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domingo, 17 de julho de 2011

A escrita de um homem vulnerável


FRANCISCO QUINTEIRO PIRES - NOVA YORK
Movido pelo desejo de simplicidade, Ernest Hemingway (1899- 1961) saiu de Paris para presenciar uma tourada em Pamplona, na Espanha. O ano era 1923. Ele queria ver sangue correndo e assim aprender a ser um escritor mais consciente do seu ofício. "Uma das coisas mais simples e fundamentais é a morte violenta", declarou o ficcionista americano, consagrado nas décadas seguintes como praticante da prosa enxuta. Imaginava ele ser o duelo fatal entre touro e toureiro o momento ideal para ter uma perspectiva do mundo inteiro em um só lance - a escrita era para ele exercício de condensação. Depois da visita a Plaza de Toros, Hemingway se tornou um amante das touradas. E reforçou a fama de machão, inseparável da lenda do escritor que acumulou sucesso e orgias alcoólicas.
Reprodução
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Letra por letra. Ernest Hemingway
Essa reputação pode mudar em outubro com o lançamento de The Letters of Ernest Hemingway - Volume 1, 1907-1922. Desenvolvido desde 2002 na Pennsylvania State University, o Hemingway Letters Project encontrou, catalogou e compilou mais de 6 mil cartas do escritor que se matou há 50 anos com um tiro na testa disparado por sua arma preferida. Coordenado pela professora Sandra Spanier, o projeto resultará em 18 volumes de correspondências a ser publicados em ordem cronológica nos próximos 15 anos. Cada tomo tem a previsão de conter de 500 a 700 missivas.
"O primeiro desafio foi localizar as cartas. Hemingway não mantinha cópias, por isso trabalhamos como detetives para chegar às correspondências enviadas para familiares, amigos e colegas ao redor do mundo", diz Sandra em entrevista ao Sabático. A maioria das epístolas, mais de 3 mil, veio da Hemingway Collection da John F. Kennedy Presidential Library, em Boston, e de 75 bibliotecas espalhadas pelo mundo. Cerca de 400 foram obtidas de colecionadores privados. Mais de 100 missivas trocadas com a família foram cedidas em 2008 pelo sobrinho de Hemingway, filho de sua irmã preferida, Madelaine, a Sunny. O restante estava entre os papéis pesquisados por Sandra em Finca Vigía, casa em Cuba onde Hemingway morou de 1939 a 1960.
Em 2001, a professora da Penn State University se tornou a primeira entre os especialistas norte-americanos a acessar os arquivos da casa, que escondiam cadernos de anotações, fragmentos de rascunhos, revisões de livros manuscritos, receitas culinárias, além de um epílogo rejeitado do romance Por Quem Os Sinos Dobram. Hemingway era um literomaníaco. Escrevia em todo lugar, das margens dos livros às paredes da casa.
Esse material foi o que sobrou da meia tonelada de papéis removida de Finca Vigía após o suicídio ocorrido em Ketchum, no Estado de Idaho, em 2 de julho de 1961. A publicação dos volumes tem potencial de explicar melhor o lugar de Hemingway na cultura cubana e sua relação com os cubanos, aos quais doou a medalha do Prêmio Nobel de 1954. Os tomos também são fonte indispensável para a restauração da casa de Finca Vigía, transformada em museu e uma das atrações turísticas mais famosas de Cuba, pois Hemingway anotou em correspondências as reformas pelas quais o imóvel passou.
Segundo Sandra, 85% das 6 mil cartas até agora descobertas pelo projeto nunca foram publicados. Elas escondem um homem de várias facetas, reduzidas ao longo dos anos à imagem unidimensional do correspondente de guerra; do sobrevivente de duas quedas de avião; do boêmio inveterado; do caçador viril; do apreciador da luta do homem contra o semelhante e contra as forças da natureza. "Hemingway era mais complexo, sensível e interessante do que a sua persona pública costuma sugerir. As cartas apresentam um homem real, em contraste com o mito." O primeiro volume inicia-se com revelações sobre a infância e juventude de Hemingway em Oak Park, região de brancos protestantes perto de Chicago, em Illinois.
"Hemingway deixa transparecer vulnerabilidade e sensibilidade nas relações amorosas, além de afeição e cuidado genuínos pelos pais e irmãos", diz Sandra. "Agora temos um entendimento mais rico e completo das relações dele com os pais, os cinco irmãos, as quatro esposas e os três filhos. Ele nutriu o desejo de ser um bom filho e um bom irmão." As cartas escritas entre 1907 e 1922 contradizem a imagem de Hemingway como alguém afastado da família, apesar do desentendimento posterior com os progenitores que rejeitaram os seus romances, por considerá-los vulgares. Hemingway escreveu sobre o primeiro divórcio e o affair com Pauline Pfeiffer, que seria a sua segunda esposa, mesmo sabendo que essas revelações desagradariam aos pais conservadores. O escritor não se escondeu nas correspondências. Preferiu a honestidade cortante, por vezes selvagem. Chegou a rogar por fofocas familiares, ao se corresponder com a irmã Madelaine, que em 1975 publicou o livro Ernie: Hemingway’s Sister Sunny Remembers. "Deixe escorregar até mim a sujeira em toda a sua totalidade", pediu como resposta.
Esse desejo genuíno de saber é um dos valores literários mais caros a Hemingway. Um escritor deve viver antes de escrever: o corpo testemunha primeiro o que é elaborado posteriormente pela imaginação. Para ele, a ficção será verdadeira na proporção do conhecimento ou da consciência do ficcionista sobre a vida. Não por acaso, seus livros mais importantes, O Sol Também se Levanta (1926), Adeus às Armas (1929), Por Quem Os Sinos Dobram (1940) e O Velho e o Mar (1952), todos publicados no País pela Bertrand Brasil, nascem de experiências pessoais. Outra fonte fundamental para o desenvolvimento do talento ficcional foram as leituras incessantes, segundo Sandra. "As cartas mostram desde cedo a seriedade de Hemingway com a vontade de ser escritor - existe uma devoção a esse ofício", ela diz. "Descobrimos como ele era erudito, apesar de não ter ingressado na universidade. Ele era um autodidata insaciável."
Além da devoção aos familiares, o volume 1 registra os primeiros passos como jornalista do Kansas City Star, entre 1917 e 1918. Apresenta os traumas e aprendizados do voluntariado como motorista de ambulância na Itália durante a 1.ª Guerra Mundial, além da paixão por uma enfermeira em um hospital de Milão, onde se recuperava de ferimentos nas pernas causados por uma explosão. Dessa experiência resultou o romance Adeus às Armas. Em seguida veio o retorno aos Estados Unidos.
Dois anos depois, casou-se com Hadley Richardson, primeira esposa, mudando-se para a França. Em 1922, ele passou a integrar a comunidade literária expatriada de Paris, travando contato com Gertrude Stein, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, Ford Madox Ford, John dos Passos, além de Sylvia Beach, dona da livraria Shakespeare and Company. A passagem pela cidade luz está registrada em Paris É Uma Festa (Bertrand Brasil), livro de memórias publicado postumamente, em 1964.
Previsto para ser lançado em 2012, o volume 2 reunirá correspondências escritas entre 1923 e 1925, quando o escritor se estabeleceu na cena literária parisiense e começou a publicar os seus romances. Assim como o primeiro, o segundo tomo terá anotações sobre cada carta, explicando as referências a lugares, pessoas e eventos relacionados à vida do Papa, apelido pelo qual gostava de ser chamado.
Sandra cita como preferida a epístola escrita em 14 de fevereiro de 1922 e endereçada à mãe, Grace Hall Hemingway, na qual o ficcionista relata o fascínio pela vida parisiense. "Ele era um jovem do meio-oeste americano perturbado com as paisagens e experiências oferecidas pela capital da França", diz Sandra. Nessa carta, escreveu: "Paris é tão bonita que satisfaz algo em você que os EUA deixam sempre com fome." Afirmou ser Gertrude Stein "entusiasta da sua poesia". Contou ter tomado chá com Ezra Pound, que lhe "pediu um artigo sobre a literatura contemporânea nos EUA". Segundo Sandra, as cartas mostram "Hemingway se tornando Hemingway" e desvendam segredos bem guardados de "um prosador revolucionário que narrou a história do século 20".

