas.
***
KIRCHNER
Falta à Grecia um Kirchner. Em 2003, a Argentina e seu povo estavam falidos, a maioria da população na miséria, crescimento zero.  Kirchner comunicou que só pagaria 25% da “divida”, porque os 75% eram “roubo, juros sobre juros”. Até de invasão foi ameaçado. Kirchner pôs o FMI e os banqueiros de joelhos e todos acabaram aceitando os 25%. A partir daí a Argentina vem dando banho, crescendo 8% a 10% todo ano.
E o Brasil patinando, rezando para crescer 3,5% este ano. A “Folha” diz que “o Brasil gasta este ano R$ 230 bilhões com juros da divida publica”
E a impostura de Lula de que “nossa divida acabou”? Ele fez uma trampa: trocou a divida em dólar pela divida em real, com juros em dobro.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Crise terminal do capitalismo?


LEONARDO BOFF
Tenho sustentado que a crise atual do capitalismo é mais que conjuntural e estrutural. É terminal. Chegou ao fim o gênio do capitalismo de sempre adaptar-se a qualquer circunstância.Estou consciente de que são poucos os que representam esta tese. No entanto, duas razões me levam a esta interpretação.A primeira é a seguinte: a crise é terminal porque todos nós, mas particularmente, o capitalismo, encostamos nos limites da Terra.
Ocupamos, depredando, todo o planeta, desfazendo seu sutil equilíbrio e exaurindo excessivamente seus bens e serviços a ponto de ele não conseguir, sozinho, repor o que lhes foi sequestrado.
Já nos meados do século XIX Karl Marx escreveu profeticamente que a tendência do capital ia na direção de destruir as duas fontes de sua riqueza e reprodução: a natureza e o trabalho. É o que está ocorrendo.A natureza, efetivamente, se encontra sob grave estresse, como nunca esteve antes, pelo menos no último século, abstraindo das 15 grandes dizimações que conheceu em sua história de mais de quatro bilhões de anos.
Os eventos extremos verificáveis em todas as regiões e as mudanças climáticas tendendo a um crescente aquecimento global falam em favor da tese de Marx. Como o capitalismo vai se reproduzir sem a natureza? Deu com a cara num limite intransponível.O trabalho está sendo por ele precarizado ou prescindido. Há grande desenvolvimento sem trabalho. O aparelho produtivo informatizado e robotizado produz mais e melhor, com quase nenhum trabalho. A consequência direta é o desemprego estrutural.Milhões nunca mais vão ingressar no mundo do trabalho, sequer no exército de reserva. O trabalho, da dependência do capital, passou à prescindência.
Na Espanha o desemprego atinge 20% no geral e 40% e entre os jovens. Em Portugual 12% no pais e 30% entre os jovens. Isso significa grave crise social, assolando neste momento a Grécia.Sacrifica-se toda uma sociedade em nome de uma economia, feita não para atender as demandas humanas mas para pagar a dívida com bancos e com o sistema financeiro. Marx tem razão: o trabalho explorado já não é mais fonte de riqueza. É a máquina.
A segunda razão está ligada à crise humanitária que o capitalismo está gerando. Antes se restringia aos países periféricos. Hoje é global e atingiu os países centrais. Não se pode resolver a questão econômica desmontando a sociedade. As vítimas, entrelaçadas por novas avenidas de comunicação, resistem, se rebelam e ameaçam a ordem vigente. Mais e mais pessoas, especialmente jovens, não estão aceitando a lógica perversa da economia política capitalista: a ditadura das finanças que via mercado submete os Estados aos seus interesses e o rentismo dos capitais especulativos que circulam de bolsas em bolsas, auferindo ganhos sem produzir absolutamene nada a não ser mais dinheiro para seus rentistas.
Mas foi o próprio sistema do capital que criou o veneno que o pode matar: ao exigir dos trabalhadores uma formação técnica cada vez mais aprimorada para estar à altura do crescimento acelerado e de maior competitividade, involuntariamente criou pessoas que pensam. Estas, lentamente, vão descobrindo a perversidade do sistema que esfola as pessoas em nome da acumulação meramente material, que se mostra sem coração ao exigir mais e mais eficiência a ponto de levar os trabalhadores ao estresse profundo, ao desespero e, não raro, ao suicídio, como ocorre em vários países e também no Brasil.
As ruas de vários países europeus e árabes, os “indignados” que enchem as praças de Espanha e da Grécia são manifestação de revolta contra o sistema político vigente a reboque do mercado e da lógica do capital. Os jovens espanhois gritam: “não é crise, é ladroagem”. Os ladrões estão refestelados em Wall Street, no FMI e no Banco Central Europeu, quer dizer, são os sumo-sacerdotes do capital globalizado e explorador.
Ao agravar-se a crise, crescerão as multidões, pelo mundo afora, que não aguentam mais as consequências da super-exploracão de suas vidas e da vida da Terra e se rebelam contra este sistema econômico que faz o que bem entende e que agora agoniza, não por envelhecimento, mas por força do veneno e das contradições que criou, castigando a Mãe Terra e penalizando a vida de seus filhos e filhas.
Extraído do blog leonardoboff.worldpress.com

domingo, 26 de junho de 2011

Acorda, Dilma! Eles enlouqueceram.


