Total de visualizações de página

Seguidores


domingo, 29 de julho de 2012

Machado por Merquior

Conferência pronunciada no "I Encontro de professores de literatura Brasileira - Machado de Assis: Texto e Contexto", realizado na Faculdade de Letras da UFRJ, em 1989. - José Guilherme Merquior - Publicado em Machado de Assis - Uma revisão - Eds. Secchin, A. C.;Gomes de Almeida, J.M;Melo e Souza, R. , Ed. In-Fólio, isbn 8586062030

Sobre o aspecto da mobilidade social em Machado de Assis existem duas posições: uma, clássica, que consiste em maravilhar-se diante da fulgurante ascensão social do mulatinho gago e epilético, que galga todas as posições, que vira um alto burocrata do Império, que ganha a Ordem da Rosa, que é solicitado a fundar e presidir a Academia na fase em que ela tinha importante sentido sociológico como poderoso instrumento de institucionalização e consagração literárias, enfim, todo esse esplendor, toda essa novela da irresistível ascensão de Machadinho e de sua conversão em Machado quase medalhão. Essa realmente é a posição ortodoxa que ainda domina, creio, a maior parte dos trabalhos biográficos e, não obstante, começou a ser discreta mas firmemente revista - e eu mencionaria em conexão com isso dois nomes, o de Antonio Candido, no seu famoso "Esquema de Machado de Assis", e o de Roberto Schwarz', que o acompanha nesse ponto, inclusive em trabalhos coligidos recentemente no volume Que horas são?
É preciso examinar o problema da inegável ascensão social de Machado de Assis em uma perspectiva histórico-sociológica mais bem informada. Sem negar que realmente sua vida foi um triunfo de consagração social, o ponto de partida não é aquela história tão melodramaticamente marginal como a princípio se pensou.
Certos críticos e biógrafos, hipnotizados talvez pela figura tímida, pequena e humilde, sobretudo pelas origens sociais e familiares de Machado de Assis, - o filho do pintor de paredes, o enteado, o garotinho do morro do Livramento -, se esquecem de que, afinal de contas, tudo isso tinha por trás de si um grau, ou degrau, muito importante na história da nossa sociedade senhorial, que era o fenômeno do agregado: os pais de Machado eram humildes agregados; por causa disso ele consegue imediatamente ser protegido por uma família senhorial de grande status e bastante renda na corte do seu tempo, e é isso que lhe permite de alguma forma aqueles empurrões iniciais. O seu caso seria infinitamente mais atípico, e aí, sim, completamente excepcional, se não houvesse esse ponto de partida que eu me atreveria a caracterizar como uma espécie de "ninho" ou "nicho-trampolim"; quer dizer, a sociedade senhorial, evidentemente não caracterizada por altas taxas de mobilidade social no sentido coletivo, permitia que determinados nichos no seu seio servissem de trampolim à ascensão social, e essa me parece uma visão muito mais acurada do que tenha sido o caso de Machado de Assis. A partir daí entram em cena as pessoas e as experiências que o ajudaram muito na vida, da gráfica de Paula Brito a Manuel Antônio de Almeida, ao diálogo, pouco mais tarde, com Joséde Alencar e, enfim, à sua privança com grandes personagens da imprensa brasileira da época, que eram também pessoas de projeção política, ou seja, o lado Quintino Bocaiúva ou Saldanha Marinho.
Mas, em qualquer caso, é necessário acabar com o resquício melodramático da ascensão milagrosa de Machado, porque, afinal de contas, o seu ponto de partida, não estando evidentemente nos altos escalões da sociedade senhorial, beneficiava-se desse "nicho-trampolim" que procurei caracterizar. E isso acabava contribuindo para explicar o resultado final, que é, sem dúvida, um alto grau de integração na sociedade brasileira daquela época. A obra, contudo, permanece, de certa forma, marginalizada; não no sentido de ela não ter sido louvada ou reconhecida - porque obviamente ela foi fartamente louvada e reconhecida - mas num paradoxo: tendo sido reconhecida, não foi bem interpretada em determinadas linhas de força. Vocês poderiam dizer que, afinal de contas, isso é mais ou menos o destino de toda e qualquer grande obra de ficção, como a obra de Dostoievski ou a de Stendhal; este último, então, é um caso clássico, com a famosa afirmação de que só começaria a ser entendido e apreciado por volta de 1890. Enfim, são inúmeras as ocorrências de grandes obras que não foram plenamente compreendidas na sua época.
Mas o caso de Machado é de fato um pouco diferente, porque há um esforço sistemático, nos últimos cinqüenta anos, pela conquista de um tipo de compreensão da obra, que vulgarmente poderíamos chamar "compreensão de profundidade", e que faltava no seu tempo. O que este apreciava nele era a forma, a elegância; eram as virtudes chamadas áticas do estilo, enfim, tudo aquilo que cabe na famosa frase de Nabuco: "Só vi nele o grego." Realmente, sua época só via nele o grego, mas no sentido de uma fachada bastante postiça, no sentido de um verniz classicizante e academizante, e, quando se permitia dizer algo sobre o conteúdo da criação, reduzia-o imediatamente a uma espécie de cético de salão, à figura de um Anatole France tropical, ironista amestrado e escritor elegante - não mergulhando nunca a fundo na compreensão da obra. Nesse sentido, parece razoável insinuar que o desenho geral da carreira de Machado de Assis nos confronta imediatamente com esse paradoxo: inegável triunfo da mobilidade social do artista, lado a lado com a também inegável marginalidade da obra. Tal situação só foi superada graças ao esforço interpretativo da crítica moderna.