Romance revisita o amor constante do ficcionista por ParisErnest Hemingway se transformou drasticamente depois de morar na Paris dos 1920. Esse período, que ele registrou em Paris É Uma Festa (1964), figura como mote de um livro recém-publicado nos Estados Unidos, com boa performance nas livrarias. Trata-se deParis Wife (Ballantine Books, 336 págs., US$ 25), de Paula McLain. Esta semana, a obra aparecia em 14º lugar entre os mais vendidos de ficção segundo o jornal The New York Times. O romance tem como narradora Hadley Richardson, a primeira esposa de Hemingway. Ela era uma mulher pacata, de 28 anos, que morava em Chicago antes de conhecer o aspirante a escritor, sete anos mais jovem. A personagem conta as dificuldades e os prazeres do casal em Paris. A esperança de uma vida familiar tradicional se mostrou impossível. O autor de O Velho e o Mar casou com quatro mulheres diferentes, mas teve apenas um amor constante - Paris. / F.Q.P.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Aécio e Kassab: duas xeroxs


Sebastião Nery
BELO HORIZONTE – A historia de Juscelino foi uma guerra, naquela Minas plácida e sonolenta do século passado. Nascido em Diamantina em 12 de setembro de 1902, filho de caixeiro-viajante e professora, órfão de pai tuberculoso ainda criança, seminarista, telegrafista, estudante de medicina, em abril de 1930 ganhou bolsa e foi para Paris.
Voltou no fim de 30, abriu consultório em Belo Horizonte, entrou para a Policia Militar como medico e participou da “revolução de 32” contra os paulistas, ao lado de Benedito Valadares, depois nomeado por Getulio interventor. JK foi ser chefe de gabinete e não saiu mais da política.
Em outubro de 34, deputado federal mais votado de Minas. Golpe em 37, volta à medicina. Em abril de 40, prefeito de Belo Horizonte.
***
JUSCELINO
Em dezembro de 45, novamente o mais votado do Estado para a Constituinte de 46. A UDN esperava que Pedro Aleixo, presidente do partido, fosse o deputado mais votado na capital. Ou Milton Campos. Foi Getulio : 12.208 votos. Segundo, Juscelino : 7.024 votos. Terceiro, Milton Campos : 4.134. JK era o segundo depois de Getulio. Luz e maldição.
Herdeiro eleitoral evidente de Vargas (João Goulart ainda estava no Rio Grande), Juscelino atraiu contra ele toda a fúria da UDN, que então comandava a maioria da imprensa nacional. Não era só Carlos Lacerda na “Tribuna da Imprensa”. Era o “Diario de Noticias” dos Dantas, “O Globo” dos Marinho, o “Estado de S. Paulo” dos Mesquita.
Ganhando o governo de Minas com Milton Campos em 47 contra Bias Fortes, do PSD,a UDN mineira começou cedo a guerra de 50, quando sabia que Getulio seria candidato imbatível a presidente e JK a governador. Lançou Gabriel Passos, concunhado de JK, casado com uma irmã de dona Sarah, e tentou ajudar o melancia Carlos Luz, metade PSD metade UDN, a ser o candidato do PSD. Juscelino venceu a convenção e a eleição.
***
UDN E PSDA batalha final foi transferida para 55. Juscelino já assumiu o governo do Estado em 50 candidato a presidente em 55. Getulio se matou,
Café Filho assumiu, a UDN tomou conta do governo, Lacerda dava as ordens. Nereu Ramos, presidente da Camara dos Deputados, propôs a Juscelino uma reunião do PSD no Rio. Lá estava o presidente do partido, Amaral Peixoto, e, entre outros, o governador de Pernambuco, Etelvino Lins, do PSD, mas corpo e alma de udenista. Etelvino propôs o adiamento das eleições de 3 de outubro para o Senado, a Camara e as Assembléias.
Alegava que, depois do suicídio de Vargas, o PTB teria uma votação em massa, que irritaria os militares. Com Etelvino, concordaram Nereu, Benedito Valadares, presidente do PSD de Minas, Lucas Nogueira Garcez, governador de São Paulo, outros. Era a tese de Lacerda, da UDN e de Raul Pila, do PL. Juscelino viu o ovo da serpente e vetou :
- “Como governador de Minas, lançarei mão de todo o poder que me confere o cargo para impedir que o calendário eleitoral seja alterado”.
Recuaram. Houve as eleições e nada aconteceu do que diziam : o PSD tinha 112 deputados passou para 114. A UDN com 84 caiu para 74. O PTB com 51 subiu para 56.E Jango perdeu o Senado no Rio Grande do Sul.
***
BENEDITOMas era preciso saltar primeiro os obstáculos de Minas. Benedito Valadares, chefe do PSD de Minas, morria de medo dos militares e não queria Juscelino de jeito nenhum. E JK dependia de ser aprovado primeiro pela Executiva Estadual. Depois de tensas horas trancados numa reunião dramática até a madrugada, ainda me lembro da cara emburrada, de boi chuchado, de Benedito, cabeça baixa, humilhado, pálido, saindo lá de dentro derrotado, pela primeira vez, no partido. Por um voto.
Afinal, em 10 de fevereiro de 55, dos 1.925 delegados da convenção nacional, 1.646 aprovaram a candidatura de JK. Contra, unânimes, os diretórios de Pernambuco (Etelvino), Santa Catarina (Nereu), Rio Grande do Sul (Perachi Barcellos), 160 da Bahia (Antonio Balbino), e 26 do Rio.
Em 27 de janeiro, a “Voz do Brasil” divulgou documento em que “militares apelavam por um candidato único e civil”. Juscelino respondeu com um discurso duro : – “Deus me poupou do sentimento do medo”.
E saiu pelo pais pregando desenvolvimento e “50 anos em 5”.
Em 3 de outubro, dos 9.066.698 votos, Juscelino teve 3.077.411 (36%), Juarez 2.601.166 (30%), Ademar 2.222.725 (26%) e Plínio 714.379 (8%).
Em 31 de janeiro de 56, JK era o presidente da Republica. O golpe da UDN, de 50, 54 e 55, tinha sido mais uma vez adiado. Para 1964.
***
CORAGEMDesde Juscelino, Minas está escorraçada da presidência da Republica. Aécio Neves quer disputar 2014 com Dilma, falando em JK. O paulista Kassab criou um partido, chamou de PSD, usando JK. Querem ser duas xerox. Falta-lhes o que sobrava em Juscelino: coragem e verdade.

