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terça-feira, 30 de agosto de 2011

O tiro no pé do guerrilheiro de araque

AUGUSTO NUNES (Veja)

Transformar um quarto de hotel em aparelho clandestino é sinal de pouca inteligência. Transformar um endereço no centro de Brasília em esconderijo para tramoias políticas e/ou comerciais envolvendo figurões do governo e do Congresso é prova de indigência mental. Fazer essas coisas simultaneamente só pode ser coisa do companheiro José Dirceu. Como comprova a reportagem de capa da edição de VEJA, ele nunca perde a chance de engrossar a colossal coleção de ideias de jerico inaugurada já nos tempos de líder estudantil.

Em 1968, Dirceu conseguiu namorar a única espiã da ditadura militar. Se quisesse prendê-lo, a polícia poderia dispensar-se arrombar a porta: Heloísa Helena, a “Maçã Dourada”, faria a gentileza de abri-la. Ainda convalescia do fiasco amoroso quando resolveu que o congresso clandestino da UNE, com mais de mil participantes, seria realizado em Ibiúna, com menos de 10.000 moradores. Até os cegos do lugarejo enxergaram a procissão de forasteiros.

No primeiro dia, mandou encomendar 1.200 pães por manhã ao padeiro que nunca passara dos 300 por dia. O comerciante procurou o delegado, o doutor ligou para a Polícia Militar e a turma toda acabou na cadeia. Ninguém reclamou: enquanto o congresso durou, todos haviam tentado dormir sob a chuva por falta de tetos suficientes. Incluído no grupo dos resgatados pelos sequestradores do embaixador americano, Dirceu avisou que lutaria de armas na mão contra a ditadura e foi descansar na França.

O lutador exilado empunhou taças de vinho num bistrô em Paris até trocar a Rive Gauche pelo cursinho de guerrilheiro em Cuba. Com o codinome Daniel, aprendeu a fazer barulho com fuzis de segunda mão e balas de festim, submeteu-se a uma cirurgia para deixar o nariz adunco, declarou-se pronto para derrubar a bala o regime militar e, na primeira metade dos anos 70, voltou ao Brasil. Percebeu que a coisa andava feia assim que cruzou a fronteira e, em vez de trocar chumbo no campo, foi trocar alianças na cidade.

Fantasiado de Carlos Henrique Gouveia de Mello, negociante de gado, baixou em Cruzeiro do Oeste, no interior do Paraná, casou-se com a dona da melhor butique do lugar e entrincheirou-se balcão do Magazine do Homem, de onde só saía para dar pancadas em bolas de sinuca no bar da esquina. Em 1979, quando a anistia foi decretada, Carlos Henrique, apelidado de “Pedro Caroço” pelos parceiros de botequim, abandonou a frente de combate municipal, o filho de cinco anos e a mulher, que só então descobriu que vivera ao lado do revolucionário comunista menos belicoso de todos os tempos.

Livre de perigos, afilou o nariz com outra cirurgia plástica, ajudou a fundar o PT e não demorou a virar dirigente. Ao tornar-se presidente, escolheu Delúbio Soares para cuidar da tesouraria. Depois da campanha vitoriosa de Lula, não se contentou com a chefia da Casa Civil: promoveu-se a superministro e monitorou o preenchimento dos milhares de cargos de confiança.

Nomeado capitão do time do Planalto, mandou e desmandou até a explosão do escândalo protagonizado por Valdomiro Diniz, o amigo vigarista com quem dividira um apartamento em Brasília. E então o país descobriu que o herói de Passa Quatro transformara um extorsionário trapalhão em Assessor para Assuntos Parlamentares. Atirado à planície pelo escândalo do mensalão, conseguiu ser cassado por uma Câmara dos Deputados que não pune sequer os integrantes da bancada do PCC.

Sem mandato, com os direitos políticos suspensos e desempregado, descobriu que estava pronto para prosperar com o tráfico de influência. Desde 2005 junta dinheiro como facilitador de negócios feitos por capitalistas selvagens. E hoje é chamado de Jay Dee por patrões que, na hora de tratar os detalhes do acerto, mandam a criançada sair da sala e vão à janela para saber se algum camburão estacionou por perto.