Como segunda nota sobre o contexto histórico-biográfico e, sobretudo, histórico-institucional - isto é, levando em conta o perfil da nossa literatura como instituição social nessa época - gostaria de chamar atenção para outro aspecto, que é a forte intelectualização ou, de maneira mais geral, a sofisticação da literatura brasileira no período pós-romântico. É uma coisa que, ao que suponho, nossas histórias literárias poderiam destacar mais do que habitualmente o fazem e, para destacá-lo, talvez pudessem partir de trabalhos pioneiros, que ficaram em estado de esboço, mas de esboço muito perspicaz, como os que se devem, por exemplo, a Roger Bastide. Vocês se lembram da figura de Bastide, um homem que passou dezoito anos no Brasil, notadamente em São Paulo, dentro daquela brilhante geração francesa comprometida com a infância da USP, os primeiros tempos da USP? Bastide foi sobretudo um grande especialista da relação entre psicologia e psicanálise, de um lado, e sociologia ou sociedade, de outro lado, e, dentro dessa perspectiva dupla, ocupou-se sobretudo do afro-brasileiro. Ao fazer isso, escreveu talvez os primeiros textos realmente penetrantes sobre o afro-brasileirismo no plano de alta cultura; aí, naturalmente, encontrou sobretudo a figura de Cruz e Sousa; mas, ao deter-se com grande sensibilidade na obra deste autor, acabou fazendo considerações sobre a poesia brasileira de sua época - quer dizer, da época pós-romântica - que me parecem seminais para a perspectiva que vou procurar sublinhar aqui, e que se ajustam também, creio eu, a Machado de Assis.
Em síntese, o que Bastide disse foi o seguinte: a maioria dos nossos grandes escritores pós-românticos, quer os prosadores, quer os poetas, optaram ou construíram obras numa escrita notavelmente mais difícil, mais complexa, mais sofisticada do que havia sido o caso da maioria dos românticos. Para acentuar de maneira bastante esquemática o ponto sobre o qual quero chamar a atenção, o que Bastide salientou foi que os nossos grandes escritores pós-românticos praticavam consciente e deliberadamente estilos difíceis. Isso é óbvio se compararmos a média da poesia parnasiana com a média da poesia romântica; se compararmos a média do romance naturalista com a média da ficção romântica, e não digo se compararmos o ensaio, porque o nosso romantismo não primou pelo exercício do ensaio, mas, ao contrário, de uma maneira geral, por uma grande lacuna ensaística; o ingresso do ensaio constitui, por si só, um índice expressivo dessa maior sofisticação intelectual e artesanal da literatura. Na literatura brasileira, o ensaio surge exatamente com os pós-românticos: os primeiros grandes críticos, ensaístas, historiadores, e alguns pensadores, aparecem no período pós-romântico, e não no período romântico. Aceita essa caracterização, Bastide vai introduzir um elemento original de análise, ao procurar mostrar que os escritores que assim procediam, que sofisticavam clara, patente, ostensivamente mesmo o fazer literário e o seu produto - como Alberto de Oliveira,Cruz e Sousa, Euclides da Cunha, Coelho Neto etc.,todos nomes bem representativos desse arco pós-romântico - eram de origem marcadamente pequeno-burguesa; e Bastide vai adiante para chegar à seguinte conclusão, que me parece bastante provocadora no melhor sentido da palavra: que eles se nobilitavam pelas suas proezas literárias ou estilísticas. Quer dizer, esses homens, consciente ou inconscientemente, faziam prova do domínio de um estilo difícil e de uma literatura, por exemplo, filosófica, também ela considerada mais difícil, mais elevada. Nesse plano as coisas se tornam ambíguas, e eles conquistam status, que era tudo o que podiam conquistar, mas conquistam status através de perfomances, através de desempenhos intelectuais e literários. Ora, tal observação ainda não foi devidamente aprofundada pela nossa historiografia literária, mas me parece seminal.
Eu próprio, excitado intelectualmente por essa idéia de Bastide, procedi a um mínimo de comparação entre as origens sociais da média dos nossos escritores românticos e modernistas - isto é, nos blocos imediatamente anterior e posterior - para ver se isso que Bastide tinha notado realmente remetia a algum tipo de diferença específica. E o resultado da minha rápida pesquisa me convenceu de que sim, porque a maioria dos nossos românticos - a exemplo de Alencar, Gonçalves Dias e Castro Alves - foram filhos de fazendeiros ou de altos funcionários, isto é, eles tranqüilamente pertenceram ao que deveríamos chamar, em toda uma fase do Império, a grande burguesia senhorial ou burocrática brasileira. E, quando chegamos aos modernistas, encontramos a mesma configuração; pensemos nos casos de Drummond, Manuel Bandeira, José Lins do Rego e multipliquemos por aí essas menções: o que vamos encontrar com freqüência é a figura do nouveau pauvre, como Bandeira e o próprio Drummond; o que vamos encontrar são filhos da grande burguesia muitas vezes diminuída na sua renda, mas não necessariamente no seu status ; muito pelo contrário, eram escritores que partiam de uma condição social elevada, embora suas famílias pudessem estar até bastante minadas do ponto de vista econômico. A gente tem então esse quadro: os românticos, que não escreviam difícil, e os modernistas, que deixam de escrever difícil, que simplificam a língua literária - tomada a produção modernista no seu conjunto, evidentemente -, em contraste com os pós-românticos, que escrevem difícil e sofisticam o pensamento e a expressão literários, e ao fazê-lo adquirem status. Ora, isso cai como luva na figura a todos os títulos central do período pósromântico, que é o próprio Machado. Foi ele talvez o caso mais dramaticamente ilustrativo disso, embora não se trate, evidentemente, de um escrever difícil num sentido mecânico, no sentido fácil, digamos assim, parnasianizante da coisa, mas se trata desse mundo de referências culturais verdadeiramente notáveis para a sua época e contexto.
Os românticos, tanto poetas como narradores, são basicamente referências standard para todos, quer dizer, são as referências que a média da produção romântica fazia em todo lugar: na Espanha, na Argentina, no México, na própria França, ao passo que Machado é um espírito de uma agilidade para a mobilização de recursos intelectuais muito além dessa média. Machado realmente cita com abundância, é o campeão das citações na literatura brasileira, e faz um uso muito especial dessas citações, mas o mero fato de fazê-las mostra que ele pertence em cheio a esse momento de maior sofisticação e intelectualização da literatura que marca todo o período pós-romântico.