domingo, 10 de julho de 2011

Paris por Ferreira Gullar


A PARIS que primeiro se impôs à minha imaginação não foi, como no filme de Woody Allen, aquela onde viviam Scott Fitzgerald e Gertrude Stein, mas a de André Breton e Antonin Artaud. A época é a mesma -anos 20, diria-, porém, na minha cabeça, não era a mesma cidade a de uns e a de outros, mesmo porque Fitzgerald e Gertrude não eram franceses, mas norte-americanos que para lá se mudaram por razões artísticas ou, melhor dizendo, para se sentirem num mundo imaginário, a que também aspirava Gil, o personagem de "Meia-Noite em Paris". Já Breton, Artaud, Aragon, Péret eram franceses, parisienses mesmo, ainda que nem todos nascidos ali. A verdade é que a Paris em que viviam era bem mais real do que a dos arrivistas -se podemos falar assim-, no bom sentido.

Mas é, no mínimo, contraditório dizer que a Paris mais real era precisamente a dos surrealistas. É contraditório, mas compreensível, porque a cidade em que nos criamos, todos nós, e vivemos tem sempre um peso de realidade maior que o da cidade que conhecemos pelos livros. Os surrealistas desejavam incutir fantasia na Paris real; Fitzgerald, como Gil, queria viver, como sendo real, na Paris que inventou.

Já pesado demais para esses voos, via, nos surrealistas, mais irreverência e humor do que propriamente surrealidade, mais me divertia do que sonhava, ao ler aforismos como este: "Bate em tua mãe enquanto ela é jovem". Quando o li, numa revista francesa, na sala de leitura da Biblioteca Nacional, no Rio, fui tomado por um risinho incontido, que provocou olhares atravessados de outros leitores ali presentes. Só que não consegui me conter e, tomado de um frouxo de riso, saí da sala e fui sentar-me na escadaria da biblioteca. Uma senhora, que subia os degraus, olhou-me espantada -enquanto eu ria e repetia mentalmente: "Bate em tua mãe enquanto ela é jovem".

Nem todos os surrealistas, porém, eram engraçados. Antonin Artaud, por exemplo, sofria a contradição entre o corpo e o espírito, enquanto Jacques Vaché escreveu: "Vou me aborrecer de morrer cedo". E acrescentou: "Vocês todos são poetas, já eu optei pela morte". E se matou.


Muito diferente deles era Francis Picabia, que pintou "máquinas inúteis", espécie de complicadas engenhocas que não serviam para nada; uma gozação na tecnologia industrial. É dele, também, esta frase encantadora: "As flores e os bombons me dão dor de dentes".

Os surrealistas me faziam rir, às vezes me deslumbravam com seus versos ou suas pinturas, mas nem por isso desejei ir viver em Paris. Aliás, ganhei uma bolsa de estudos, mas preferi me casar e ficar em Ipanema. Antes disso, conhecia pessoalmente o poeta surrealista Benjamin Péret, que se havia casado com a cantora brasileira Elsie Houston, irmã de Mary, mulher de meu amigo Mário Pedrosa. E a coisa ficou mais real ainda quando o prenderam ao chegar ao Rio.

É que havia uma ordem de prisão contra ele, emitida nos anos 30, quando foi acusado de atividades subversivas. Fui visitá-lo na prisão e o entrevistei para a revista "Manchete". Mal-humorado, fez mixar qualquer ilusão que eu alimentasse pelo sonho surrealista. A obra, em geral, é melhor que o autor.
Por isso mesmo adorei o filme de Woody Allen, que nos mostra uma Paris de sonho, mais surreal do que aquela em que viviam os surrealistas. Trata-se, na verdade, de um conto de fadas: à meia-noite, após as 12 badaladas, surge uma carruagem... Não, neste caso, é um automóvel dos anos 20, que vem ao encontro de Gil, numa viela deserta.