Carlos Chagas
Em 1968 a União Soviética levava às últimas consequências sua tentativa de conter reações no mundo comunista. Invadira a Tchecoslováquia com tanques, canhões e soldados para ninguém botar defeito. A última resistência restringiu-se à Universidade de Praga, onde os estudantes rebelados e já derrotados escreveram no muro da reitoria: “Acorda, Lenin! Eles enlouqueceram!”                                                     �Uns por presunção, outros por cautela, os principais auxiliares econômicos  da  presidente Dilma  evoluem sobre o conteúdo do seu mandato.  O que fazer, o que mudar, o que conservar?                                                      �É aqui que mora o perigo, porque ministros e dirigentes do PT demonstram arrogância e já tentam enquadrar o futuro conforme suas tendências e seus compromissos. Começam a ameaçar com mais ajuste fiscal, mais sacrifícios e mais  neoliberalismo, depois de curta  temporada de promessas de campanha, ano passado, destinada a angariar votos e garantir o poder.�                                                  �
Chega a ser agressiva a postura adotada pela equipe econômica, feliz por  continuar mas  incapaz de perceber chegada a hora de mudar de vez o  modelo que nos assola desde os tempos do sociólogo. Pregam tudo o que faz a alegria dos potentados, dos  banqueiros  e dos especuladores, esquecendo-se da classe média e até se preparando para retirar das massas o alpiste oferecido há pouco  como embuste eleitoral.  Senão vejamos: 
Prevêem os áulicos de Dilma que desta vez virá  a reforma da Previdência Social. Traduzindo: vão restringir direitos  dos aposentados, desvinculando de uma vez por todas do salário mínimo os vencimentos de quem parou de trabalhar. Pensionistas e aposentados do INSS e inativos  do serviço público que se virem, porque receberão sempre menos do que os funcionários e trabalhadores em atividade. Quem mandou envelhecerem? Não demora muito estarão todos nivelados pelo salário mínimo. Ao mesmo tempo, mantém-se o  desconto previdenciário para os que deixaram de trabalhar,  como se disputassem novas aposentadorias, sabe-se lá se no céu ou no inferno.                                                      �Em paralelo, a equipe econômica já alardeia que os reajustes de  salários  vão minguar, ou melhor, não haverá nenhum este ano, para o funcionalismo. Jamais isso  acontecerá em anos eleitorais, assim, há esperança para 2012. Mesmo assim, encostarão na inflação,  na dependência dela não crescer muito. Mais ainda: os responsáveis pelos juros altos são os assalariados e os aposentados, não os especuladores e os banqueiros cujos lucros, em todas  as previsões,  só farão crescer.�                              �
No capítulo das reformas diabólicas, asseguram que desta vez virá a reforma trabalhista. Para restabelecer direitos surripiados nos oito anos do sociólogo? Nem pensar.  Para extinguir as poucas prerrogativas sociais que sobraram. Por exemplo: vão acabar com a multa por demissões imotivadas e  vão autorizar o parcelamento em doze vezes ao ano do décimo-terceiro salário e das férias remuneradas.  Como a cada ano os salário e vencimentos perdem parte de seu poder aquisitivo, em poucos anos as parcelas estão incorporadas à perda, ou seja, desaparecerão. 
Outra iniciativa a assolar o país no mandato da presidente Dilma está sendo a contenção dos gastos públicos, atendendo a exigências do poder econômico. Não apenas demissões em massa no serviço público e retomada do processo de privatizações, mas cortes em investimentos de infraestrutura, saúde, educação, habitação e congêneres.
Ninguém se iluda se, a prevalecer a cartilha dos neoliberais incrustados no governo, logo se propuser a privatização da parte da Petrobras que continuou pública, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica e até dos presídios, como já acontece com os aeroportos. 
Nada melhor do que para atender as exigências do PCC, do CV e congêneres, vender as cadeias à iniciativa privada.  Algumas vão virar hotéis de cinco estrelas, para os   bandidos que puderem pagar.  O resto que se vire…  
Numa palavra, ainda que verbalmente, os auxiliares econômicos  de Dilma Rousseff estão assinando uma nova “Carta aos Brasileiros”. Trata-se da  repetição de que desenvolvimento e crescimento econômico acontecerão às custas dos mesmos de sempre, porque está  guardada  para o fim a maior de suas pérolas: reconhecendo que a carga fiscal anda insuportável para quem produz e para quem vive de salário, voltam a prometer que  na reforma tributária em gestação farão com que  “mais cidadãos paguem impostos, para  todos os cidadãos pagarem  menos”.
Trata-se do  maior embuste produzido por esses  embusteiros. Significa que o pobrezinho, até hoje livre de impostos por não ter o que comer,  começará a pagar com um único objetivo oculto: aliviar a carga fiscal do grande, daquele que pode pagar e que ficará  profundamente agradecido por  pagar menos.  
Diante dessas previsões, só resta mesmo gritar aos sete ventos: “Acorda, Dilma! Eles enlouqueceram!”