Toda essa discussão traz à baila um outro ponto importante, a relação de Machado com os gêneros literários: parece-me que essa é a porta de entrada mais adequada para tratar do estilo narrativo machadiano; em outras palavras, para configurar a posição de Machado de Assis na história dos estilos ficcionais. É clássica a observação de que Machado de Assis não seguiu os cânones do romance realista, e, um pouco mais tarde, do romance naturalista; é também clássica a observação de que, em sua primeira fase, teria praticado alguma forma discreta, sóbria e sublimada do romance romântico, mas, sobretudo na segunda fase, teria abandonado qualquer obediência a estilos de época. Vem também então a clássica, mas já um pouco sovada, afirmação de que ele é inclassificável, de que ele é uma figura à parte, porque não cabe no romance realista e naturalista, o qual, ao contrário, criticou, como na famosa página sobre Eça de Queirós. Tudo isso contém determinados elementos de verdade, mas não é de maneira alguma suficiente, porque seria uma classificação no máximo negativa, seria apenas uma maneira de nos dizer o que já sabemos fartamente hoje: que Machado realmente não foi um praticante disciplinado do romance realista. É preciso, portanto, fornecer alguma idéia positiva: se ele não fez isso, então o que ele estava fazendo? E eu acredito que uma idéia que nesse caso se impõe é a da relação entre Machado de Assis e uma outra tradição literária em grande parte soterrada ou intermitente, que, tecnicamente falando, é a tradição da sátira menipéia, do gênero ora chamado cômico-fantástico, ora chamado cômico-sério, do gênero luciânico, como propõe que o chamemos um estudioso recente, Enylton de Sá Rego. No seu livro O calundu e a panacéia, ele desenvolveu mais amplamente este ponto, a meu ver de maneira muito feliz e convincente, destacando todos aqueles elementos que nos permitem observar em Machado de Assis um dos usos mais singulares, mais originais e criativos de uma perspectiva que justamente baralhava gêneros, com um sentido altamente parodístico, criando situações cômicas - daí o abundante uso da ironia, daí o sistemático uso do humorismo. A ilustração clássica aparece dentro de molduras fantásticas, como a do defunto autor, que não é, como sabemos, um autor defunto. É essa moldura fantasista de Machado que lhe permite manter a famosa técnica nas suas próprias palavras - dos "piparotes ao leitor", ou seja, que lhe dá imediatamente a carta-patente que vai permitir seus grandes romances - sem falar nos inúmeros e esplêndidos contos, e sem precisar recorrer à crônica, onde naturalmente tais procedimentos são considerados quase de rigor. Na verdade, a crônica teria sido para ele uma espécie de aprendizado permanente dessa agilidade expressiva, posta a serviço de uma técnica ficcional que obviamente se afasta dos padrões de verossimilhança realista-naturalista, mas que também possui um tom completamente diferente do que era, em média, o tom do romance romântico; este último também encerra elementos realistas, só que mais subdesenvolvidos do que na grande ficção realista ou naturalista. Assinalo o ponto porque considero que, em termos de ro °mance, ele permite uma caracterização adequada das Memórias póstumas de Brás Cubas; mas em doses mais moderadas, que implicam combinações diferentes com o realismo, também dos outros romances, e estou pensando especialmente em Quincas Borba e Dom Casmurro, ou ainda em Esaú e Jacó - isto é, esse elemento não desaparece nunca, ele é apenas completa e provocantemente ostensivo no caso de Brás Cubas, porque o romance já nasce de uma situação altamente fantástica, mas está presente em todo o Machado, e talvez seja a motivação atuante, do ponto de vista de procedimento, no sentido shlovskiano da palavra; deve ser, talvez, a motivação principal da famosa técnica dos capítulos curtos, e é, certamente, aquilo que justifica, como idéia estética, como princípio estético genérico, os "piparotes ao leitor", ou seja, esta contínua interferência na narrativa. Ora, sabemos perfeitamente que autores muito estimados por Machado a praticaram - e podemos fazer sucintamente três referências: Sterne, Swift e o conto filosófico francês. Quando esse tipo de análise se detém nos romances, é mais comum a aproximação com os grandes humoristas ingleses do século XVIII, uma espécie de eixo Swift-Sterne. Mas, na realidade, se incluirmos - e temos de incluir - a excelência de Machado como contista, o fato de que ele foi sem sombra de dúvida o maior contista das literaturas em língua portuguesa, então é imperativa uma referência ao famoso conto filosófico na tradição francesa, na tradição voltairiana, na tradição diderotiana, que lhe era também muito cara e que ele cultivava com grande esmero. São situações cômico-fantásticas ou vizinhas do cômico-fantástico. Esse tipo de conto, de talhe claramente humoristico e muito arbitrário do ponto de vista da verossimilhança - quer dizer, deliberadamente afastado da verossimilhança -, domina ou tende a dominar a produção do contista em Machado de Assis. Há em tudo isso um mínimo de background cultural- a tendência da época para a sofisticação da literatura -, mas a especificidade da posição machadiana estaria nesse seu uso poderosamente criativo de um velho gênero, o gênero menipeu, a sátira menipéia, o gênero cômico-fantástico, e no uso que ele faz disso em combinações diversas com técnicas realistas - porque também é preciso não abandonar simplesmente a idéia de que exista uma relação entre Machado de Assis e a tradição realista, porque a relação existe e é forte. Apenas no sentido dos cânones formais ele não segue o padrão do romance realista-naturalista, o que não significa que o ignore. Eu vejo cômico-fantástico em Machado de Assis, de um lado, como relacionado à tradição realista, de outro, como uma combinação cujo resultado é um hibridismo extremamente interessante e fecundo; mas trata-se uma relação híbrida, ou seja, supõe que dois elementos entram no liquidificador estético de Machado. Ele não trabalha apenas com uma ressurreição do gênero cômico-fantástico, assim como é evidente que ele não trabalha apenas na linhagem do romance realista-naturalista. Gostaria de apresentar agora com algumas observações sobre o lugar de Machado de Assis na ficção ocidental da sua época, e, quem sabe, adiantar uma ou duas sugestões sobre a sua posição no universo ibérico; em seguida, desejo tecer algumas considerações sobre a recepção crítica da obra - não sobre a recepção por parte do público, mas sobre a recepção pela crítica. Que aproximações podemos fazer entre Machado de Assis e a ficção ocidental de seu tempo, se sabemos que ele foge ao eixo da tradição realista-naturalista? Quando me referi à presença do gênero cômico-fantástico e ao uso pessoal que Machado faz da ressurreição desse gênero, estava-me referindo,obviamente, a