Nele estão Scott Fitzgerald e Zelda, sua mulher, para a surpresa e encantamento do rapaz, que sonhava se tornar romancista, embora fosse um roteirista de sucesso em Hollywood. Eles o levam ao encontro de Gertrude Stein, Pablo Picasso e Salvador Dalí... como, certamente, um dia o desejou o próprio Woody Allen em sua primeira visita a Paris.

E, naquela tarde de sábado em Botafogo, fomos também, a Cláudia e eu, levados, na sala escura, a viver uma aventura irreal, num tempo outro e mais real do que o que nos esperava lá fora, finda a sessão de cinema. E, de fato, saímos para a realidade da nossa vida que, no entanto, já não era a mesma de quando entráramos no cinema.

 

"Hiroshima mon amour", de Alain Resnais



Quem nunca viu Hiroshima mon amour tem um belo handicap em cinema (André Setaro)

TEXTO DE JOSÉ CARLOS AVELLAR
Talvez se possa dizer mais, que o espectador brasileiro tem a sensação de que estas duas frases de duplo sentido, se referem tanto à cidade que quase acabou com a bomba quanto ao filme que apenas começa, representam a experiência do espectador diante de Hiroshima meu amor. Enquanto a imagem está acesa na tela ele é conduzido pela voz da mulher; terminada a projeção, a voz do homem reaparece na memória: você não viu nada em Hiroshima. Esta sensação talvez continue a mesma hoje, cinquenta anos depois da primeira projeção pública de Hiroshima meu amor em maio de 1959, no Festival da Cannes. 
Quando surgiu, o primeiro filme de longa-metragem de Alain Resnais provocou entusiasmo e desconcerto. O seminário de Bruxelas, em janeiro de 1960, e o livro coordenado por Raymond Ravar dois anos mais tarde prosseguiram a discussão aberta em Cannes. E entre nós, em torno das primeiras exibições idêntico entusiasmo.

Antes da estréia do filme no Brasil, Paulo Emílio Salles Gomes escreveu cinco textos no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo (nos dias 7 e 14 de maio, 4 e 25 de junho e 2 de julho de 1960). O penúltimo texto conclui com uma frase que dá a tônica de todos os outros:
“É difícil escrever sobre Hiroshima mon amour”.
Depois da estréia, José Haroldo Pereira, na “interpretação cinematográfica de um filme superior ao cinema” (Revista de Cinema de Belo Horizonte, janeiro / fevereiro de 1961, páginas 5 a 12), fala da “dificuldade de analisar a complexidade temática do filme” e de seu entusiasmo: “amo a obra de Alain Resnais / Marguerite Duras acima de todas as outras já vistas por mim na tela”.
Entre um texto e outro, David Neves (Hiroshima-Nevers: um itinerário, emO metropolitano, agosto de 1960) confessa: “guardamos ainda certa parte da perplexidade que nos assolou desde a primeira vez que o vimos, no mês de janeiro, em Belo Horizonte (...) O bouleversement provocado porHiroshima, mon amour é, em todos os aspectos, distinto daqueles que se originam nas manifestações da emoção estética pura”.

O enredo do filme pode ser resumido em três linhas ou esticado até uma história sem fim, anota Paulo Emílio. “Uma atriz vinda de Paris para trabalhar numa fita em Hiroshima, tem uma aventura amorosa e revive, através do amante japonês, a trágica experiência que tivera durante a ocupação em Nevers, na França, com um amante alemão. Tudo na película brota de um diálogo de amantes e a linha dramática se desenvolve através do pontilhar de recordações”. Deste modo, “a madrugada de amor em Hiroshima é inseparável da madrugada de morte em Nevers”. O espaço e o tempo “se dissolvem e a câmera percorre sem solução de continuidade Hiroshima e Nevers, 1945 e 1958”. A presença do amante japonês desperta a memória do amante alemão e “a lembrança do cataclismo que se abateu sobre Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945, quando em alguns segundos morreram duzentas mil pessoas.”

Memória: “como você, um lutei para manter uma memória inconsolável”, diz a voz feminina de Hiroshima, meu amor. E depois de um vazio conclui: “e como você, eu esqueci”.
Memória e esquecimento são a matéria dos filmes curtos de Resnais – observa José Haroldo – quase todos eles uma “meditação sobre um passado que desfila novamente (ou pela primeira vez) em nosso campo visual, num exercício talvez mais político que filosófico”. 
Para David Neves uma frase da personagem feminina
(l’oubli commencera por l’oeil / o esquecimento começará pelo olho)
é o motivo central “da construção interna e externa da fita. Todo processo interior de criação tem fundamento na capacidade intrínseca de imaginar (o próprio vocábulo encerra sua origem). O cinema, aqui, atinge pela primeira vez o ápice, nas investidas em busca da melhor exposição de nossos âmagos anímicos. Os pensamentos que se desenvolvem internamente em palavras, mesmo estes, possuem um background figurativo”. Sem dúvida, conclui David, “estamos diante de uma realização sui generis”, entre outros motivos porque “o método tradicional de percepção visual, pelo qual o espectador usufruía certo conforto, sofre violento desprezo”.

A personagem principal, para Paulo Emílio, “vive numa profunda desordem interior. A fita tem por vezes algo de uma sessão de psicanálise em que o divã foi francamente transformado em leito e o médico em amante”.
Mas o caso amoroso narrado em Hiroshima, meu amor “simultaneamente continua e inverte a moral que anima o pequeno ensaio sobre a cidade destruída”, acrescenta José Haroldo: “ao privilégio temático das tragédias coletivas se opõe o da tragédia individual, à necessidade da memória argumenta a necessidade do esquecimento, à abstração da montagem uma história concreta”. Haroldo observa que as falas dos personagens  “são frequentemente contraditórias: os pensamentos da moça somente obedecem ao seu estado de espírito do momento. Com idêntica sinceridade um pourquoi nier l'évidente necessite de la mémoire? (por que negar a evidente necessidade da memória?) se faz seguir de um il faut éviter de penser à ces difficultés que presente le monde quelquefois (devemos evitar pensar nas dificuldades que o mundo nos apresenta de quando em quando)”.

