Conferência pronunciada no "I Encontro de professores de literatura
Brasileira - Machado de Assis: Texto e Contexto", realizado na
Faculdade de Letras da UFRJ, em 1989. - José Guilherme Merquior -
Publicado em Machado de Assis - Uma revisão - Eds. Secchin, A. C.;Gomes
de Almeida, J.M;Melo e Souza, R. , Ed. In-Fólio, isbn 8586062030
Sobre o aspecto da mobilidade social em Machado de Assis
existem duas posições: uma, clássica, que consiste em maravilhar-se
diante da fulgurante ascensão social do mulatinho gago e epilético, que
galga todas as posições, que vira um alto burocrata do Império, que
ganha a Ordem da Rosa, que é solicitado a fundar e presidir a Academia
na fase em que ela tinha importante sentido sociológico como poderoso
instrumento de institucionalização e consagração literárias, enfim,
todo esse esplendor, toda essa novela da irresistível ascensão de
Machadinho e de sua conversão em Machado quase medalhão. Essa realmente é
a posição ortodoxa que ainda domina, creio, a maior parte dos
trabalhos biográficos e, não obstante, começou a ser discreta mas
firmemente revista - e eu mencionaria em conexão com isso dois nomes, o
de Antonio Candido, no seu famoso "Esquema de Machado de Assis", e o de
Roberto Schwarz', que o acompanha nesse ponto, inclusive em trabalhos
coligidos recentemente no volume Que horas são?
É preciso examinar o problema da inegável ascensão social de
Machado de Assis em uma perspectiva histórico-sociológica mais bem
informada. Sem negar que realmente sua vida foi um triunfo de
consagração social, o ponto de partida não é aquela história tão
melodramaticamente marginal como a princípio se pensou.
Certos críticos e biógrafos, hipnotizados talvez pela figura
tímida, pequena e humilde, sobretudo pelas origens sociais e familiares
de Machado de Assis, - o filho do pintor de paredes, o enteado, o
garotinho do morro do Livramento -, se esquecem de que, afinal de
contas, tudo isso tinha por trás de si um grau, ou degrau, muito
importante na história da nossa sociedade senhorial, que era o fenômeno
do agregado: os pais de Machado eram humildes agregados; por causa
disso ele consegue imediatamente ser protegido por uma família
senhorial de grande status e bastante renda na corte do seu tempo, e é
isso que lhe permite de alguma forma aqueles empurrões iniciais. O seu
caso seria infinitamente mais atípico, e aí, sim, completamente
excepcional, se não houvesse esse ponto de partida que eu me atreveria a
caracterizar como uma espécie de "ninho" ou "nicho-trampolim"; quer
dizer, a sociedade senhorial, evidentemente não caracterizada por altas
taxas de mobilidade social no sentido coletivo, permitia que
determinados nichos no seu seio servissem de trampolim à ascensão
social, e essa me parece uma visão muito mais acurada do que tenha sido
o caso de Machado de Assis. A partir daí entram em cena as pessoas e
as experiências que o ajudaram muito na vida, da gráfica de Paula Brito
a Manuel Antônio de Almeida, ao diálogo, pouco mais tarde, com Joséde
Alencar e, enfim, à sua privança com grandes personagens da imprensa
brasileira da época, que eram também pessoas de projeção política, ou
seja, o lado Quintino Bocaiúva ou Saldanha Marinho.
Mas, em qualquer caso, é necessário acabar com o resquício
melodramático da ascensão milagrosa de Machado, porque, afinal de
contas, o seu ponto de partida, não estando evidentemente nos altos
escalões da sociedade senhorial, beneficiava-se desse "nicho-trampolim"
que procurei caracterizar. E isso acabava contribuindo para explicar o
resultado final, que é, sem dúvida, um alto grau de integração na
sociedade brasileira daquela época. A obra, contudo, permanece, de
certa forma, marginalizada; não no sentido de ela não ter sido louvada
ou reconhecida - porque obviamente ela foi fartamente louvada e
reconhecida - mas num paradoxo: tendo sido reconhecida, não foi bem
interpretada em determinadas linhas de força. Vocês poderiam dizer que,
afinal de contas, isso é mais ou menos o destino de toda e qualquer
grande obra de ficção, como a obra de Dostoievski ou a de Stendhal;
este último, então, é um caso clássico, com a famosa afirmação de que só
começaria a ser entendido e apreciado por volta de 1890. Enfim, são
inúmeras as ocorrências de grandes obras que não foram plenamente
compreendidas na sua época.
Mas o caso de Machado é de fato um pouco diferente, porque há
um esforço sistemático, nos últimos cinqüenta anos, pela conquista de
um tipo de compreensão da obra, que vulgarmente poderíamos chamar
"compreensão de profundidade", e que faltava no seu tempo. O que este
apreciava nele era a forma, a elegância; eram as virtudes chamadas
áticas do estilo, enfim, tudo aquilo que cabe na famosa frase de
Nabuco: "Só vi nele o grego." Realmente, sua época só via nele o grego,
mas no sentido de uma fachada bastante postiça, no sentido de um verniz
classicizante e academizante, e, quando se permitia dizer algo sobre o
conteúdo da criação, reduzia-o imediatamente a uma espécie de cético
de salão, à figura de um Anatole France tropical, ironista amestrado e
escritor elegante - não mergulhando nunca a fundo na compreensão da
obra. Nesse sentido, parece razoável insinuar que o desenho geral da
carreira de Machado de Assis nos confronta imediatamente com esse
paradoxo: inegável triunfo da mobilidade social do artista, lado a lado
com a também inegável marginalidade da obra. Tal situação só foi
superada graças ao esforço interpretativo da crítica moderna.