categorias bakhtinianas, já que devemos a Bakhtin a iluminação dessa linhagem literária, dessa tradição intermitente da sátira menipéia, e devemos também a ele o principal na caracterização desse gênero. Ora, falar em Bakhtin é falar imediatamente dos dois autores que ele mais analisou: Rabelais e Dostoievski. Então a pergunta é: Machado de Assis nos leva ao nível de ficção de Dostoievski? E eu utilizo intencionalmente essa conexão para sugerir que aí devemos nos mover com muito cuidado. Acho que Machado de Assis, com todo o nosso imenso respeito por sua esplêndida produção ficcional, e literária de uma maneira geral, não é um autor que esteja no nível de Dostoievski e de Tolstoi. É um romancista, me parece, cujo grau de inegável excelência o situa em um patamar um pouco abaixo, mas esse patamar é honrosíssimo. A meu ver só temos a ganhar quando analisamos Machado de Assis pensando em certas características de Tchekhov, de um lado, e de Gogol, de outro. A propósito, eu queria me deter um pouco no paralelo com Gogol. Realmente, há toda uma impostação de ficção que os aproxima. O uso do grotesco, o gosto pelas situações fantásticas ou vizinhas do fantástico, o gosto pela sátira de situações sociais - embora Gogol seja mais estrepitoso do que o sempre sóbrio Machado de Assis.
Tal posicionamento nos dá a medida exata do seu gênio, porque acho que ninguém consideraria Gogol no mesmo nível de Dostoievski ou Tolstoi na literatura russa; não obstante, isso não nos impede de situar Gogol, como Tchekhov, como Turgueniev, num nível altíssimo, seja em termos de literatura russa, seja em termos de literatura européia de uma maneira geral. São apenas indicações para definir qual é o nível histórico-estético de Machado de Assis. Acho que é dessa ordem. Também me atreveria a sugerir que, embora com tonalidade diferente, ele se encontra no mesmo patamar de outro grande romancista contemporâneo seu: Henry James,que transformou também o romance realista de forma muito especial (não, evidentemente, no sentido do gênero cômico-fantástico). e cuja realização ficcional contém pontos muito importantes em comum com Machado de Assis, mormente no que se refere ao tempo. Houve época em que era muito comum - e Dirce Côrtes Riedel chegou a dedicar um livro inteiro ao assunto - analisase o tempo no romance machadiano. Pois bem, quando realizamos esta análise chegamos a várias conclusões de cunho nitidamente jamesiano. Também o lado de consciência artesanal da arte da ficção, esse alto grau de consciência do artifício que vai implícito no fazer ficcional, elemento medular na concepção de romance de James, é um elemento evidente e igualmente central em Machado de Assis. Mas eu não insistiria demasiadamente numa comparação que, afinal de contas, fala de dois autores cuja tonalidade, e mesmo visão de mundo, é tão diferente. De qualquer forma, encontramos em Machado de Assis vários termos de comparação com o romance finissecular: a famosa estratégia moral; a recusa das grandes bandeiras, porque atrás de cada grande bandeira estão as pequenas bandeiras dos interesses particularistas; a abordagem fria e apequenante do mundo moral; tudo isso tem a ver, me parece, mesmo com alguns romancistas modernos de primeiríssima proa, mas cuja formação contém elementos finisseculares muito importantes. São possíveis pontos em comum entre Machado de Assis e a visão moral de narradores finisseculares ou já modernos. No universo ibérico da segunda metade do séc. XIX, vejo Machado de Assis mais próximo de Pérez Galdós do que de qualquer outro ficcionista. Este é, afinal de contas, o principal narrador espanhol do século, e vai aqui uma mera sugestão para efeito de algum possível desenvolvimento. Em termos de história da literatura comparada, parece me cada vez mais que Machado de Assis é artisticamente superior a Galdós, embora a obra de Galdós seja mais abrangente e mais ampla do que a de Machado de Assis. Contudo, há mais elementos comuns entre Machado e Galdós, do que entre Machado e Eça de Queirós, seu contemporâneo na ficção de língua portuguesa. Machado é o autor mais diferente possível de Eça de Queirós, como ele próprio teve o instinto de dizer prontamente, quando a obra do escritor português estava longe de completar-se. Apesar de ter sobrevivido a Eça, ele escreve a sua página decisiva sobre este quando a obra queirosiana está nos seus primeiros vôos maduros. É com Pérez Galdós que as semelhanças são mais importantes, especialmente no que se refere a uma obra que a crítica moderna considera, ao lado de Fortunata e Jacinta, o melhor romance de Galdós, O amigo manso, que inclusive se inicia com um narrado r fora deste mundo. O fato de começar com um narrador extramundo é uma moldura ficcional de sumo interesse, que vai dar origem a um romance no qual o narrador interferente faz se um comentador intermitente, num sentido altamente humorístico e muitas vezes corrosivo. Só que de uma maneira geral- e ainda aí é um problema de tonalidade -, parece-me que a visão de mundo de Machado é muito mais cética, niilista, do que a de Galdós, pelo uso mais radical de certo tipo de pessimismo, de um lado, e pelo humor corrosivo, de outro. Em Galdós acaba predominando outro tipo de tonalidade, mais convencional, mais devedor de uma determinada linha ainda de origem romântica; afinal de contas, Galdós começou a vida escrevendo os episódios nacionais; quer dizer, é um tipo de embocadura diferente do ponto de vista da visão filosófica. Isso nos leva imediatamente a outro ponto que eu gostaria de tratar: qual seria, na visão de mundo machadiana, o substrato de suas leituras filosóficas. Tal ponto tem um interesse certo porque, para começar, não era comum os nossos romancistas terem leituras filosóficas. Tomemos o caso de Alencar, que, afinal, é o patriarca não só do Romantismo como do romance no Brasil, e, enquanto tal,era profundamente respeitado por Machado de Assis - que dele não aprendeu pouco. Em Alencar não existe uma referência filosófica maior, de primeira importância; Alencar tinha alguma cultura teórica, sobretudo de natureza político-jurídica; deixou, aliás, nesse terreno, trabalhos que hoje a história crítica das idéias no Brasil começa a valorizar, e muito - queria chamar atenção aqui para o notável estudo de Wanderlei Guilherme dos Santos sobre as idéias políticas de José de Alencar, em particular