“Contradições, sim”. Para Resnais, “o filme inteiro se apóia em contradições. Vivemos todos num tempo marcado por contradições: pensamos uma coisa pela manhã e o oposto pela tarde, temos um sentimento pela manhã e outro pela tarde. Por isso me parece normal encontrar contradições numa obra”. Para o diretor o texto do começo do filme “não representa uma conversa real entre o homem e a mulher. É uma espécie de sonho, são vozes que vêm, ao mesmo tempo, do inconsciente dos autores e dos espectadores. Só mais tarde estas vozes se transformam nas vozes dos personagens principais. O começo do filme é uma espécie de travelling nas nuvens do inconsciente para que possamos nos aproximar dos personagens. É também uma maneira de criar um clima sensorial, de dar a esta história de amor um outro tom, uma outra ressonância. Queria provocar nos primeiros quinze minutos um incômodo semelhante ao do provocado por um pesadelo... Mas devo  acrescentar: tudo isso foi feito de modo intuitivo, absolutamente intuitivo.”
No seminário em Bruxelas, o diretor contou como começou a ver a história:
“É muito difícil dizer como nasce um filme. No começo existe uma imagem, um tema, uma atmosfera, uma forma geral, às vezes uma espécie de arquitetura. Quando comecei a pensar em Hiroshima meu amor sonhava com um filme a-cronológico, um filme em que o tempo, o espaço e a ação se modificassem inteiramente dentro da mesma cena, um filme em que a visão mudasse a todo instante. Cheguei a conversar sobre isso com Roger Vailland e com Alain Robbe-Grillet. Eu tinha sido convidado a fazer um filme sobre a bomba atômica, e depois de trabalhar com diferentes roteiristas me encontrava num impasse. Eu não queria fazer o décimo quinto ou o décimo sexto filme sobre o tema. O que eu queria mesmo era filmar Moderato cantabile de Duras, filmar para mim, em 16mm, para meu prazer pessoal. Então disse ao produtor que não dava para fazer mais um filme sobre a bomba atômica, e acrescentei: a não ser que Marguerite Duras se interessasse”...
“ Eles levaram a sério minha observação e organizaram um encontro com ela. Em nosso primeiro encontro eu disse para ela que poderíamos tentar fazer uma história de amor em que a angústia atômica estivesse presente. Falei também de uma certa noção de personagens que não participam diretamente da ação trágica, mas que se lembrem dela. Personagens que são testemunhas da ação. O japonês não viveu a catástrofe de Hiroshima, mas a conhece intelectualmente, tem consciência dela, assim como os espectadores do filme, assim como todos nós. Podemos interiormente sentir o que aconteceu mesmo sem jamais ter estado lá. Todos nós somos numa certa medida espectadores diante das catástrofes ou dos grande problemas de nosso tempo.”
“Penso que existe uma qualquer coisa estranha quando no cinema o espectador se vê diante de filmes como... por exemplo, Lanceiros da Índia[The lives of a Bengal Lancer, de Henry Hathaway, 1935], onde o herói explode uma fábrica de pólvora. Muito raramente temos ocasião de fazer algo assim, de explodir alguma coisa, de agir como um herói. Por isso, acredito, existe a possibilidade de desenvolver outros princípios dramáticos e de tentar colocá-los em ação.” 
Resnais disse mais, que levou a Marguerite Duras “uma vaga idéia de construção. O esquema de uma história de amor que se passa em Hiroshima e que evoca, numa montagem paralela, algo que se passou em 1944, durante a guerra. A rigor o que apresentei a Marguerite Duras foi uma coisa puramente abstrata. E um filme se faz sobre coisas concretas. Preciso ver os personagens para me interessar por eles. Preciso saber o que eles podem e o que não podem fazer. Existe uma imagem simples: a de uma árvore. Para que uma árvore se mantenha de pé, é preciso que possua raízes profundas. Mesmo que seja vista apenas durante um momento — e talvez, precisamente, porque évisto em vez de ser conduzido por palavras, o personagem de um filme deve também possuir raízes, ou seja, uma vida inteira por detrás dele. Foi por isso que, antes de começar a filmar Hiroshima, meu amor pedi a Marguerite Duras que escrevesse a história completa das personagens, o que chamei então de roteiro subterrâneo do filme.”

[“Habitualmente um diretor de cinema se pergunta se a história que ele quer contar pode ou não interessar ao público”, observou Marguerite Duras em depoimento para a revista francesa Image et son, em setembro de 1959. “Resnais, ao contrário, se pergunta se a história que ele quer contar interessa a ele, Resnais. Nos encontrávamos todos os dias e todos os dias ele me dizia se a história que desenvolvíamos lhe interessava ou não”.] 

E ainda, Resnais disse que o roteiro não estava concluído quando ele viajou para Tóquio em julho de 1958 para a escolha das locações, do ator e dos técnicos que iriam trabalhar no filme. De certo, quando viajou para o Japão, tinha apenas a participação de Emmanuele Riva. Ele e Marguerite concordavam, era a atriz ideal para a personagem. As cenas que se passam na França só foram escritas depois das filmagens no Japão – feitas em setembro.

“Marguerite entregou-se ao trabalho e quando voltei do Japão e assistimos às primeiras imagens achávamos, juntamente com os produtores, que talvez elas não se equilibrassem. Tentamos, então, desenvolver a parte francesa, e eu, por desencargo de consciência — mas com muita dificuldade — filmei cenas suplementares. Finalmente, tive de eliminar todas elas, porque estas cenas não tinham lugar no relato, pertenciam ao roteiro subterrâneo. A protagonista poderia tê-las vivido, mas não era verossímil que viesse a narrá-las.”
Duras, no citado depoimento para a revista Image et son, diz que Resnais trabalha como um escritor que escreve um romance, que procura deixar o espectador com a imaginação livre assim como a do leitor de um livro. Resnais concorda, e explica que vem daí o tom recitativo e os longos monólogos emHiroshima, meu amor. Diz que procurou recriar o universo romanesco de Duras, que o filme é tão dele quanto dela, que a mise-en-scène aqui é menos importante que o texto e o trabalho dos atores e o importante é despertar a imaginação do espectador assim como um romance desperta a do leitor.