Como segunda nota sobre o contexto histórico-biográfico e,
sobretudo, histórico-institucional - isto é, levando em conta o perfil
da nossa literatura como instituição social nessa época - gostaria de
chamar atenção para outro aspecto, que é a forte intelectualização ou,
de maneira mais geral, a sofisticação da literatura brasileira no
período pós-romântico. É uma coisa que, ao que suponho, nossas histórias
literárias poderiam destacar mais do que habitualmente o fazem e, para
destacá-lo, talvez pudessem partir de trabalhos pioneiros, que ficaram
em estado de esboço, mas de esboço muito perspicaz, como os que se
devem, por exemplo, a Roger Bastide. Vocês se lembram da figura de
Bastide, um homem que passou dezoito anos no Brasil, notadamente em São
Paulo, dentro daquela brilhante geração francesa comprometida com a
infância da USP, os primeiros tempos da USP? Bastide foi sobretudo um
grande especialista da relação entre psicologia e psicanálise, de um
lado, e sociologia ou sociedade, de outro lado, e, dentro dessa
perspectiva dupla, ocupou-se sobretudo do afro-brasileiro. Ao fazer
isso, escreveu talvez os primeiros textos realmente penetrantes sobre o
afro-brasileirismo no plano de alta cultura; aí, naturalmente,
encontrou sobretudo a figura de Cruz e Sousa; mas, ao deter-se com
grande sensibilidade na obra deste autor, acabou fazendo considerações
sobre a poesia brasileira de sua época - quer dizer, da época
pós-romântica - que me parecem seminais para a perspectiva que vou
procurar sublinhar aqui, e que se ajustam também, creio eu, a Machado de
Assis.
Em síntese, o que Bastide disse foi o seguinte: a maioria dos
nossos grandes escritores pós-românticos, quer os prosadores, quer os
poetas, optaram ou construíram obras numa escrita notavelmente mais
difícil, mais complexa, mais sofisticada do que havia sido o caso da
maioria dos românticos. Para acentuar de maneira bastante esquemática o
ponto sobre o qual quero chamar a atenção, o que Bastide salientou foi
que os nossos grandes escritores pós-românticos praticavam consciente e
deliberadamente estilos difíceis. Isso é óbvio se compararmos a média
da poesia parnasiana com a média da poesia romântica; se compararmos a
média do romance naturalista com a média da ficção romântica, e não digo
se compararmos o ensaio, porque o nosso romantismo não primou pelo
exercício do ensaio, mas, ao contrário, de uma maneira geral, por uma
grande lacuna ensaística; o ingresso do ensaio constitui, por si só, um
índice expressivo dessa maior sofisticação intelectual e artesanal da
literatura. Na literatura brasileira, o ensaio surge exatamente com os
pós-românticos: os primeiros grandes críticos, ensaístas,
historiadores, e alguns pensadores, aparecem no período pós-romântico, e
não no período romântico. Aceita essa caracterização, Bastide vai
introduzir um elemento original de análise, ao procurar mostrar que os
escritores que assim procediam, que sofisticavam clara, patente,
ostensivamente mesmo o fazer literário e o seu produto - como Alberto
de Oliveira,Cruz e Sousa, Euclides da Cunha, Coelho Neto etc.,todos
nomes bem representativos desse arco pós-romântico - eram de origem
marcadamente pequeno-burguesa; e Bastide vai adiante para chegar à
seguinte conclusão, que me parece bastante provocadora no melhor
sentido da palavra: que eles se nobilitavam pelas suas proezas
literárias ou estilísticas. Quer dizer, esses homens, consciente ou
inconscientemente, faziam prova do domínio de um estilo difícil e de uma
literatura, por exemplo, filosófica, também ela considerada mais
difícil, mais elevada. Nesse plano as coisas se tornam ambíguas, e eles
conquistam status, que era tudo o que podiam conquistar, mas
conquistam status através de perfomances, através de desempenhos
intelectuais e literários. Ora, tal observação ainda não foi
devidamente aprofundada pela nossa historiografia literária, mas me
parece seminal.
Eu próprio, excitado intelectualmente por essa idéia de
Bastide, procedi a um mínimo de comparação entre as origens sociais da
média dos nossos escritores românticos e modernistas - isto é, nos
blocos imediatamente anterior e posterior - para ver se isso que
Bastide tinha notado realmente remetia a algum tipo de diferença
específica. E o resultado da minha rápida pesquisa me convenceu de que
sim, porque a maioria dos nossos românticos - a exemplo de Alencar,
Gonçalves Dias e Castro Alves - foram filhos de fazendeiros ou de altos
funcionários, isto é, eles tranqüilamente pertenceram ao que
deveríamos chamar, em toda uma fase do Império, a grande burguesia
senhorial ou burocrática brasileira.
E, quando chegamos aos modernistas, encontramos a mesma
configuração; pensemos nos casos de Drummond, Manuel Bandeira, José
Lins do Rego e multipliquemos por aí essas menções: o que vamos
encontrar com freqüência é a figura do nouveau pauvre, como Bandeira e o
próprio Drummond; o que vamos encontrar são filhos da grande burguesia
muitas vezes diminuída na sua renda, mas não necessariamente no seu
status ; muito pelo contrário, eram escritores que partiam de uma
condição social elevada, embora suas famílias pudessem estar até
bastante minadas do ponto de vista econômico. A gente tem então esse
quadro: os românticos, que não escreviam difícil, e os modernistas, que
deixam de escrever difícil, que simplificam a língua literária -
tomada a produção modernista no seu conjunto, evidentemente -, em
contraste com os pós-românticos, que escrevem difícil e sofisticam o
pensamento e a expressão literários, e ao fazê-lo adquirem status. Ora,
isso cai como luva na figura a todos os títulos central do período
pósromântico, que é o próprio Machado. Foi ele talvez o caso mais
dramaticamente ilustrativo disso, embora não se trate, evidentemente, de
um escrever difícil num sentido mecânico, no sentido fácil, digamos
assim, parnasianizante da coisa, mas se trata desse mundo de
referências culturais verdadeiramente notáveis para a sua época e
contexto.