os seus textos sobre liberalismo, democracia e representação; não obstante, não existe uma referência filosófica central na obra de Alencar. Mas na obra de Machado de Assis a crítica, a boa crítica, soube chamar atenção, a meu ver convincentemente, para essa existência. Refiro-me em particular à obra de Eugênio Gomes, iluminando a chamada "conexão schopenhauriana" no autor do Brás Cubas. É inegável que a conexão existe. É inegável que Machado de Assis não só leu, e leu muito, Schopenhauer, como o compreendeu - o que não era pouco em sua época. Algumas de suas referências mostram, por exemplo, com que acuidade percebeu - ele, que era um autodidata em tudo, e, muito particularmente, em filosofia - como a visão schopenhauriana significava determinadas exclusões e, antes de mais nada, a exclusão de filosofias da história totalistas ou totalizantes - em suma, daquilo que se poderia chamar, de uma maneira geral, o hegelianismo ambiente, o hegelianismo como caldo de cultura filosófica. Miguel Reale, num livro interessante sobre a filosofia de Machado de Assis, mostra, a meu ver também de maneira bastante persuasiva, que esse ponto, embora rico e certamente significativo, não deve ser exagerado; não devemos pensar que Machado perfilhava cada grande posição da filosofia schopenhauriana. A famosa metafísica da vontade, por exemplo, que evidentemente é o eixo central em Schopenhauer, não parece ter sido subscrita por Machado; ao contrário, seria possível arrolar - e Miguel Reale o faz no seu livrinho - mais de uma instância em que Machado discreparia, em que Machado tenderia a discrepar de uma apresentação da realidade em termos de metafísica da vontade. Metafísica da vontade à parte, Machado - especialmente em Esaú e Jacó, onde isso é visibilíssimo, mas de uma maneira geral em toda a obra madura de ficção e em um número muito alto de contos lida com elementos schopenhaurianos que têm a ver, sobretudo, com o confronto de apetites, o que não deixa de levar, indiretamente, à metafísica da vontade. O caso de Esaú e Jacó é paradigmático: o que é Flora, senão um estado estético evanescente, que desaparece dessa vida diante da impossibilidade de dar razão a apetites contrários, cada um mais cego do que o outro, a ambições contrárias, cada uma mais limitadora e relativa do que a outra, como no famoso duelo de Pedro e Paulo, os dois irmãos? De uma maneira geral, eu me atreveria a sugerir que isso permite outras avenidas de confrontação comparatista, porque uma boa parte da literatura moderna está impregnada de Schopenhauer. Ele foi um filósofo muito singular do ponto de vista da sua influência, pois, não tendo tido praticamente nenhuma enquanto vivo, a não ser rigorosamente nos seus anos finais, teve tremenda influência post-mortem, sobretudo no período pós-romântico, declinando esta embora no período moderno. Mas a verdade é que ele continua a influir em figuras absolutamente centrais também no período moderno, e eu citaria como exemplo dessa influência o caso de Kafka. Kafka é um autor de quem se pode dizer - e já se disse brilhantemente, através de livros inteiros - que o problema central de sua ficção é o problema da individuação, quer dizer, sua obra apresenta a poderosa sugestão de que a individualidade é, em si mesma, algo de profundamente problemático, para não dizer pecaminoso, e esse sentido infinitamente problemático da individualidade é parte do cerne da filosofia de Schopenhauer. Vejam como cada um dos grandes ficcionistas serviu-se de coisas diferentes do pensamento de Schopenhauer, porque evidentemente esse ponto não parece ser assim tão crucial em Machado de Assis. Para Machado não é a individualidade na sua própria essência que constitui o problema; são outras coisas, é sobretudo o embate dos apetites, é uma visão que desqualifica todas as ambições, todos os apetites, todos os impulsos, em nome de uma possível contemplação estética de tipo nirvanista e, em última análise, de tipo niilista; é o famoso niilismo de Machado. Falando desse niilismo de Machado de Assis, desejo fazer três ou quatro considerações finais, agora sobre a recepção crítica de sua obra; limitarei contudo minhas reflexões à crítica nacional. Machado de Assis tem nitidamente duas fases na sua recepção crítica. A primeira, dominada por nomes como José Veríssimo, Sílvio Romero (na posição contrária que nós conhecemos) e Alfredo Pujol, é uma espécie de prólogo; o jogo ainda não começa verdadeiramente, é uma espécie de fase de aquecimento, em que predomina a visão anatolizante: Machado de Assis, o Anatole France tropical; Machado de Assis, o cético de salão; Machado de Assis, o ático; Machado de Assis, o grego de Nabuco. Evidentemente, sabemos que esse período é rompido pela obra firme, forte, incisiva de Augusto Meyer, meu candidato preferido ao título de maior crítico brasileiro entre os grandes críticos pós-românticos, não só em termos de literatura brasileira, mas em termos das literaturas latino-americanas de sua época.
Sabemos que a obra de Augusto Meyer sobre Machado de Assis é um marco, que começa com um foco predominantemente biográfico (e que não o impede de ser muito importante na história da interpretação machadiana) e se encaminha, em ensaios posteriores, para uma visão que aí já é ergocêntrica, quer dizer, o foco está na obra, e não mais nas circunstâncias biográficas do autor. Seja como for, desde sua fase de foco biográfico, a obra de Augusto Meyer sobre Machado foi importantíssima porque, ao lado de biografias exemplares, como a de Lúcia Miguel-Perei ra, mas indo mais fundo no que se refere a sugestões para a interpretação da obra e sobretudo da visão de mundo, Augusto Meyer destruiu o mito de uma espécie de cético amestrado, de uma espécie de cético de salão basicamente anódino, inofensivo - enfim, desse Machado ático - e iniciou um veio interpretativo que chamava a atenção para aspectos dostoievskianos de Machado de Assis - ou seja, o lado "homem subterrâneo", o lado demoníaco. Apresentava também determinadas hipóteses causais quanto à motivação biográfica de tudo isso, mas estas constituem a parte menos resistente nessa construção, nessa revisão meyeriana da imagem de Machado de Assis. Em seguida ao nome de Augusto Meyer - estou ainda na infância da verdadeira crítica aprofundante de Machado de Assis -, acho que o nome que merece imediata citação não é o de