“Quando lemos um romance temos a impressão (pelo menos num certo tipo de romance) que o escritor nos deixa uma grande liberdade, convida o leitor a não ser passivo. Eu estava com vontade de fazer um filme em que o espectador, ele também, se sentisse livre e estimulado a trabalhar com a cabeça para completar o filme pela imaginação. Existem romances que nem sequer descrevem a aparência física dos personagens. No cinema, no momento, é difícil, mas é uma possibilidade que me seduz: encontrar um espectador que não se deixe ficar hipnotizado na poltrona. Hiroshima é assim: se o espectador não acrescenta alguma coisa ao que viu ele parece um filme vazio.”

Ou, noutras palavras, se o espectador não trabalha tudo o que viu na imaginação a experiência dele pode ser resumida na primeira frase que se diz no filme: você não viu nada em Hiroshima.

Delphine Seyrig : Ano passado em Marienbad de Alain Resnais
Delphine Seyrig : Ano passado em Marienbad de Alain Resnais

2. Nada para ver em Marienbad

O primeiro filme de Alain Resnais provocou um certo desconcerto.
O segundo, Ano passado em Marienbad (L'année dernière a Marienbad, 1962), desconcerto ainda maior.
No palco, dois violinistas se apresentam para a pequena platéia da sala de concertos de um velho hotel imenso, luxuoso, barroco, lúgubre, onde corredores intermináveis se sucedem a corredores intermináveis, de acordo com o personagem que fala com voz sussurrada. Dois violinos, mas som de órgão. Os violinos não se fazem ouvir nem mesmo em segundo plano. A cena é o lamento do órgão e a voz – quase tão pausada, grave e rouca quanto a do órgão – de um homem que repete o que diz tal como uma melodia retorna à mesma frase: no ano passado ele esteve ali com a mulher que agora age como se não se lembrasse dele.
Órgão em vez de violino porque a imagem não é o que está à vista, é o ponto de vista. É a projeção da memória do personagem que fala para a mulher do ano passado, que continua com o mesmo jeito ausente e o mesmo gesto de estender o braço para frente como se fosse afastar uma criança ou o galho de um arbusto. O espectador vê não o que efetivamente vê, os violinistas, mas sim de que modo o personagem que fala vê os violinistas. Ou melhor, como ele olha mas não vê os violinistas. Como a câmera olha através dos olhos dele, tal como ele, ela vê um nada. Não um vazio, mas um nada. Ou um invisível: o passado na memória do homem ou o passado esquecido pela mulher, em fusão sobre o que a câmera revela. O visível é apenas um suporte para uma imagem interior. Ou, se realmente feito para os olhos, o visível se encontra numa etapa anterior àquela em que uma imagem se dá a ver. Nos violinistas presentes na tela vemos o passado, mas não como se estivéssemos lá, transportados numa das máquinas de explorar o tempo inventadas pela ficção cinematográfica - como a grande poltrona em forma de cérebro de Eu te amo, eu te amo (Je t'aime je t'aime, 1968). Em Ano passado em Marienbad estamos no passado sem sair do presente, simultaneamente lá e aqui, um pouco mais lá do que aqui no recital dos violinistas. Estamos num vazio no tempo, numa imagem que existe só para a retina e que é uma espécie de sombra de uma outra, a que realmente importa e que se encontra fora dela: o homem que vai ao encontro da mulher, o personagem que avança ao longo dos intermináveis corredores silenciosos e desertos, sobrecarregados de uma decoração sombria e gélida, de mármores, vidros escuros, colunas, pinturas de tons negros, que vai ao encontro dela que finge não se lembrar dele. 
Em quadro, violino sem som. 
Em quadro, órgão e memória. 

Em quadro, a recordação (a imagem visual) mais o personagem que se recorda (a imagem sonora). Violinos vistos pelo órgão, que é a voz e os olhos do homem uma outra vez nos corredores e salões do hotel, entre as paredes sobrecarregadas de uma ornamentação de outro século, no chão coberto de um tapete tão espesso que o barulho dos passos não chega aos ouvidos de quem caminha.  
Memória e música de órgão. Antes, uma introdução orquestral, “romântica, violenta, passional como a que se ouve no final dos filmes quando a emoção explode”, como anota Alain Robbe-Grillet nas primeiras linhas do roteiro ao se referir aos letreiros iniciais feitos com “um desenho bem clássico”, com os nomes de técnicos e artistas “em letras pouco enfeitadas, pretas sobre fundo cinza, ou brancas sobre fundo cinza”, os cartões um apos outro “em ritmo normal, lento, regular”. Romântica e passional, a frase orquestral se repete durante a apresentação de uma peça para os hóspedes do hotel. E uma outra vez, no instante em que a mulher reconhece o jardim em que não esteve no ano passado. E uma última vez, na conclusão da narrativa. Nos outros momentos, música de órgão. 
Mais importante que atender às regras de comunicação (e ouvir os violinos na sala de concerto) é usar o som do órgão como um eco e projeção da voz do narrador – isto é, um eco do narrador que dentro da imagem conta o ano passado: ele e a mulher que parece não se lembrar dele andaram lado a lado dia após dia, perderam-se entre as complicadas frisas dos corredores do hotel, entre os enfeites pesados e vazios, de ramos, guirlandas e folhas antigas. Um eco deste personagem e também uma projeção do narrador invisível (a câmera) que conta o presente do homem do ano passado. Falam a mesma língua: o que por insistência da mulher fala em sussurros, para ele piores que o silêncio, e o que conta a história deste hóspede do passado tal como se contam histórias no cinema, ou seja: como se os fatos acontecessem sem narrador algum, todos presentes diante dos olhos do espectador. 
O órgão não é apenas a música que acompanha a cena, age em cena (caberia dizer: o órgão é um per-som-nagem?). Age como qualquer outro. Mais ativo que muitos outros personagens visíveis mas parados e mudos. Talvez o verdadeiro protagonista, porque é o organizador da estrutura do filme, porque diz aos personagens visíveis como eles devem falar. Não só o voz do homem que fala do ano passado soa como um órgão. Também o hóspede que propõe um jogo que se joga a dois e em que ele sai sempre vencedor projeta sua voz como se tivesse aprendido a falar com o órgão. 