Os românticos, tanto poetas como narradores, são basicamente
referências standard para todos, quer dizer, são as referências que a
média da produção romântica fazia em todo lugar: na Espanha, na
Argentina, no México, na própria França, ao passo que Machado é um
espírito de uma agilidade para a mobilização de recursos intelectuais
muito além dessa média. Machado realmente cita com abundância, é o
campeão das citações na literatura brasileira, e faz um uso muito
especial dessas citações, mas o mero fato de fazê-las mostra que ele
pertence em cheio a esse momento de maior sofisticação e
intelectualização da literatura que marca todo o período pós-romântico.
Toda essa discussão traz à baila um outro ponto importante, a
relação de Machado com os gêneros literários: parece-me que essa é a
porta de entrada mais adequada para tratar do estilo narrativo
machadiano; em outras palavras, para configurar a posição de Machado de
Assis na história dos estilos ficcionais. É clássica a observação de
que Machado de Assis não seguiu os cânones do romance realista, e, um
pouco mais tarde, do romance naturalista; é também clássica a
observação de que, em sua primeira fase, teria praticado alguma forma
discreta, sóbria e sublimada do romance romântico, mas, sobretudo na
segunda fase, teria abandonado qualquer obediência a estilos de época.
Vem também então a clássica, mas já um pouco sovada, afirmação de que
ele é inclassificável, de que ele é uma figura à parte, porque não cabe
no romance realista e naturalista, o qual, ao contrário, criticou, como
na famosa página sobre Eça de Queirós. Tudo isso contém determinados
elementos de verdade, mas não é de maneira alguma suficiente, porque
seria uma classificação no máximo negativa, seria apenas uma maneira de
nos dizer o que já sabemos fartamente hoje: que Machado realmente não
foi um praticante disciplinado do romance realista. É preciso, portanto,
fornecer alguma idéia positiva: se ele não fez isso, então o que ele
estava fazendo? E eu acredito que uma idéia que nesse caso se impõe é a
da relação entre Machado de Assis e uma outra tradição literária em
grande parte soterrada ou intermitente, que, tecnicamente falando, é a
tradição da sátira menipéia, do gênero ora chamado cômico-fantástico,
ora chamado cômico-sério, do gênero luciânico, como propõe que o
chamemos um estudioso recente, Enylton de Sá Rego. No seu livro O calundu e a panacéia,
ele desenvolveu mais amplamente este ponto, a meu ver de maneira muito
feliz e convincente, destacando todos aqueles elementos que nos
permitem observar em Machado de Assis um dos usos mais singulares, mais
originais e criativos de uma perspectiva que justamente baralhava
gêneros, com um sentido altamente parodístico, criando situações
cômicas - daí o abundante uso da ironia, daí o sistemático uso do
humorismo. A ilustração clássica aparece dentro de molduras
fantásticas, como a do defunto autor, que não é, como sabemos, um autor
defunto. É essa moldura fantasista de Machado que lhe permite manter a
famosa técnica nas suas próprias palavras - dos "piparotes ao leitor",
ou seja, que lhe dá imediatamente a carta-patente que vai permitir seus
grandes romances - sem falar nos inúmeros e esplêndidos contos, e sem
precisar recorrer à crônica, onde naturalmente tais procedimentos são
considerados quase de rigor. Na verdade, a crônica teria sido para ele
uma espécie de aprendizado permanente dessa agilidade expressiva, posta
a serviço de uma técnica ficcional que obviamente se afasta dos
padrões de verossimilhança realista-naturalista, mas que também possui
um tom completamente diferente do que era, em média, o tom do romance
romântico; este último também encerra elementos realistas, só que mais
subdesenvolvidos do que na grande ficção realista ou naturalista.
Assinalo o ponto porque considero que, em termos de ro °mance, ele
permite uma caracterização adequada das Memórias póstumas de Brás Cubas;
mas em doses mais moderadas, que implicam combinações diferentes com o
realismo, também dos outros romances, e estou pensando especialmente
em Quincas Borba e Dom Casmurro, ou ainda em Esaú e Jacó - isto é, esse
elemento não desaparece nunca, ele é apenas completa e provocantemente
ostensivo no caso de Brás Cubas, porque o romance já nasce de uma
situação altamente fantástica, mas está presente em todo o Machado, e
talvez seja a motivação atuante, do ponto de vista de procedimento, no
sentido shlovskiano da palavra; deve ser, talvez, a motivação principal
da famosa técnica dos capítulos curtos, e é, certamente, aquilo que
justifica, como idéia estética, como princípio estético genérico, os
"piparotes ao leitor", ou seja, esta contínua interferência na
narrativa. Ora, sabemos perfeitamente que autores muito estimados por
Machado a praticaram - e podemos fazer sucintamente três referências:
Sterne, Swift e o conto filosófico francês. Quando esse tipo de análise
se detém nos romances, é mais comum a aproximação com os grandes
humoristas ingleses do século XVIII, uma espécie de eixo Swift-Sterne.