Astrojildo Pereira, e sim o de Eugênio Gomes, porque, com todo o respeito pelo trabalho histórico-crítico de Astrojildo Pereira - especialmente a idéia de Machado de Assis como romancista do Segundo Reinado -, e apesar de Astrojildo fazer um importante levantamento do reflexo do aspecto histórico-social na obra machadiana, ele não organiza isso do ponto de vista de uma hipótese interpretativa como tal. Há muitos ensaios de Eugênio Gomes sobre Machado de Assis, como sabemos Espelho contra espelho, por exemplo, - e alguns deles se referem a aspectos formais, mas acho que a sua contribuição mais importante foi uma espécie de mapeamento da visão de mundo, que culmina no testamento estético de Machado de Assis, Esaú e Jacó. A sua notável interpretação deste romance significa o seu resgate para o cânone machadiano, que andou durante muito tempo dominado por Dom Casmurro. A crítica que gostava de Machado, mas resistia a entendê-lo em toda a sua complexidade, em geral idolatrava Dom Casmurro, por ser um romance de assimilação mais fácil, um romance mais passível de ser assimilado ao cânone da tradição realista e naturalista, com um grande tema central, Bentinho e seu ciúme, etc. E de fato a crítica andou por aí. Barreto Filho, num livro bastante sutil, é disso, sob vários aspectos, um exemplo típico, ver em Dom Casmurro o Machado plenamente realizado. Creio que esse é um ponto que merece a nossa meditação, porque hoje em dia a tendência me parece ser diversa: sem deixar de apreciar Dom Casmurro, não ficamos tão impressionados por esse romance de estrutura regular, que parece mais orgânico e, sobretudo, mais próximo dos grandes romances realistas - o que nos permitiria alinhá-lo numa galeria de grandes romances do século XIX sobre o adultério (embora em graus diferentes de realidade), quer dizer, que nos permitiria colocá-lo ao lado de Madame Bovary e de Anna Karenina como o terceiro grande romance oitocentista sobre o tema. Tudo isso não desqualifica Dom Casmurro, mas de certa maneira o destrona. Nossa sensibilidade nos conduz agora, de preferência, ao eixo Brás Cubas / Quincas Borba, como já antes Eugênio Gomes havia tentado levarnos de preferência ao eixo Esaú e Jacó / Memorial de Aires. São shifts, são deslocamentos importantes; não é possível renovar a perspectiva crítica sem privilegiar regiões diferentes, mesmo dentro da obra madura, e, nesse caso, de propósito eu não falo dos contos, nem mesmo de uma novela como O alienista. A que se deve, em termos puramente formais, esse shift de interesse na crítica brasileira, que privilegia, hoje em dia, Brás Cubas e Quincas Borba, que volta enfim aos romances onde o cômico-fantástico, o cômico-sério está mais presente? Há uma perspectiva que rompe com abordagens formalistas e se encaminha para uma abordagem que ao mesmo tempo tem um pé no formal e um pé no sociológico, e que, de uma maneira geral, tende a ver o texto como um resultado (para empregar uma expressão de que gosto muito e que se deve a Antonio Candido): a idéia de que o texto é um resultado e um campo de forças onde evidentemente a motivação da abertura ao mundo e a motivação social estão fortemente presentes. Essa experimentação crítica tem,portanto, como seu húmus, como sua principal motivação, um elemento de natureza sociológica,uma abordagem de tipo sociológico, mas é preciso ver aí de que tipo de abordagem sociológicanós estamos falando; nesse momento, para concluir com poucos nomes, para sublinhar um pouco melhor esse problema da recepção critica, vejo me obrigado a deter-me nos livros de Raymundo Faoro e Roberto Schwarz, aliás nos textos de Roberto sobre Machado, visto que os últimos textos já excedem, evidentemente, Ao vencedor, as batatas.
Qual é a hipótese central de Faoro sobre Machado de Assis, qual é a visão central que sobre Machado apresenta A pirâmide e o trapézio? É um estudo notável; os elementos sócio-políticos que podem estar presentes ou refletidos em Machado se encontram muito bem inventariados - e o livro vai mais adiante do que outros estudos anteriores nesse aspecto -, mas a hipótese central é a de que a obra de Machado não tem uma perspectiva histórica totalizante, e é, pelo menos do ponto de vista da visão histórica, inferior a outras obras de ficção da época, notadamente no âmbito do romance europeu. Este é um ponto que ele deixa claro. O romance machadiano tem como característica tratar do mundo moral, discutir os seus valores. Para Faoro, Machado de Assis é um moralista no sentido francês da palavra, e nesse particular acho que ele tem toda razão; Machado está impregnado de uma visão da literatura que tem muito a ver com a tradição moralista francesa. Nos contos, então, isso é de uma evidência ofuscante, mas em toda a obra de ficção, de uma maneira geral, é verdadeira. Para Faoro o moralista Machado de Assis (que é moralista no sentido, evidentemente, do moraliste, e não no sentido do moralizante) estará no fundo tratando de quê, alegórica ou simbolicamente, em sua obra? Está tratando do colapso, senão claro e franco, pelo menos íntimo, de um determinado tipo de sociedade, que é uma sociedade que Faoro chama de estamental, e eu prefiro chamar de sociedade senhorial, dentro do capitalismo periférico brasileiro daquela época, dentro do nosso capitalismo ainda escravocrata ou apenas recém-saído da escravatura. E, segundo Faoro, essa sociedade, que está em crepúsculo histórico no Brasil de Machado de Assis, é uma sociedade onde os valores, ou critérios, ou padrões que regiam a sociedade estamental - que são essencialmente padrões de honra e de serviço - estão em recuo, estão em perda irremediável; e as novas relações sociais de tipo mais moderno - porque pertencentes a uma outra fase, capitalista instalam a confusão dos valores, instalam uma espécie de grau zero dos valores, e é aí que Machado constrói seu humorismo, é aí que ele constrói sua visão niilista do homem e da sociedade. Eu diria que há um elemento relevante nesse tipo de visão, mas há dois problemas que me inquietam. O primeiro é a teoria da passagem, isto é, Faoro apresenta uma possível modernização na sociedade brasileira já nessa época - em 1880 ou em 1900 -, fenômeno que, a meu ver, vem muito depois. Na realidade corresponde mais em cheio à nossa época. Na época de Mário de Andrade o processo está em seu início; o próprio Brasil de 1930 é ainda um