sexta-feira, 24 de junho de 2011

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O cisne negro e o discurso do rei


Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
O filme O Discurso do Rei (dirigido por Tom Hooper) tem vários denominadores comuns com um outro filme, seu competidor, Cisne Negro (dirigido por Darren Aronofsky). Ambos lidam com temas referentes a matrizes importantes daquilo que se chama de "cultura" termo que no contexto artístico denota, com todos os preconceitos, refinamento ou "alta cultura". O filme sobre George VI, avô desse príncipe recém-casado com pompa e circunstância, lida com os dramas da aristocracia; já Cisne Negro trata da produção de uma nova versão do balé O Lago do Cisne, de Tchaikovsky. Em ambos os enredos, precisa-se de alguém capaz de desempenhar simultaneamente dois papeis e de realizar dois discursos.
No caso do rei, cujo apelido era Bertie, é preciso torná-lo capaz de falar em público com a segurança requerida de um príncipe e de um rei, algo tranquilo não fosse a gaguez impeditiva de realizar a banalidade que vira proeza. Pois Bertie só é capaz de produzir um discurso - o do filho e do marido. Algo trágico na medida em que ele é alçado ao papel de rei pela renúncia de seu irmão maior, o herdeiro do trono.
No Cisne Negro, o drama se assenta na incapacidade de uma bailarina tecnicamente perfeita, porém incapaz de desempenhar o papel do Cisne Negro, a dimensão transgressora do Cisne Branco. Porque ela não é capaz de realizar o papel infrator, mesmo num balé, nos mostra como o bloqueio desencadeia em Nina todo um surto psicótico que conduz à sua própria destruição.
Pela mesma lógica dos impasses emocionais, Bertie não é capaz de falar (e de ser um "Rei Branco") porque a sua dificuldade em discursar o leva a ser uma contradição em termos: um rei que personifica seu povo é impedido de comunicar-se com ele.
Como vencer esses impasses semelhantes ao do professor que detesta dar aulas (conheci alguns); do acadêmico que não consegue escrever livros geniais prometidos anos a fio (conheci vários), do amante que tem um surto de impotência num encontro amoroso mais do que sonhado (sei de três ou quatro casos e conheço um intimamente); do comandante congelado pelo medo no campo de batalha (vi isso no cinema muitas vezes); do amor realizado por ódio e por vingança contra o marido da ex-namorada (li isso num livro do Kundera); do herói acusado de um crime que procura sua culpa (leia Kafka), do culpado em busca de castigo (leia Dostoievski); ou da moça que escolhe não escolher mas, em vez de transformar-se em Anna Karenina ou Ema Bovary, vira a Dona Flor do saudoso e grande Jorge Amado - é isso que constitui a trama desses filmes. E por isso, emocionam.
Pois cada impasse produz um posicionamento. Há os que abrem e os que fecham. O do rei foi positivo. Em vez de fechar-se em si mesmo, ele, com ajuda da mulher, (sua grande ponte para o mundo) procura um terapeuta que, sendo um amigo especial - uma pessoa à qual se conta tudo -, engendra a confiança. Essa corda que permite descer pela janela sem o esborrachar-se no piso do radicalismo e da negação. E todo radicalismo é, de fato, uma negação. Já o caso da bailarina é mais complexo. No seu mundo, há apenas um diretor ambicioso, amigas competitivas e uma mãe dominadora e ex-bailarina competitiva que impede que a filha faça um caminho diverso do seu.
Eis um quadro curioso, cuja simetria me lembra um daqueles saudosos ensaios de Claude Lévi-Strauss. De um lado, um príncipe gago que não pode ser rei porque só se entra nesse papel produzindo um solene juramento numa abadia, num ritual que é apenas pompa e circunstância - essas coisas cuja emoção é justamente suprimir a emoção. Do outro lado, temos a bailarina ultrapreparada, mas incapaz de revelar as emoções necessárias ao papel de um cisne transgressor. Num caso, um excesso de emoção impede o desempenho de um papel herdado e, vejam a tragédia, não escolhido, mas que tem de ser desempenhado. Noutro, há uma ausência de emoção a qual corresponde a um excesso de técnica que, por sua vez, impede o desempenho de um papel escolhido e desejado.
Em paralelo, há uma ênfase no ouvido e na visão. No entendimento pela conversa franca e honesta que liberta e tira o pó debaixo do tapete, pois até mesmo aristocratas têm problemas, a dificuldade é ultrapassada. No caso do cisne, entretanto, há uma predominância do olhar cujos reflexos reiteram ao personagem as distorções de sua vida.
Alguém disse, faz tempo, que a passagem do ouvido e da leitura para a imagem nua e crua era o começo de tragédia e um prenúncio de fim de um mundo. Esses filmes, especialmente o segundo, não chega a tanto. Mas acentua a necessidade do outro como um guia. Como um ouvinte que impede destruir as pontes entre nós e esses outros que se escondem dentro dos nossos corações. 