Mas, na realidade, se incluirmos - e temos de incluir - a excelência de
Machado como contista, o fato de que ele foi sem sombra de dúvida o
maior contista das literaturas em língua portuguesa, então é imperativa
uma referência ao famoso conto filosófico na tradição francesa, na
tradição voltairiana, na tradição diderotiana, que lhe era também muito
cara e que ele cultivava com grande esmero. São situações
cômico-fantásticas ou vizinhas do cômico-fantástico. Esse tipo de conto,
de talhe claramente humoristico e muito arbitrário do ponto de vista
da verossimilhança - quer dizer, deliberadamente afastado da
verossimilhança -, domina ou tende a dominar a produção do contista em
Machado de Assis. Há em tudo isso um mínimo de background cultural- a
tendência da época para a sofisticação da literatura -, mas a
especificidade da posição machadiana estaria nesse seu uso
poderosamente criativo de um velho gênero, o gênero menipeu, a sátira
menipéia, o gênero cômico-fantástico, e no uso que ele faz disso em
combinações diversas com técnicas realistas - porque também é preciso
não abandonar simplesmente a idéia de que exista uma relação entre
Machado de Assis e a tradição realista, porque a relação existe e é
forte. Apenas no sentido dos cânones formais ele não segue o padrão do
romance realista-naturalista, o que não significa que o ignore. Eu vejo
cômico-fantástico em Machado de Assis, de um lado, como relacionado à
tradição realista, de outro, como uma combinação cujo resultado é um
hibridismo extremamente interessante e fecundo; mas trata-se uma relação
híbrida, ou seja, supõe que dois elementos entram no liquidificador
estético de Machado. Ele não trabalha apenas com uma ressurreição do
gênero cômico-fantástico, assim como é evidente que ele não trabalha
apenas na linhagem do romance realista-naturalista. Gostaria de
apresentar agora com algumas observações sobre o lugar de Machado de
Assis na ficção ocidental da sua época, e, quem sabe, adiantar uma ou
duas sugestões sobre a sua posição no universo ibérico; em seguida,
desejo tecer algumas considerações sobre a recepção crítica da obra -
não sobre a recepção por parte do público, mas sobre a recepção pela
crítica. Que aproximações podemos fazer entre Machado de Assis e a
ficção ocidental de seu tempo, se sabemos que ele foge ao eixo da
tradição realista-naturalista? Quando me referi à presença do gênero
cômico-fantástico e ao uso pessoal que Machado faz da ressurreição desse
gênero, estava-me referindo,obviamente, a categorias bakhtinianas, já
que devemos a Bakhtin a iluminação dessa linhagem literária, dessa
tradição intermitente da sátira menipéia, e devemos também a ele o
principal na caracterização desse gênero. Ora, falar em Bakhtin é falar
imediatamente dos dois autores que ele mais analisou: Rabelais e
Dostoievski. Então a pergunta é: Machado de Assis nos leva ao nível de
ficção de Dostoievski? E eu utilizo intencionalmente essa conexão para
sugerir que aí devemos nos mover com muito cuidado. Acho que Machado de
Assis, com todo o nosso imenso respeito por sua esplêndida produção
ficcional, e literária de uma maneira geral, não é um autor que esteja
no nível de Dostoievski e de Tolstoi. É um romancista, me parece, cujo
grau de inegável excelência o situa em um patamar um pouco abaixo, mas
esse patamar é honrosíssimo. A meu ver só temos a ganhar quando
analisamos Machado de Assis pensando em certas características de
Tchekhov, de um lado, e de Gogol, de outro. A propósito, eu queria me
deter um pouco no paralelo com Gogol. Realmente, há toda uma impostação
de ficção que os aproxima. O uso do grotesco, o gosto pelas situações
fantásticas ou vizinhas do fantástico, o gosto pela sátira de situações
sociais - embora Gogol seja mais estrepitoso do que o sempre sóbrio
Machado de Assis.
Tal posicionamento nos dá a medida exata do seu gênio, porque
acho que ninguém consideraria Gogol no mesmo nível de Dostoievski ou
Tolstoi na literatura russa; não obstante, isso não nos impede de
situar Gogol, como Tchekhov, como Turgueniev, num nível altíssimo, seja
em termos de literatura russa, seja em termos de literatura européia de
uma maneira geral. São apenas indicações para definir qual é o nível
histórico-estético de Machado de Assis. Acho que é dessa ordem. Também
me atreveria a sugerir que, embora com tonalidade diferente, ele se
encontra no mesmo patamar de outro grande romancista contemporâneo seu:
Henry James,que transformou também o romance realista de forma muito
especial (não, evidentemente, no sentido do gênero cômico-fantástico). e
cuja realização ficcional contém pontos muito importantes em comum com
Machado de Assis, mormente no que se refere ao tempo. Houve época em
que era muito comum - e Dirce Côrtes Riedel chegou a dedicar um livro
inteiro ao assunto - analisase o tempo no romance machadiano. Pois bem,
quando realizamos esta análise chegamos a várias conclusões de cunho
nitidamente jamesiano. Também o lado de consciência artesanal da arte da
ficção, esse alto grau de consciência do artifício que vai implícito
no fazer ficcional, elemento medular na concepção de romance de James, é
um elemento evidente e igualmente central em Machado de Assis. Mas eu
não insistiria demasiadamente numa comparação que, afinal de contas,
fala de dois autores cuja tonalidade, e mesmo visão de mundo, é tão
diferente. De qualquer forma, encontramos em Machado de Assis vários
termos de comparação com o romance finissecular: a famosa estratégia
moral; a recusa das grandes bandeiras, porque atrás de cada grande
bandeira estão as pequenas bandeiras dos interesses particularistas; a
abordagem fria e apequenante do mundo moral; tudo isso tem a ver, me
parece, mesmo com alguns romancistas modernos de primeiríssima proa,
mas cuja formação contém elementos finisseculares muito importantes.