Brasil protomodernizante; só depois se toma então plenamente modernizante, mas este não é o caso, por certo, do Brasil de 1880 ou de 1900. Em outras palavras: a premissa histórico-sociológica de Faoro me parece forçada, porque noto mais elementos de continuidade do que de descontinuidade na configuração sócioeconômica do Brasil entre a primeira e a segunda metades do século XIX, quando transcorre a vivência de Machado de Assis. Isso como primeira observação. Como segunda observação, Faoro liga isso com habilidade à "Teoria do medalhão", à "Doutrina da alma exterior", à famosa "Farda do alferes Jacobina", em suma, a todos aqueles aspectos de metafísica psicológica ou psicologia metafísica de Machado de Assis, fartamente conhecidos, e que indicariam na obra do escritor um vazio no que se refere ao sujeito, ao indivíduo, à pessoa, conforme se verifica em "Teoria do medalhão", "O segredo do bonzo" e "O espelho". Ora, esses aspectos não se conjuminam, a meu ver, com o fato de que, dentro das próprias premissas do raciocínio de Faoro ao caracterizar o grande romance europeu, este teria acompanhado as relações capitalistas que ele vê chegarem tão mais tarde no caso brasileiro. Aqui haveria uma defasagem histórica, nós estaríamos numa sociedade senhorial, que ele chama de estamental, partindo para relações sociais mais modernas, relações essas que o romance europeu já freqüentava desde antes. Pois bem, nesse romance europeu não encontramos em posição central a teoria da vacuidade do sujeito, ou da individualidade, ou da pessoa, mas, ao contrário, encontramos, em vários autores, o que, mesmo sem empregar aquela velha expressão "herói positivo", poderíamos chamar de caracteres extremamente afirmativos, ainda quando amorais ou imorais. São, em suma, os caracteres napoleônicos e byronianos do romance europeu do séc. XIX. Percebo então que, de um lado, a premissa sociológica é muito discutível, me parece muito problemática e, de outro, a premissa psicológica, na teoria de Faoro, também me parece discutível, pois, afinal de contas, se Machado estava reagindo a uma modernização de relações sociais, por que de repente essa ausência de heróis lermontovianos ou balzaquianos no seu romance? Ao contrário, esses heróis deveriam estar presentes. E, não obstante, Mário de Andrade, numa famosa página meio século depois, vai denunciar quase toda uma tradição no romance brasileiro pela ausência do herói positivo. Não é, portanto, a caracterização de Faoro que está errada; é a explicação dele que não me convence, com todo o respeito pelo extraordinário valor descritivo e de observação histórico-sociológica que seu livro possui.
Isso nos faz retomar à obra de Roberto Schwarz, porque nos leva de volta à idéia de que o mais fecundo como visão crítica, como interpretação, de Machado de Assis é o máximo possível de historismo. E o que eu quero dizer com historismo? Por que não disse historicismo? Porque sou um pedante que insiste o tempo todo, através de inúmeros textos, na valia, no valor dessa distinção historismo/historicismo. Acho que é preciso reservar a palavra historicismo para designar qualquer teoria das leis da história, qualquer teoria da evolução histórica apresentada em distintos graus de determinismo e de teleologia, de finalismo, e é preciso termos bem em mente que isso é muito diferente da abordagem historista, que é a abordagem, como na tradição alemã da palavra - Historismus - que tem a ver sobretudo com a especificidade irredutível, com a individualidade, com a unicidade de um momento histórico. O olhar historista é, portanto, exatamente o oposto do olhar historicista porque, enquanto este se preocupa com a lógica da história, e nesse sentido com uma abordagem macro-histórica, o olhar historista, ao contrário, se preocupa com a unicidade irrepetível e inconfundível de um contexto histórico, seja esse contexto uma época inteira, seja um país inteiro, seja ainda esse contexto uma obra literária, ou artística, ou de pensamento. Ora, estou chamando a abordagem de Roberto de historista no sentido de que ela me parece ter como vantagem sobre outras abordagens sociológicas sofisticadas a característica de frisar o elemento "contexto brasileiro da época" na sua especificidade. A famosa tese das idéias fora de lugar, de um lado, e a combinação dessa tese com o fato de que Machado, ao realizar a denúncia humorística das idéias fora de lugar, dava quase sempre um jeito de realizar também uma corrosão crítica da própria ideologia ocidental ou metropolitana importada e que, por ser importada, gerava as idéias fora de lugar, essa idéia me parece que articula, nos textos de Roberto, uma hipótese bem plausível para que entendamos o que ele chama de "jogo entre a anedota e a reflexão" na obra machadiana. Temos a obra de Machado como uma estratégia simbólica de resposta a essa situação histórica, e não de mero reflexo dela, e temos, finalmente, o elemento formal (que, simplificando, estou chamando de "jogo entre a anedota e a reflexão" - valendo-me arbitrariamente das próprias palavras dele) como princípio de alegorização dessa resposta simbólica a uma determinada situação histórica. E ele não se esquece, inclusive, de observar que o Machadinho que se tinha transformado em Machado de Assis, que tinha triunfado na vida, que se tinha tornado um vencedor, utiliza sua nova perspectiva do alto para, não obstante, levantar essa visão eminentemente corrosiva, essa visão negativa da nossa realidade social e da realidade humana, através do prisma do nosso contexto social específico. É essa a minha reação ao estudo de Roberto Schwarz. Creio, sinceramente, que se trata de uma reflexão que permanece altamente fecunda, e por isso estou ansioso por sua continuação' pois acho que isto é, concretamente, o maior triunfo analítico dentro da crítica brasileira moderna contra as tendências formalistas que, nos últimos vinte ou vinte e cinco anos, jamais deixaram de assaltar, solicitar e tentar hipnotizar essa crítica, infelizmente conseguindo em parte fazer tudo isso. É um esforço, uma empresa de reinterpretação crítica de Machado de Assis que, sem esquecer o formal, é capaz, o tempo todo, de relacionar o formal ao social, em suma de nos restituir aquela fecunda relação entre literatura e vida, literatura e mundo, literatura e história que, afinal de contas, faz a grandeza de toda literatura.