Em que pese o sofisticado desenho da luz de sua fotografia, a história de Ano passado em Marienbad acontece principalmente no som. 
No cinema que segue as regras da produção feita para circular mais amplamente, o som funciona só para reforçar a sensação de realidade passada pela imagem. Quando um personagem deixa cair um objeto no chão, coloca um disco na vitrola ou caminha numa sala, o que se deve ouvir, diz a regra, é o ruído correspondente à imagem. Resnais subverte esta convenção que reduz o som a um acessório do que se movimenta em cena. Nos violinos que tocam órgão, cena pequenina em que som e imagem seguem caminhos diferentes, o espectador é solicitado a ver e ouvir como quem realiza um exercício de montagem - montagem intelectual, como sugeria Eisenstein: a expressão surge do conflito de duas representações parciais (aqui uma sonora e outra visual); elas se ligam não como dois pedaços complementares de uma determinada ação, mas como partes de um todo que só se completa com o que resulta do confronto das partes. A montagem aqui é mais do que a reconstrução de uma ação exterior. É a produção de uma ação interior, é a representação do que não conta com uma direta forma visível: com uma especial articulação de uma imagem visual e uma imagem sonora, a montagem constrói uma representação da memória. O mesmo procedimento se encontra em outros instantes de Ano passado em Marienbad, quando o som correspondente a uma imagem – até mesmo um diálogo – aparece fora de sincronismo, antes ou depois da cena a que corresponde. Talvez se possa dizer que o filme como um todo se inspira no trabalho da memória, montagem em que os fragmentos se organizam numa ordem afetiva e não como uma rigorosa reconstituição cronológica do passado. 
Desde antes — desde o primeiro longa-metragem, Hiroshima meu amor,desde o documentário sobre a Biblioteca de Paris, Toda a memória do mundo (Toute la memoire du monde, 1956), o processo narrativo de Resnais tem sido associado ao trabalho da memória. Tal associação não explica tudo, mas pode ser um bom ponto de partida – basta pegar na memória o que nos parece ser a memória: idas e voltas ao passado por meio de associações livres, de uma noção não muito precisa de lógica e de tempo: pedaços imagens reais, quase fotográficas, de um acontecimento se associam a outras puramente fantasiosas. 
E então talvez Ano passado em Marienbad possa ser percebido assim como é, uma história de amor contada através de uma memória obsessiva. Paixão, como a da música de abertura, como a música que os filmes guardam para os momentos em que a emoção explode. Paixão, nenhuma exposição lógica. O que importa aqui é avançar como o amante ao longo do labirinto de corredores de Marienbad ao encontro de mulher que parece não se lembrar do ano passado com ele. Importa a imagem quase como se ela fosse um nada, como se ela se referisse só a si mesma, como se não fosse a reprodução de uma cena mas a produção de uma cena que obedece só à lógica da luz e da sombra, da imagem e do som; os muitos meio-tons do começo, o acentuado escuro e a inesperada explosão de branco no quadro super-exposto da mulher na varanda do hotel – lembrança de Malievitch? Memória do Quadrado branco sobre fundo branco? – o órgão como o ruído do mecanismo da memória obcecada do homem ao longo do corredor que o separa da mulher que parece não se lembrar dele.

O livro citado no começo do texto, Tu n’as rien vu a Hiroshima - Un grand film,Hiroshima, mon amour analysé par un groupe d’universitaires sour la direction de Raymon Ravar foi publicado pelo Centre National de Sociologie du Travail. São 308 páginas, com uma entrevista com Alain Resnais e a descrição do filme plano a plano, a reprodução dos diálogos e textos críticos de Raymond Ravar, Edgar Morin, André Gerard-Libois, Bernard Pingaud, Jacqueline Mayer, Francine Vos, Francine Robaye, René Micha, André Delvaux, Robert Wangermee, Paul Davay, Léopoldo Flam e Nathan Weinstock. Edição do Institut de Sociologia da Université Libre de Bruxelles, 1962. 