São possíveis pontos em comum entre Machado de Assis e a visão moral de
narradores finisseculares ou já modernos. No universo ibérico da
segunda metade do séc. XIX, vejo Machado de Assis mais próximo de Pérez
Galdós do que de qualquer outro ficcionista. Este é, afinal de contas, o
principal narrador espanhol do século, e vai aqui uma mera sugestão
para efeito de algum possível desenvolvimento. Em termos de história da
literatura comparada, parece me cada vez mais que Machado de Assis é
artisticamente superior a Galdós, embora a obra de Galdós seja mais
abrangente e mais ampla do que a de Machado de Assis. Contudo, há mais
elementos comuns entre Machado e Galdós, do que entre Machado e Eça de
Queirós, seu contemporâneo na ficção de língua portuguesa. Machado é o
autor mais diferente possível de Eça de Queirós, como ele próprio teve o
instinto de dizer prontamente, quando a obra do escritor português
estava longe de completar-se. Apesar de ter sobrevivido a Eça, ele
escreve a sua página decisiva sobre este quando a obra queirosiana está
nos seus primeiros vôos maduros. É com Pérez Galdós que as semelhanças
são mais importantes, especialmente no que se refere a uma obra que a
crítica moderna considera, ao lado de Fortunata e Jacinta, o melhor
romance de Galdós, O amigo manso, que inclusive se inicia com um
narrado r fora deste mundo. O fato de começar com um narrador
extramundo é uma moldura ficcional de sumo interesse, que vai dar origem
a um romance no qual o narrador interferente faz se um comentador
intermitente, num sentido altamente humorístico e muitas vezes
corrosivo. Só que de uma maneira geral- e ainda aí é um problema de
tonalidade -, parece-me que a visão de mundo de Machado é muito mais
cética, niilista, do que a de Galdós, pelo uso mais radical de certo
tipo de pessimismo, de um lado, e pelo humor corrosivo, de outro. Em
Galdós acaba predominando outro tipo de tonalidade, mais convencional,
mais devedor de uma determinada linha ainda de origem romântica; afinal
de contas, Galdós começou a vida escrevendo os episódios nacionais;
quer dizer, é um tipo de embocadura diferente do ponto de vista da
visão filosófica. Isso nos leva imediatamente a outro ponto que eu
gostaria de tratar: qual seria, na visão de mundo machadiana, o
substrato de suas leituras filosóficas. Tal ponto tem um interesse certo
porque, para começar, não era comum os nossos romancistas terem
leituras filosóficas. Tomemos o caso de Alencar, que, afinal, é o
patriarca não só do Romantismo como do romance no Brasil, e, enquanto
tal,era profundamente respeitado por Machado de Assis - que dele não
aprendeu pouco. Em Alencar não existe uma referência filosófica maior,
de primeira importância; Alencar tinha alguma cultura teórica,
sobretudo de natureza político-jurídica; deixou, aliás, nesse terreno,
trabalhos que hoje a história crítica das idéias no Brasil começa a
valorizar, e muito - queria chamar atenção aqui para o notável estudo de
Wanderlei Guilherme dos Santos sobre as idéias políticas de José de
Alencar, em particular os seus textos sobre liberalismo, democracia e
representação; não obstante, não existe uma referência filosófica
central na obra de Alencar. Mas na obra de Machado de Assis a crítica, a
boa crítica, soube chamar atenção, a meu ver convincentemente, para
essa existência. Refiro-me em particular à obra de Eugênio Gomes,
iluminando a chamada "conexão schopenhauriana" no autor do Brás Cubas. É
inegável que a conexão existe. É inegável que Machado de Assis não só
leu, e leu muito, Schopenhauer, como o compreendeu - o que não era
pouco em sua época. Algumas de suas referências mostram, por exemplo,
com que acuidade percebeu - ele, que era um autodidata em tudo, e,
muito particularmente, em filosofia - como a visão schopenhauriana
significava determinadas exclusões e, antes de mais nada, a exclusão de
filosofias da história totalistas ou totalizantes - em suma, daquilo
que se poderia chamar, de uma maneira geral, o hegelianismo ambiente, o
hegelianismo como caldo de cultura filosófica. Miguel Reale, num livro
interessante sobre a filosofia de Machado de Assis, mostra, a meu ver
também de maneira bastante persuasiva, que esse ponto, embora rico e
certamente significativo, não deve ser exagerado; não devemos pensar
que Machado perfilhava cada grande posição da filosofia
schopenhauriana. A famosa metafísica da vontade, por exemplo, que
evidentemente é o eixo central em Schopenhauer, não parece ter sido
subscrita por Machado; ao contrário, seria possível arrolar - e Miguel
Reale o faz no seu livrinho - mais de uma instância em que Machado
discreparia, em que Machado tenderia a discrepar de uma apresentação da
realidade em termos de metafísica da vontade. Metafísica da vontade à
parte, Machado - especialmente em Esaú e Jacó, onde isso é
visibilíssimo, mas de uma maneira geral em toda a obra madura de ficção
e em um número muito alto de contos lida com elementos
schopenhaurianos que têm a ver, sobretudo, com o confronto de apetites, o
que não deixa de levar, indiretamente, à metafísica da vontade. O caso
de Esaú e Jacó é paradigmático: o que é Flora, senão um estado
estético evanescente, que desaparece dessa vida diante da
impossibilidade de dar razão a apetites contrários, cada um mais cego do
que o outro, a ambições contrárias, cada uma mais limitadora e
relativa do que a outra, como no famoso duelo de Pedro e Paulo, os dois
irmãos? De uma maneira geral, eu me atreveria a sugerir que isso
permite outras avenidas de confrontação comparatista, porque uma boa
parte da literatura moderna está impregnada de Schopenhauer. Ele foi um
filósofo muito singular do ponto de vista da sua influência, pois, não
tendo tido praticamente nenhuma enquanto vivo, a não ser rigorosamente
nos seus anos finais, teve tremenda influência post-mortem, sobretudo
no período pós-romântico, declinando esta embora no período moderno.