terça-feira, 14 de junho de 2011

Marina Silva descobre que o PV é apenas uma quadrilha


Marina Silva descobre que o PV não é um partido político, é apenas uma quadrilha que vive às custas do Fundo Partidário.

Carlos Newton
Reportagem de Bernardo Mello Franco, publicada na Folha de hoje, mostra que a ex-senadora Marina Silva deu um ultimato à direção do PV e retomou a ameaça de deixar o partido, caso o presidente José Luiz Penna não aceite abrir mão do cargo, que ocupa há 12 anos.
A ex-presidenciável estuda deixar o PV para ter liberdade de apoiar candidatos de agremiações diversas em 2012. E, mais para a frente, montar uma nova legenda – batizada temporariamente de Partido da Causa Ecológica. Como se sabe, Marina foi candidata à Presidência da República em 2010 pelo PV e, embora não tenha avançado ao segundo turno, conquistou quase 20 milhões de votos, número expressivo para seu partido.  
Bem, se Marina Silva acha que José Luiz Penna vai abandonar a presidência do PV, está muito enganada. Trata-se de um músico fracassado, sem emprego fixo. Nos últimos doze anos viveu às custas do PV, que inclusive pagava até as contas de luz, telefone e água da residência dele.
Com apoio de outros diretores, Penna fraudou sucessivas vezes a contabilidade do partido, aplicando os mais diversos golpes, que não passaram despercebidos à Justiça Eleitoral. Apesar disso, estranhamente ele continuou a desfrutar da confiança dos grandes líderes da legenda, como Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis e Aspásia Camargo, por exemplo.
Há alguns anos, quando foram descobertas pelos auditores da Justiça Eleitoral as múltiplas fraudes na contabilidade, vários dirigentes do partido se revoltaram contra José Luiz Penna. Todos foram expulsos, sem direito de defesa. Agora, Marina Silva até ameaça deixar o partido, e efetivamente terá de fazê-lo, porque Penna jamais abandonará a presidência.
Marina Silva descobriu agora que o PV não é um partido político. Na verdade é apenas uma quadrilha, que vive às custas do Fundo Partidário, que é formado pelos impostos dos cidadãos. E quando a Justiça aponta os prejuízos causados à legenda, Penna apenas pede desculpas e repõe o dinheiro, usando outros recursos do Fundo Partidário, o que configura impobridade administrativa. E ninguém toma providências. Ah, Brasil!