sábado, 2 de julho de 2011

Ele foi um colecionador de singularidades


AUGUSTO NUNES (Veja)
O mineiro registrado em Salvador com o nome de Itamar por ter nascido a bordo de um ita no mar da Bahia já chegou ao mundo colecionando singularidades e paradoxos. Foi o que fez Itamar Augusto Cautiero Franco até o fim da vida: nos últimos cinco meses, por exemplo, reafirmou no Congresso que o destino determinou no dia do nascimento que aquele seria ─ ele sim ─  um homem incomum: aos 81 anos, mostrou-se o único senador da oposição disposto a combater o governo com o vigor e a determinação de um líder estudantil.
Diferente desde o berço, chegou ao Senado pela primeira vez em 1974, quando ainda era um político de província, empurrado pela onda de insatisfação com o regime militar. O fenômeno transferiu para Brasília, sem escalas, o prefeito reeleito de Juiz de Fora que nunca tivera votos fora do município. Integrante da bancada majoritária, obstruiu sozinho dezenas de sessões para impedir a aprovação de projetos que o desagradavam. Irretocavelmente honesto, aceitou ser candidato a vice de Fernando Collor. Sorte do Brasil: a decretação do impeachment seria muito mais complicada se o substituto fosse como o titular.
Impulsivo, temperamental, rompeu com o companheiro de chapa já no começo do mandato, mas não o atacou ostensivamente nem estimulou conspirações. Premiado pela conjunção de acasos com o cargo que todo político cobiça, adiou a posse por alguns dias para ficar ao lado da mãe enferma. Turrão, montou o primeiro governo de união nacional da história republicana. Como o preferiu hostilizá-lo, resolveu o problema à mineira: convenceu Luiza Erundina a representar no ministério o partido que ajudara a fundar.
Erundina foi suspensa pelos companheiros, mas ampliou coleção de espantos produzidos pelo novo presidente. Instalado no gabinete mais importante do país, irritava-se com jornalistas que o impediam de namorar em paz no cinema de Juiz de Fora. Avesso a exibicionismos, apareceu num camarote na Marquês de Sapucaí ao lado de uma modelo sem calcinha. (Num artigo na Zero Hora, creditei-lhe a invenção da primeira-dama por uma noite. Ele retrucou com uma carta manuscrita em que me acusava de fazer-lhe “oposição sistemática”).
Sem entender de economia, nomeou para o Ministério da Fazenda um sociólogo que, embora também pouco entendesse, acabaria dividindo com o presidente a paternidade do Plano Real. Só um Itamar Franco pensaria em tirar Fernando Henrique Cardoso do Ministério das Relações Exteriores para encarregá-lo de domar a inflação. Só um Itamar Franco daria plenos poderes à equipe de economistas recrutados por FHC que livraram o Brasil do pesadelo inflacionário. E só um Itamar Franco, depois de ter desencadeado o processo de ressurreição da economia em frangalhos, pensaria em ressuscitar o Fusca.
A Volkswagen voltou a fabricar o modelo pré-histórico a pedido do presidente, que amparou a reivindicação em motivos estritamente estéticos: ele achava bonito o carrinho feioso. Monoglota, fez questão de virar embaixador ao deixar o poder. Contemplado com postos disputados a cotoveladas por todos os diplomatas, não demorava a entediar-se: achava que os palácios e mansões onde morava ficavam muito longe de Minas em geral e, em particular, de Juiz de Fora. (Num artigo no Jornal do Brasil, recomendei-lhe que ficasse mais tempo no local de trabalho. Ele replicou com outra carta desaforada).
“O Itamar guarda os ódios na geladeira”, disse Tancredo Neves. Não sobrou espaço para estocar alguns ressentimentos que o atormentaram depois da passagem pela Presidência. O mais evidente distanciou-o de FHC ─ e, por algum tempo, aproximou-o perigosamente de Lula. “O Fernando não reconhece que foi eleito por mim e que o Plano Real aconteceu no meu governo”, zangou-se em incontáveis entrevistas. Fernando Henrique sempre revidou com elogios e manifestações de gratidão, mas só recentemente a reconciliação se consumou.
Feitas as contas, Itamar acertou bem mais do que errou. Mas bastaria a evocação da rara marca de qualidade que marcou o presidente morto na manhã deste sábado para garantir uma avaliação positiva: político em tempo integral desde a juventude, ele foi sempre franco, honesto e honrado. Num Brasil em decomposição moral, vai fazer muita falta.

Aloísio Mercadante, ator de Ionesco no teatro do absurdo


PEDRO DO COUTTO

Ao depor na tarde de terça-feira na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado sobre as acusações que lhe foram imputadas em 2006, revividas agora pela revista Veja que está nas bancas, episódio da falsificação do dossiê dos aloprados, o ministro Aloísio Mercadante, sem dúvida, tornou-se um ator do teatro do absurdo de Ionesco. As peças do autor francês, de origem romena, foram traduzidas no país nas décadas de 50 e 60 por Millor Fernandes. Brilhantemente traduzidas, reconheceram os que dominavam o tema e a língua pela extrema complexidade de seu conteúdo.
Vamos por partes. Em primeiro lugar o dossiê dos aloprados. Um documento falso negociado através de quadros do PT com o objetivo de favorecer Mercadante na disputa contra José Serra pelo governo de São Paulo. Em vão porque a tentativa fracassou e Serra venceu por larga margem de votos. Alguns envolvidos ocupavam cargos de confiança no Planalto. Lula os demitiu e a eles atribuiu a classificação de aloprados.
Portadores  do dinheiro para o ato imundo foram presos pela Polícia Federal. Chantagem, partindo da compra e uso equívoco de ambulâncias, de cujas transações sujas saiu a comissão para o suborno. A quem interessava o crime? Perguntaria Sherlock Holmes.
Mercadante, então senador, negou sua participação. Mas agora um diretor do Banco do Brasil, Expedito Veloso, do Partido dos Trabalhadores, entrevistado pela Veja, acusa frontalmente o ministro da Ciência e Tecnologia. Na ocasião, 2006, uma outra revista semanal, que não a época, recebeu a tarefa de publicar a denúncia falsa. Fez isso. Sua tiragem desabou e ela não se recuperou até hoje. Ficou no passado.
No presente o fato voltou à tona. Mercadante resolveu se defender e rechaçar o texto da Veja. Excelentes reportagens de Jailton de Carvalho, O Globo e Breno Costa da Folha de São Paulo, edições de quarta-feira 29, reproduziram seu depoimento em 2011. Eugene Ionesco puro. Farsa total. Não senso absoluto. Acossado fortemente por Francisco Dornelles, Mercadante reconheceu a falsificação mas a retirou de sobre si mesmo. Culpados foram os outros. Quais? Indagou Dornelles.
Foi obra de uma militância com a qual eu não mantinha contato – afirmou singelamente Mercadante – e que via no ato (de falsificar) a missão heróica de destruir a corrupção (de quem?) e romper a blindagem que existia na imprensa em relação ao governo Lula.
Inacreditável, digo eu. Mas está nas páginas de O Globo e da FSP, além de nos arquivos do Senado Federal. Mercadante não disse coisa com coisa. Se o grande Millor não estivesse internado, certamente relembraria os personagens de Ionesco, como a Cantora Careca e O Rinoceronte e incluiria Aloísio Mercadante no elenco vago da ruptura do autor com sua própria história e com os limites narrativos de sua complexa obra.  Mas este é outro ângulo da questão.
Deixando o plano da irrealidade e passando para o da verdade, coube ao senador Francisco Dornelles desmascarar a ópera bufa. O episódio dos aloprados, sustentou o parlamentar do PP, não constitui um caso político. Não cabe no Senado. O caso dos aloprados é um caso de polícia – acrescentou . Dornelles surpreendeu Mercadante, na medida em que mudou rapidamente de tratamento em relação a ele. E cobrou coerência ao rememorar: lembras-se das acusações contra dois senadores com base em reportagem na imprensa? Chegou a pedir suas cassações. Agora chegou sua vez de ser acusado também através da imprensa. Não há nada – concluiu – como um dia após o outro. Foi um corte no tempo, digo eu. O autor da peça virou-se contra o personagem. Ionesco, ele próprio, desceu as cortinas.