Mas a verdade é que ele continua a influir em figuras absolutamente
centrais também no período moderno, e eu citaria como exemplo dessa
influência o caso de Kafka. Kafka é um autor de quem se pode dizer - e
já se disse brilhantemente, através de livros inteiros - que o problema
central de sua ficção é o problema da individuação, quer dizer, sua
obra apresenta a poderosa sugestão de que a individualidade é, em si
mesma, algo de profundamente problemático, para não dizer pecaminoso, e
esse sentido infinitamente problemático da individualidade é parte do
cerne da filosofia de Schopenhauer. Vejam como cada um dos grandes
ficcionistas serviu-se de coisas diferentes do pensamento de
Schopenhauer, porque evidentemente esse ponto não parece ser assim tão
crucial em Machado de Assis. Para Machado não é a individualidade na sua
própria essência que constitui o problema; são outras coisas, é
sobretudo o embate dos apetites, é uma visão que desqualifica todas as
ambições, todos os apetites, todos os impulsos, em nome de uma possível
contemplação estética de tipo nirvanista e, em última análise, de tipo
niilista; é o famoso niilismo de Machado. Falando desse niilismo de
Machado de Assis, desejo fazer três ou quatro considerações finais,
agora sobre a recepção crítica de sua obra; limitarei contudo minhas
reflexões à crítica nacional. Machado de Assis tem nitidamente duas
fases na sua recepção crítica. A primeira, dominada por nomes como José
Veríssimo, Sílvio Romero (na posição contrária que nós conhecemos) e
Alfredo Pujol, é uma espécie de prólogo; o jogo ainda não começa
verdadeiramente, é uma espécie de fase de aquecimento, em que predomina
a visão anatolizante: Machado de Assis, o Anatole France tropical;
Machado de Assis, o cético de salão; Machado de Assis, o ático; Machado
de Assis, o grego de Nabuco. Evidentemente, sabemos que esse período é
rompido pela obra firme, forte, incisiva de Augusto Meyer, meu
candidato preferido ao título de maior crítico brasileiro entre os
grandes críticos pós-românticos, não só em termos de literatura
brasileira, mas em termos das literaturas latino-americanas de sua
época.
Sabemos que a obra de Augusto Meyer sobre Machado de Assis é
um marco, que começa com um foco predominantemente biográfico (e que
não o impede de ser muito importante na história da interpretação
machadiana) e se encaminha, em ensaios posteriores, para uma visão que
aí já é ergocêntrica, quer dizer, o foco está na obra, e não mais nas
circunstâncias biográficas do autor. Seja como for, desde sua fase de
foco biográfico, a obra de Augusto Meyer sobre Machado foi
importantíssima porque, ao lado de biografias exemplares, como a de
Lúcia Miguel-Perei ra, mas indo mais fundo no que se refere a sugestões
para a interpretação da obra e sobretudo da visão de mundo, Augusto
Meyer destruiu o mito de uma espécie de cético amestrado, de uma
espécie de cético de salão basicamente anódino, inofensivo - enfim,
desse Machado ático - e iniciou um veio interpretativo que chamava a
atenção para aspectos dostoievskianos de Machado de Assis - ou seja, o
lado "homem subterrâneo", o lado demoníaco. Apresentava também
determinadas hipóteses causais quanto à motivação biográfica de tudo
isso, mas estas constituem a parte menos resistente nessa construção,
nessa revisão meyeriana da imagem de Machado de Assis. Em seguida ao
nome de Augusto Meyer - estou ainda na infância da verdadeira crítica
aprofundante de Machado de Assis -, acho que o nome que merece imediata
citação não é o de Astrojildo Pereira, e sim o de Eugênio Gomes,
porque, com todo o respeito pelo trabalho histórico-crítico de
Astrojildo Pereira - especialmente a idéia de Machado de Assis como
romancista do Segundo Reinado -, e apesar de Astrojildo fazer um
importante levantamento do reflexo do aspecto histórico-social na obra
machadiana, ele não organiza isso do ponto de vista de uma hipótese
interpretativa como tal. Há muitos ensaios de Eugênio Gomes sobre
Machado de Assis, como sabemos Espelho contra espelho, por exemplo, - e
alguns deles se referem a aspectos formais, mas acho que a sua
contribuição mais importante foi uma espécie de mapeamento da visão de
mundo, que culmina no testamento estético de Machado de Assis, Esaú e
Jacó. A sua notável interpretação deste romance significa o seu resgate
para o cânone machadiano, que andou durante muito tempo dominado por
Dom Casmurro. A crítica que gostava de Machado, mas resistia a
entendê-lo em toda a sua complexidade, em geral idolatrava Dom
Casmurro, por ser um romance de assimilação mais fácil, um romance mais
passível de ser assimilado ao cânone da tradição realista e
naturalista, com um grande tema central, Bentinho e seu ciúme, etc. E
de fato a crítica andou por aí. Barreto Filho, num livro bastante
sutil, é disso, sob vários aspectos, um exemplo típico, ver em Dom
Casmurro o Machado plenamente realizado. Creio que esse é um ponto que
merece a nossa meditação, porque hoje em dia a tendência me parece ser
diversa: sem deixar de apreciar Dom Casmurro, não ficamos tão
impressionados por esse romance de estrutura regular, que parece mais
orgânico e, sobretudo, mais próximo dos grandes romances realistas - o
que nos permitiria alinhá-lo numa galeria de grandes romances do século
XIX sobre o adultério (embora em graus diferentes de realidade), quer
dizer, que nos permitiria colocá-lo ao lado de Madame Bovary e de Anna
Karenina como o terceiro grande romance oitocentista sobre o tema. Tudo
isso não desqualifica Dom Casmurro, mas de certa maneira o destrona.