sábado, 11 de junho de 2011

"Trágica obsessão": a obra-prima de Brian De Palma

Brian De PalmaObsession, EUA, 1975 A TV Globo exibiu na semana passada Marcas da Vingança(Forever Mine, 1999), de Paul Schrader. O plano de abertura do filme, uma tomada geral da fachada de um suntuoso hotel em Miami, remete imediatamente ao primeiro plano de Trágica Obsessão (Obsession, 1975), obra-prima de Brian De Palma da qual Schrader havia sido roteirista. A diferença é que lá era uma igreja renascentista, e não um hotel luxuoso. Schrader certamente estava com Trágica Obsessão na cabeça quando filmou Marcas da Vingança, esse suspense vagabundo com cara de telefilme, mas com tiradas demise en scène ambiciosas que remetem a De Palma. Há similaridades óbvias na trama, além da tentativa de obter uma mesma exacerbação romântica. A primeira cena em que a loira aparece, real e insólita, carne e luz, despertando o romance e a tragédia num só plano, bem poderia estar em algum filme do De Palma. Foi inevitável, no dia seguinte, rever Trágica Obsessão, filme a partir do qual De Palma começa a retrabalhar mais direta e incisivamente o suspense hitchcockiano, algo que atingirá seu ápice em Dublê de Corpo (1984) e Síndrome de Caim (1992). Em Trágica Obsessão, o enredo é praticamente todo decalcado de Vertigo (o prólogo, inclusive, se passa em 1959, ano de lançamento do filme de Hitchcock). O protagonista, Michael (Cliff Robertson), é um grande empreendedor de Nova Orleans que perde a esposa Elizabeth e a filha Amy num seqüestro que termina em tragédia. Michael se sente culpado pelas mortes, que foram precipitadas pelo plano fracassado do qual ele aceitara participar para capturar os bandidos sem entregar o dinheiro do resgate. Dezesseis anos depois, em 1975, ele vai a Florença acompanhado de seu sócio Bob (John Lithgow). Lá, na famosa igreja de Santa Maria Novella, exatamente no mesmo lugar onde conhecera Elizabeth muitos anos antes, Michael avista Sandra, uma jovem mulher que é idêntica a sua falecida esposa. Ele a conhece, se apaixona e a leva para os EUA. Sandra também será seqüestrada, e Michael – mais uma vez confrontado à situação inicial do filme – tentará refazer o desenho do destino, livrar-se da culpa, corrigir as imperfeições e os erros que, no passado, resultaram na morte de sua esposa e, supostamente, de sua filha. Quem viu o filme sabe que Sandra se revela, na parte final, a filha de Michael, que não havia morrido e fora mandada para Florença por Bob, que é o grande vilão. Ela crescera achando que o pai era o responsável pela morte da mãe, e por isso topara o plano de Bob (movido por interesses financeiros) de se passar por uma desconhecida jovem italiana para seduzir Michael e se vingar dele. Essa bizarra reviravolta que revela Sandra como a filha de Michael já adulta demonstra o fracasso dele em sua tentativa de reverter o destino. O erro de Michael é o mesmo cometido por Scottie (James Stewart) em Vertigo: no intuito de salvar o Plano divino que uma ameaça tenebrosa parece querer destruir, o herói se torna o executor inconsciente desse contra-plano diabólico que julgava combater. A ida de Michael a Florença – “o berço da arte ocidental”, Bob lhe diz – faz parte de uma armadilha que ele ainda desconhece. Na primeira cena em que Sandra (interpretada por Geneviève Bujold, a mesma atriz que faz Elizabeth) aparece para Michael, ela está no alto de um andaime montado no interior da igreja, onde trabalha na restauração do afresco de uma Madonna pintada em 1328 por Bernardo Daddi. O lugar elevado onde ela se encontra funciona de certo modo como um palco, e desde já suas ações se tomam por representações. Ela representa uma personagem concebida sob encomenda para Michael, mas ele de nada desconfia, pois é guiado por uma ordem oculta, uma imagem ausente, ao contrário do pensamento aparentemente lógico que guia Bob (em várias passagens do filme, Bob reclama que Michael não liga para dinheiro, sobretudo porque abriu mão de contratos milionários somente para preservar intacto o gigantesco terreno onde construiu o parque memorial que abriga um monumento à esposa morta). Michael e seu sócio encarnam duas linhas de pensamento – e duas condutas de vida – opostas: o pragmatismo e o materialismo extremos, no caso de Bob, e o idealismo e o platonismo no caso de Michael, que vive encarcerado em sua própria lembrança por um sentimento de culpa retroativo, um trauma do passado que o aliena do mundo presente. A morte da pessoa amada funciona para ele à semelhança de um membro amputado, ainda suscitando intenções, desejos, mas intenções e desejos que se revelam, em seguida, investimentos objetais não realizáveis. A arquitetura resume tudo: os únicos espaços que