Quem se dedica a tal ofício tem de ser discreto. Dirceu acha possível seguir embolsando boladas de bom tamanho como “consultor” sem abandonar a discurseira contra a elite golpista e a mídia reacionária, sem renunciar à luta pelo controle do PT, sem arquivar a saudade dos tempos de primeiro-ministro, sem despir o uniforme de guerrilheiro de araque. A reportagem de VEJA contou a última dessa flor de esquizofrenia. Logo será a penúltima.

No momento, Dirceu jura que houve uma tentativa de invasão do aparelho clandestino montado em Brasília. Ele também vive jurando que o mensalão não existiu. “Tenho uma biografia a preservar”, recitou mais uma vez o chefe do que o procurador-geral da República qualificou de “organização criminosa sofisticada”. Aos 65 anos, enquanto o Brasil decente espera que o Supremo Tribunal Federal cumpra o seu dever, o que tem José Dirceu é um prontuário a esconder.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

"A árvore da vida" - por Inácio Araújo


POR INÁCIO ARAÚJO

Um aspecto de “A Árvore da Vida” que chama vivamente a atenção é o tipo de cenografia escolhida.

Na parte antiga, anos 50, é exemplar a organização, desde as ruas, com sua simetria, seus terrenos uniformes como as casas, bem como a decoração da casa, também uniforme em sua modernidade. Isso não se transforma quando chegamos aos anos 2000, embora o cenário se transforme de forma radical, passando aos grandes arranha-céus.

Em ambos existe uma organização racional, ou uma tentativa racional de intervenção do homem no mundo: acomodar da melhor maneira possível as famílias, os seres, os desejos.

Em oposição, existe o mundo, ou antes, o caos do mundo, que se manifestará na tristeza do filho, na frustração do pai, no desencanto da mãe.

O homem põe e o mundo dispõe, em suma.

Pois este é, em grande medida, um filme sobre a arte. Sobre a tentativa humana de superar o caos do mundo, de dar-lhe forma, de submetê-lo pela forma.

Forma que pode ser arquitetônica ou musical, tanto faz.

Tenho a impressão de que existe um equívoco na suposição de que, por evocar o princípio dos tempos, o filme tenha implicado algum tipo de busca religiosa. O início dos tempos, assim como a saída dos seres da água designa, antes, a universalidade do tema: o esmagamento do filho pelo pai. E, depois, o desejo do filho de ver o pai morto. O Édipo, em suma. A acreditar em Ferenczi, a oposição ao pai viria das águas. As águas representam uma memória do ventre materno, da existência intra-uterina, segura e garantida contra todo mal, ali onde o feto é completamente feliz.

A forma é a grande, terrível luta do artista, primeiro, mas do homem em geral. Dar forma a um mundo infinitamente caótico. E, quando chega à forma, ela lhe escapa, obriga-o a uma nova operação, a um novo entendimento do mundo.

Talvez isso surja com clareza não apenas na figura do pai, incerto entre a música e a engenharia, a forma abstrata da música e essa outra, arquiconcreta, da produção para o mundo. E ainda dessas formas, não mais paradoxais, mas francamente contraditórias, do órgão, instrumento que lembra a religião, é certo, mas sobretudo esse tempo eterno a que aspira a convicção religiosa, em contraste com a afirmação de precariedade, de efêmero, do design moderno.