Nossa sensibilidade nos conduz agora, de preferência, ao eixo Brás
Cubas / Quincas Borba, como já antes Eugênio Gomes havia tentado
levarnos de preferência ao eixo Esaú e Jacó / Memorial de Aires. São
shifts, são deslocamentos importantes; não é possível renovar a
perspectiva crítica sem privilegiar regiões diferentes, mesmo dentro da
obra madura, e, nesse caso, de propósito eu não falo dos contos, nem
mesmo de uma novela como O alienista. A que se deve, em termos puramente
formais, esse shift de interesse na crítica brasileira, que
privilegia, hoje em dia, Brás Cubas e Quincas Borba, que volta enfim aos
romances onde o cômico-fantástico, o cômico-sério está mais presente?
Há uma perspectiva que rompe com abordagens formalistas e se encaminha
para uma abordagem que ao mesmo tempo tem um pé no formal e um pé no
sociológico, e que, de uma maneira geral, tende a ver o texto como um
resultado (para empregar uma expressão de que gosto muito e que se deve a
Antonio Candido): a idéia de que o texto é um resultado e um campo de
forças onde evidentemente a motivação da abertura ao mundo e a
motivação social estão fortemente presentes. Essa experimentação
crítica tem,portanto, como seu húmus, como sua principal motivação, um
elemento de natureza sociológica,uma abordagem de tipo sociológico, mas
é preciso ver aí de que tipo de abordagem sociológicanós estamos
falando; nesse momento, para concluir com poucos nomes, para sublinhar
um pouco melhor esse problema da recepção critica, vejo me obrigado a
deter-me nos livros de Raymundo Faoro e Roberto Schwarz, aliás nos
textos de Roberto sobre Machado, visto que os últimos textos já
excedem, evidentemente, Ao vencedor, as batatas.
Qual é a hipótese central de Faoro sobre Machado de Assis,
qual é a visão central que sobre Machado apresenta A pirâmide e o
trapézio? É um estudo notável; os elementos sócio-políticos que podem
estar presentes ou refletidos em Machado se encontram muito bem
inventariados - e o livro vai mais adiante do que outros estudos
anteriores nesse aspecto -, mas a hipótese central é a de que a obra de
Machado não tem uma perspectiva histórica totalizante, e é, pelo menos
do ponto de vista da visão histórica, inferior a outras obras de ficção
da época, notadamente no âmbito do romance europeu. Este é um ponto
que ele deixa claro. O romance machadiano tem como característica
tratar do mundo moral, discutir os seus valores. Para Faoro, Machado de
Assis é um moralista no sentido francês da palavra, e nesse particular
acho que ele tem toda razão; Machado está impregnado de uma visão da
literatura que tem muito a ver com a tradição moralista francesa. Nos
contos, então, isso é de uma evidência ofuscante, mas em toda a obra de
ficção, de uma maneira geral, é verdadeira. Para Faoro o moralista
Machado de Assis (que é moralista no sentido, evidentemente, do
moraliste, e não no sentido do moralizante) estará no fundo tratando de
quê, alegórica ou simbolicamente, em sua obra? Está tratando do
colapso, senão claro e franco, pelo menos íntimo, de um determinado
tipo de sociedade, que é uma sociedade que Faoro chama de estamental, e
eu prefiro chamar de sociedade senhorial, dentro do capitalismo
periférico brasileiro daquela época, dentro do nosso capitalismo ainda
escravocrata ou apenas recém-saído da escravatura. E, segundo Faoro,
essa sociedade, que está em crepúsculo histórico no Brasil de Machado
de Assis, é uma sociedade onde os valores, ou critérios, ou padrões que
regiam a sociedade estamental - que são essencialmente padrões de honra
e de serviço - estão em recuo, estão em perda irremediável; e as novas
relações sociais de tipo mais moderno - porque pertencentes a uma
outra fase, capitalista instalam a confusão dos valores, instalam uma
espécie de grau zero dos valores, e é aí que Machado constrói seu
humorismo, é aí que ele constrói sua visão niilista do homem e da
sociedade. Eu diria que há um elemento relevante nesse tipo de visão,
mas há dois problemas que me inquietam. O primeiro é a teoria da
passagem, isto é, Faoro apresenta uma possível modernização na
sociedade brasileira já nessa época - em 1880 ou em 1900 -, fenômeno
que, a meu ver, vem muito depois. Na realidade corresponde mais em
cheio à nossa época. Na época de Mário de Andrade o processo está em
seu início; o próprio Brasil de 1930 é ainda um Brasil
protomodernizante; só depois se toma então plenamente modernizante, mas
este não é o caso, por certo, do Brasil de 1880 ou de 1900. Em outras
palavras: a premissa histórico-sociológica de Faoro me parece forçada,
porque noto mais elementos de continuidade do que de descontinuidade na
configuração sócioeconômica do Brasil entre a primeira e a segunda
metades do século XIX, quando transcorre a vivência de Machado de Assis.