combinam com Michael são as locações em Florença (cidade que respira outros séculos) e sua casa de estilo démodé em Nova Orleans, ao passo que Bob já parece perfeitamente adaptado ao prédio moderno da firma. A cabeça de Michael está em 1959 (ou talvez até antes, em outra vida), e não em 1975. Nova Orleans em si, com as características conservadoras de uma cidade do sul dos EUA, é um velho mundo dentro do Novo Mundo. Num discurso na cena de abertura do filme, Michael afirma que espera, no projeto grandioso que está em vias de concretizar, conseguir dirigir sua energia e sua ambição inovadoras para a preservação dos valores do “Old South”. Em outras palavras, ele é um restaurador: restaura épocas, da mesma forma que Sandra restaura pinturas.No primeiro diálogo entre Sandra e Michael, ela explica que uma infiltração danificou partes da pintura que está a restaurar e revelou, por trás desta, uma outra imagem da Madonna, anterior, mais antiga, talvez uma pintura totalmente diferente, talvez um esboço do pintor para essa mesma obra, não se sabe ao certo. Entre desvendar o mistério da pintura anterior e preservar a beleza da pintura mais recente, os restauradores ficaram com a segunda opção. “O que é belo deve ser preservado”, concorda Michael. A cena resume não só o enredo (Sandra, à semelhança da Virgem pintada na igreja, é também uma imagem que veio depois, e sob a qual jaz uma imagem precedente, sendo que Michael não quer investigar o enigma dessa semelhança, quer apenas desfrutá-la), mas principalmente a lógica de criação do filme: a representação como um efeito de dupla visão, de sobre-impressão de duas imagens, de modo que se possa ver na projeção presente, como nas porções deterioradas do afresco, a imagem que veio antes, a imagem que obceca. Michael quer ver em Sandra a imagem projetada de seu desejo, sua aventura consistindo em tentar obter uma imagem ideal a partir dessa substância impura que é o corpo. Ele deve remodelar, no material de que dispõe, as partes que não correspondem ainda à Idéia, corrigir os erros das aparências naturais. Numa conversa, Sandra pergunta como era Elizabeth. “Muito parecida com você”, diz Michael, “mas ela andava de um jeito bem diferente”. “Diferente como?”, Sandra pergunta. Ele sugere que ela suba as escadas logo à frente, e começa a corrigi-la, pedindo que deslize de maneira mais suave, mais “clássica”. Michael estará, desde então, empenhado em fabricar uma mulher a partir de outra, assim como De Palma fabrica um filme a partir de outro. Ambos ousam rivalizar com a obra original (do destino, da natureza, da criação divina, da criação artística), ousam crer na possibilidade de buscar o aperfeiçoamento dessa obra. Não custa lembrar que a teoria da arte no período do Maneirismo histórico (com o qual De Palma dialoga explicitamente no filme) distingue o ato de “retratar”, que reproduz a realidade tal como se vê, e o ato de “imitar”, que a reproduz tal como se deveria vê-la. De Palma, em sua assumida posição de imitador, reivindica uma grande liberdade não só em relação ao objeto imitado, como também em relação aos códigos da representação naturalista (é emblemática a cena em que, para mostrar um flash-back da infância de Sandra/Amy, De Palma utiliza a própria Geneviève Bujold no papel da criança, causando um enorme estranhamento). O reino da imagem em que Obsessão se instala é puro prazer e gozo estético. Mas há de se destacar duas coisas. A primeira é que De Palma ama a vulgaridade do corpo, a disposição viciosa da carne, o que por si só impossibilita o projeto de seu personagem de encontrar a imagem idealizada que procura. A segunda é que todo prazer, uma vez ultrapassado seu limite, descamba em sua negação, o desprazer: não fica claro se Michael e sua filha chegaram a ter uma relação sexual, mas a simples dúvida que se instaura, aliada ao fato de que, independentemente do sexo, eles conviveram como amantes, é suficiente para plantar o terror e o mal-estar no abraço final de reconciliação, quando ela o chama de “papai” em meio a um delirante e infindável travelling circular que vislumbra o êxtase romântico à mesma medida que afirma o despertar doloroso da consciência – a cicatriz interior do drama interfere no mundo onírico do déjà-vu hitchcockiano e o perturba profundamente, irreversivelmente. De Palma opera uma anamorfose grotesca da trama deVertigo. Existe aquela fórmula de Marx lembrada por Stéphane Delorme num texto sobre Redacted: a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A tragédia luciferiana de Scottie, portanto, só podia se repetir como farsa (uma farsa edipiana, por assim dizer), e De Palma leva isso às últimas conseqüências em sua extraordinária releitura de Vertigo.





LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR Publicado na revista eletrônica CONTRACAMPO.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Roberto Gurgel pensou primeiro em sua carreira


quinta-feira, 09 de junho de 2011 | 05:10

Investigação contra Palocci prossegue, conduzida pelo procurador Paulo José Rocha Júnior, um nome a ser lembrado como exemplo de lisura e competência.

Carlos Newton
Agora, com Palocci definitivamente fora do governo, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, anuncia que vai enviar à seção da Procuradoria da República no Distrito Federal as informações prestadas pelo ex-ministro Antonio Palocci. Como se sabe, independentemente da decisão que ia ser tomada por Gurgel, muito antes a seção do DF já havia aberto um inquérito contra o então chefe da Casa Civil, por improbidade administrativa.
Gurgel ficou mal no episódio e tenta se limpar, dizendo que “é da tradição do Ministério Público, infelizmente, que as suas manifestações nem sempre agradem. Ora agrada uns e desagrada outros; ora desagrada outros e agrada uns. É exatamente o que aconteceu”. E acrescentou: “O Ministério Público não pode se pautar para causar simpatia, mas pelo que ele entende que é o exercício exato e correto da sua atribuição”.
No caso de Palocci, Gurgel ressalvou que ao procurador-geral da República cabia examinar matéria tão-somente criminal. “E foi o que eu fiz. Destaquei que há um inquérito civil público instaurado exatamente para apurar eventual ato de improbidade administrativa” – afirmou.
Assim, para inocentar Palocci na esfera criminal, o procurador-geral alegou que não havia na lista de “clientes” nenhum que caracterizasse aquela hipótese em que a atividade do parlamentar é vedada. “A Constituição prevê que quem está no exercício do mandato parlamentar não pode ter contratos com o poder público”, justificou, como se isso constituisse crime (mas não constitui).
 E quer dizer que o ilustre jurista somente se preocupou com a parte criminal (uma desculpa realmente bisonha), porque a seção do DF da Procuradoria-Geral da República já havia iniciado um inquérito contra Palocci por improbidade? Foi isso?
Ora, o que o procurador Paulo José Rocha Júnior fez, ao abrir a investigação por conta própria, foi um ato de rebeldia funcional. Sabia que existiam os requerimentos dos partidos de oposição, já encaminhados ao procurador-geral Gurgel, que é seu superior, mas se adiantou e abriu o processo, com base apenas no noticiário da imprensa e nas próprias explicações oficiais da Casa Civil.
O procurador Paulo José Rocha Júnior cumpriu o seu dever, não se curvou aos interesses do governo nem do procurador-geral. Buscou diretamente a verdade, sem intermediários nem escalas. Deu à nação um exemplo de independência e lisura que nos conforta, nessa fase de inegável decadência política.
Enquanto Roberto Gurgel jazia sentado sobre os requerimentos da oposição, redigindo as 37 laudas mais inúteis de sua carreira, Rocha Júnior já havia até intimado a empresa de Palocci (Consultoria Projeto) e a Receita Federal a entregarem até o próximo dia 16 as respostas aos ofícios da investigação acerca do enriquecimento do ministro, perdão, ex-ministro.
Rocha Júnior cobrou da Projeto os seguintes documentos: escrituração contábil, contratos de prestação de serviços e possíveis aditivos, e comprovantes da prestação de serviços feitos, incluindo cópias de pareceres, atas das reuniões e atestados de recebimento.
Da Receita, a Procuradoria cobrou cópias da declaração de Imposto de Renda da consultoria Projeto desde sua criação, em 2006. (Segundo a Receita, o pedido será “respondido na forma da lei”, sem esclarecer se entregará ou não os documentos requisitados, ora vejam só).
Agora, Gurgel se esconde atrás da competência e da honradez de Rocha Júnior, para alegar que pode até enviar à Procuradoria no DF os documentos que recebeu de Palocci, inclusive a lista de clientes. “Eles (os procuradores) já tinham feito uma solicitação dos mesmos documentos. Se não houver duplicidade, vou enviar sim” – disse Gurgel, acrescentando que as informações não serão disponibilizadas a mais ninguém, pois são dados sigilosos. E adianta que, entre os clientes, não havia nenhum relacionado ao poder público.
Para Gurgel, foram “extremamente injustas” as críticas à decisão de arquivar a representação criminal contra Palocci por falta de provas. “O procurador-geral da República se manifesta de acordo com sua convicção. Foi o que eu fiz no caso, apesar dos julgamentos feitos pela imprensa. Fiz isso com a mesma firmeza contra o ministro Palocci no caso do caseiro” – declarou, dizendo que já está acostumado com esse tipo de reação.
Firmeza? Houve tanta firmeza na investigação do caso Francenildo? Na verdade, houve tão pouca firmeza que Palocci escapou incólume. Só agora, seis anos depois, é que a Caixa Econômica Federal comunicou que a ordem para quebrar o sigilo do caseiro partiu do próprio ministro da Fazenda e não de seu assessor Marcelo Netto. Se tivesse havido firmeza naquela época, a Caixa não teria sonegado a informação decisiva, Palocci seria condenado e estaria hoje fora da política, sem condições de prestar tão generosas consultorias. E o caseiro já teria sido indenizado pelo mal que Palocci e sua quadrilha fizeram a ele, covarde e impiedosamente.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Os fantasmas de Clint Eastwood