“A Árvore da Vida”, filme realmente raro, tem esses dois ramos: a percepção daquilo que é permanência na aventura do homem na Terra, aquilo que se repete de geração em geração, mas também a perpétua transformação das coisas, como uma árvore.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Clipping de André Setaro: Direito ao Cinema

Clipping de André Setaro: Direito ao Cinema

Direito ao Cinema


Godard falsifica a si mesmo

Pedro do Coutto

Numa ao mesmo tempo confusa e fascinante entrevista a Fiachra Gibbons, do jornal inglês The Guardian, tradição do Clara Allain, publicada na Folha de São Paulo, o diretor Jean-Luc Godard vice excentricamente um personagem – mais um – que criou para si próprio e afirma, numa batida wildeana, que o autor morreu e o cinema acabou. Quis criar, como tantos intelectuais, uma situação de choque pela surpresa e pela sensação que tenta transmitir de falsa certeza.
Se a lógica comum busca sempre a exatidão de uma ideia em tudo o que se desenrola, ele faz exatamente o contrário: rompe com os símbolos da compreensão. No fundo faz gênero, mas nem por isso deixa de ser um cineasta importante e um produtor de enigmas.
Exceto o grande “Acossado”, está aí sua filmografia para comprovar. “Alphaville” um exemplo, “Pierrot Le Fou”, que Fiachra se esqueceu de relacionar entre suas obras, outro. Entretanto, afinal de contas, na entrevista Godard atingiu plenamente seu objetivo.
Confundir e difundir sua imagem de intelectual hermético. Porém contraditório. Pois se de um lado sustenta que o autor acabou, de outro ele afirma que, com o celular, qualquer um torna-se um autor. E se torna. Produzindo o quê? O cinema, acrescenta, que linhas antes havia dito ter chegado ao fim.
Não chegou. Nem chegará. O cinema e todas as artes são imortais. Sem arte não há vida inteligente e criativa, pois a arte será eternamente uma ruptura a partir e através da dúvida. E, sem dúvida, o tempo não progride, a cultura, seja artística ou científica, não avança. Se em 1610, Galileu não tivesse ousado afirmar que a Terra era redonda, a humanidade não teria dado o salto que deu. Se Einstein não houvesse discordado da lei de Newton, não teria chegado à relatividade em 1905. Einstein tinha apenas 25 anos. Orson Welles revolucionou a técnica e a arte do cinema aos 26 anos, em 1941. Com o Cidadão Kane.
Mas nem por isso o cinema parou, a arte cessou, a criatividade ficou contida no passado. Ao contrário. A busca não cesse. Não é verdadeira a afirmação atribuída ao crítico Moniz Viana, que brilhou nas páginas do Correio da Manhã, tempos idos, de que todos os grandes filmes já foram feitos. Teria dito isso por volta de 1968 quando do Festival Internacional do Rio de Janeiro promovido pelo Museu de Arte Moderna. Nada disso. Apareceram tantas grandes obras depois. Fale Com Ela, de Almodovar, filme belíssimo, basta este para desmontar e desmistificar a tese.
Afirmar que todas as grandes obras já foram feitas significa uma atitude limite de conformismo, um meio falso de justificar que paramos no passado e desistimos de seguir em frente. Uma renúncia à vibração que realimenta a existência. Pode-se sustentar, é claro, que existem obras antigas inultrapassáveis, como Sartre se referia ao marxismo. Michelangelo, Leonardo Da Vinci, Shakespeare, Wagner, Chopin, James Joyce, Proust, Chaplin, mas todas estas – e outras – não são temporais, são eternas. Na verdade, elas não foram feitas, estão sendo feitas novamente, estão surgindo todos os dias, na medida em que centenas de milhares de seres humanos, das gerações que se sucedem, as descobrem. Ou citam seus autores como velhos amigos conhecidos.
Escrevendo ou falando sobre tais gênios, e tais obras, nós, de alguma forma testemunhas tocamos pelo menos levemente o universo mágico que produziram e deixaram como legado democrático porque aberto a todos.
É  isso. Esta me parece ser a melhor visão da eternidade, da arte. Não a visão de Godard ou a que passa através de suas lentes. E quando disse que ele assumia uma batida wildeana me referi apenas ao ângulo de chocar ironicamente, uma das faces do autor de O Retrato de Dorian Gray. Seu estilo. Jean Luc Godard escolheu o espelho da excentricidade para tentar fotografar a si mesmo. Não conseguiu. Mas agitou a cultura.