Isso como primeira observação. Como segunda observação, Faoro liga
isso com habilidade à "Teoria do medalhão", à "Doutrina da alma
exterior", à famosa "Farda do alferes Jacobina", em suma, a todos
aqueles aspectos de metafísica psicológica ou psicologia metafísica de
Machado de Assis, fartamente conhecidos, e que indicariam na obra do
escritor um vazio no que se refere ao sujeito, ao indivíduo, à pessoa,
conforme se verifica em "Teoria do medalhão", "O segredo do bonzo" e "O
espelho". Ora, esses aspectos não se conjuminam, a meu ver, com o fato
de que, dentro das próprias premissas do raciocínio de Faoro ao
caracterizar o grande romance europeu, este teria acompanhado as
relações capitalistas que ele vê chegarem tão mais tarde no caso
brasileiro. Aqui haveria uma defasagem histórica, nós estaríamos numa
sociedade senhorial, que ele chama de estamental, partindo para
relações sociais mais modernas, relações essas que o romance europeu já
freqüentava desde antes. Pois bem, nesse romance europeu não
encontramos em posição central a teoria da vacuidade do sujeito, ou da
individualidade, ou da pessoa, mas, ao contrário, encontramos, em vários
autores, o que, mesmo sem empregar aquela velha expressão "herói
positivo", poderíamos chamar de caracteres extremamente afirmativos,
ainda quando amorais ou imorais. São, em suma, os caracteres
napoleônicos e byronianos do romance europeu do séc. XIX. Percebo então
que, de um lado, a premissa sociológica é muito discutível, me parece
muito problemática e, de outro, a premissa psicológica, na teoria de
Faoro, também me parece discutível, pois, afinal de contas, se Machado
estava reagindo a uma modernização de relações sociais, por que de
repente essa ausência de heróis lermontovianos ou balzaquianos no seu
romance? Ao contrário, esses heróis deveriam estar presentes. E, não
obstante, Mário de Andrade, numa famosa página meio século depois, vai
denunciar quase toda uma tradição no romance brasileiro pela ausência
do herói positivo. Não é, portanto, a caracterização de Faoro que está
errada; é a explicação dele que não me convence, com todo o respeito
pelo extraordinário valor descritivo e de observação
histórico-sociológica que seu livro possui.
Isso nos faz retomar à obra de Roberto Schwarz, porque nos
leva de volta à idéia de que o mais fecundo como visão crítica, como
interpretação, de Machado de Assis é o máximo possível de historismo. E
o que eu quero dizer com historismo? Por que não disse historicismo?
Porque sou um pedante que insiste o tempo todo, através de inúmeros
textos, na valia, no valor dessa distinção historismo/historicismo.
Acho que é preciso reservar a palavra historicismo para designar
qualquer teoria das leis da história, qualquer teoria da evolução
histórica apresentada em distintos graus de determinismo e de
teleologia, de finalismo, e é preciso termos bem em mente que isso é
muito diferente da abordagem historista, que é a abordagem, como na
tradição alemã da palavra - Historismus - que tem a ver sobretudo com a
especificidade irredutível, com a individualidade, com a unicidade de
um momento histórico. O olhar historista é, portanto, exatamente o
oposto do olhar historicista porque, enquanto este se preocupa com a
lógica da história, e nesse sentido com uma abordagem macro-histórica, o
olhar historista, ao contrário, se preocupa com a unicidade irrepetível
e inconfundível de um contexto histórico, seja esse contexto uma época
inteira, seja um país inteiro, seja ainda esse contexto uma obra
literária, ou artística, ou de pensamento. Ora, estou chamando a
abordagem de Roberto de historista no sentido de que ela me parece ter
como vantagem sobre outras abordagens sociológicas sofisticadas a
característica de frisar o elemento "contexto brasileiro da época" na
sua especificidade. A famosa tese das idéias fora de lugar, de um lado, e
a combinação dessa tese com o fato de que Machado, ao realizar a
denúncia humorística das idéias fora de lugar, dava quase sempre um
jeito de realizar também uma corrosão crítica da própria ideologia
ocidental ou metropolitana importada e que, por ser importada, gerava
as idéias fora de lugar, essa idéia me parece que articula, nos textos
de Roberto, uma hipótese bem plausível para que entendamos o que ele
chama de "jogo entre a anedota e a reflexão" na obra machadiana. Temos a
obra de Machado como uma estratégia simbólica de resposta a essa
situação histórica, e não de mero reflexo dela, e temos, finalmente, o
elemento formal (que, simplificando, estou chamando de "jogo entre a
anedota e a reflexão" - valendo-me arbitrariamente das próprias
palavras dele) como princípio de alegorização dessa resposta simbólica a
uma determinada situação histórica. E ele não se esquece, inclusive,
de observar que o Machadinho que se tinha transformado em Machado de
Assis, que tinha triunfado na vida, que se tinha tornado um vencedor,
utiliza sua nova perspectiva do alto para, não obstante, levantar essa
visão eminentemente corrosiva, essa visão negativa da nossa realidade
social e da realidade humana, através do prisma do nosso contexto
social específico. É essa a minha reação ao estudo de Roberto Schwarz.
Creio, sinceramente, que se trata de uma reflexão que permanece
altamente fecunda, e por isso estou ansioso por sua continuação' pois
acho que isto é, concretamente, o maior triunfo analítico dentro da
crítica brasileira moderna contra as tendências formalistas que, nos
últimos vinte ou vinte e cinco anos, jamais deixaram de assaltar,
solicitar e tentar hipnotizar essa crítica, infelizmente conseguindo em
parte fazer tudo isso. É um esforço, uma empresa de reinterpretação
crítica de Machado de Assis que, sem esquecer o formal, é capaz, o tempo
todo, de relacionar o formal ao social, em suma de nos restituir
aquela fecunda relação entre literatura e vida, literatura e mundo,
literatura e história que, afinal de contas, faz a grandeza de toda
literatura.