JOÃO PEREIRA COUTINHO 

Se "Além da Vida", que a crítica desprezou, não é uma obra-prima do cinema atual, chore por mim, leitor



VALERÁ A pena ler críticas de cinema? Falo das críticas conceituadas de jornais conceituados. Tenho dúvidas.Um exemplo: meses atrás, assisti a "Invictus", de Clint Eastwood. Não gostei.Nelson Mandela pode ser figura importante na história sul-africana, mas, para santos, prefiro visitar a língua de santo Antônio, conservada numa redoma de vidro, na belíssima cidade de Pádua. Quando Clint Eastwood dirigiu o filme seguinte, "Além da Vida", auscultei opiniões: antes de marchar para a sala, queria precaver-me de desilusões terminais.Não há nada mais triste do que assistirmos à decadência de um diretor que admiramos. David Lynch, Francis Ford Coppola, Gus Van Sant -o meu cemitério é longo.As críticas a "Além da Vida" eram piores do que imaginava. Nos Estados Unidos, havia uma mistura de compaixão e desânimo com Clint Eastwood. Na Inglaterra, o tom piorava: desprezo e mesmo sarcasmo.Clint sucumbira a meditações espíritas e estava, numa palavra, acabado. Só os franceses salvavam a honra do convento. E, mesmo eles, com reservas.Desisti de "Além da Vida" -como, admito, desisto de grande parte do cinema comercial em exibição nas salas.Mas uma noite, em casa, alguém passou o filme em DVD. Abreviando: se "Além da Vida" não é uma obra-prima do cinema moderno, chore por mim, leitor. Sou eu quem está acabado.Antes do enterro, porém, permita-me uma defesa."Além da Vida" centra-se na história de George, um operário americano que possui poderes mediúnicos que o permitem contatar com os mortos. Um fardo, um pesado fardo que ele transporta como Sísifo transportava a sua pedra -e que Matt Damon personifica com uma desolação magistral.Ironia: a capacidade de se ligar com os mortos é o impedimento principal para que George se ligue com os vivos.E uma sequência do filme resume essa maldição de forma só acessível aos criadores de gênio: quando George conhece Melanie (Bryce Dallas Howard), a convida para sua casa e, por insistência dela, toma as suas mãos e espreita para o seu passado. Se o leitor não desabar emocionalmente com a sequência, acredite, o melhor é legar o seu corpo à ciência ainda durante a vida.Paralelamente à história de George, duas outras histórias: a de Marie (Cécile de France), jornalista francesa que sobrevive a um tsunami mas não à experiência aterradora de ter visitado, por breves momentos, o que existe do outro lado; e a de Marcus (Frankie McLaren), cuja perda do irmão será o início de uma busca desesperada para contatar com ele.Resumido assim, pode parecer que "Além da Vida" é um filme sobre mortos. Nada mais errado. "Além da Vida" é tanto sobre mortos como as fábulas de Charles Dickens são sobre fantasmas.E não é por acaso que o George do filme tem um gosto especial pela literatura de Dickens. Os bons espíritos sempre se encontram: a literatura fantástica de Dickens, e em especial o seu "Christmas Carol" que o filme evoca na visita final à casa-museu do escritor, apenas permite que os fantasmas corrijam o rumo perdido dos vivos.Corrigir o rumo: não há tema mais caro no cinema de Clint Eastwood. Essa busca de uma ordem existencial ameaçada que leva o pistoleiro Bill Munny a vingar as prostitutas desfiguradas em "Os Imperdoáveis"; que leva o pequeno Phillip a sacrificar o seu amigo (e sequestrador) Butch em "Um Mundo Perfeito"; que leva Walt Kowalski ao supremo sacrifício em "Gran Torino".E que levará George, através do seu desgraçado dom, a devolver a graça a Marie e a Marcus. E, devolvendo-lhes a eles a possibilidade de uma vida, a redimir-se por eles e com eles.Como no citado conto de Charles Dickens, o fantasma do futuro só aparece no fim -quando o passado e o presente já assombraram o avarento Ebenezer Scrooge.O mesmo acontece em "Além da Vida". Só que esse futuro não é feito de solidão e terror; mas de reconciliação e esperança.É o único momento em todo o filme em que George abandona as grilhetas passadas e presentes que o visitam e atormentam. E se permite a imaginar um futuro para si também.