domingo, 22 de julho de 2012

Poesia em tempos de boemia literária

Um texto precioso escrito por FLORISVALDO MATTOS


ASSUNTO: Resumo de conferência pronunciada por Florisvaldo Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, promovido pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu presidente, o historiador Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, nos Barris, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, tendo como foco “a boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos 50”.
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­____________________________________________________________________
Houve um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre amigos, as tertúlias eram um refúgio de que se valia a boemia literária, para fruir o intercâmbio cordial de ideias, que muitas vezes, desaguava em desafio, em torneios de emulação, quando não de contenda rude, açulando a curiosidade de uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo. Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga feição de urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais, passando a compor um vasto anedotário. Em 1958, já não se falava mais dessa espécie de concurso civilizado, mas ocorreu que, num bar da Rua da Ajuda, no curso de uma tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois sonetos deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para cumprir um trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos símbolos. 

A partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”, toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do petróleo no Recôncavo e a conseqüente deflagração de um processo de industrialização modernizador, livrando-a da dependência do comércio agroexportador, que tinha seu vigor centrado no cacau; nova dinâmica advinda das transformações no sistema de transporte rodoviário e aeroviário torna mais rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste, aproximando centros de consumo e fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e Cultura, no Governo Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950, criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular unidades já existentes.

Tais sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador, que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em agitação, na ânsia de se libertar das amarras do conservadorismo imperante, com a presença de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos, Carybé, Jenner Augusto), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José Pedreira, Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos (arquitetura, mundanismo e até na política), com os ventos liberais que soprava a Constituição de 1946. O entrelaçamento entre a vida intelectual mundana e universitária faz surgir, com tinturas existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia literária na cidade, o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria doravante um emblema, um marco no gênero. Era a vibrante presença da Geração Caderno da Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo, cuja adoção plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois decênios.

É nessa atmosfera de sonho e esperanças que desembarco em Salvador, em fevereiro de 1952, numa noite de Segunda-Feira Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para estudar no paradigmático Colégio da Bahia e depois cursar universidade. E é a partir da Faculdade de Direito, já publicando poesia na revista Ângulos, que venho integrar o grupo nuclear de jovens, adiante dito Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o escândalo com as apresentações de seus espetáculos de poesia dramatizada no auditório do Colégio da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57. Glauber Rocha à frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma irrequieta malta de declamadores composta de poetas, artistas plásticos, teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres, João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio Guerra Lima, Anecy Rocha, lembro alguns). 

Associei-me ao grupo e me engajei na saga de seus projetos editoriais e artísticos, numa vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e jornalismo. E logo começariam a surgir, em caudal, livros com o selo das Edições Macunaíma; os projetos cinematográficos da Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas e gravuras em galerias de arte; peças levadas no espaço da jovem Escola de Teatro; e, logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand, rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale lembrar outros aderentes, como eu, Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego. 

Como então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se estendesse por diversos pontos de encontro, que se tornariam habituais. Eram os mais freqüentados: a Sorveteria Cubana, ainda hoje lá na parte alta do Elevador Lacerda; o Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada de Largo do Teatro; o Anjo Azul e o Restaurante Porto do Moreira, ambos na Rua do Cabeça, o Bar Brasil, o Chez Bernard, novidade que se instalara no terraço do Edifício Themis, na Praça da Sé; e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins de noite, com tudo fechado, Zé do Esquife, um tabuleiro de iguarias várias, que se oferecia à boemia junto à estátua de Castro Alves. 

A noite era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, a começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, as casas de “China”, “Maria da Vovó” e “Cymara”; gafieiras (Churrascaria Ide, Metrô, Rumba Dancing, Belvedere); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan, Pigalle e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris). Fora disso e das cantinas de faculdade, os encontros se davam nas sessões dominicais do Clube de Cinema da Bahia, capitaneadas pelo advogado trabalhista Walter da Silveira, salas de espera dos cinemas, portas de livraria e “hall” de faculdades. A cidade tranqüila era assim intensivamente vivida, dia e noite, varando as madrugadas.          
Volto ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma longínqua tertúlia literária, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico. Narro a excentricidade. Noite de primavera, dias depois do surgimento do “Jornal da Bahia”, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois deles poetas e dois tarimbados jornalistas. Os poetas éramos eu, um mero iniciante, na poesia como na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da Geração Caderno da Bahia, na qual disputava fama com poeta Wilson Rocha, ambos ícones do modernismo na Bahia. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos, romancista e autor de “Corta Braço”, ficção pioneira inspirada numa invasão de terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa, este subsecretário de Redação, aquele experiente Chefe de Reportagem do novo jornal.

Falava-se de literatura, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um desafio, para saber-se qual dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não sei de quem partiu a idéia, tampouco o grau do efeito etílico, que, indulgente, o Ângelus da Igreja da Ajuda perto acalentava. Os dois poetas se entreolharam, mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se foram. Dois dias após, tal como combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada um dos poetas, empunhando a sua Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado "A cabra", de cândida inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano, com os catorze versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair Gramacho, com suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos integrados e um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas; ambos construídos em decassílabos de rimas entrelaçadas. 

Cumprindo o ritual e com a devida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação na edição dominical do “Jornal da Bahia”. Dito e feito. Poucos dias depois, com verniz gráfico de prestígio, os sonetos ocupavam as duas colunas do lado direito da página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique Dias Tavares, mas sem se referir ao embate que se travara no bar. Publicado, cada soneto seria alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair era bem mais efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua geração. 

Em 1960, os dois poemas sairiam ainda na revista Ângulos (Nº 16), então prestigiosa publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito, mas cada um doravante com sorte diversa. “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro livro, Reverdor, saído em 1965 pelas Edições Macunaíma, enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei, permanece até hoje inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo em primeiro lugar o do meu saudoso e insigne êmulo.


SONETO OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA

                                                                       JAIR GRAMACHO

Nesta tarde o terreiro está vazio.
Distante o laranjal se estende; a manga,
A serra, o azul depois; tênue miçanga
De açafrão tinge as fímbrias, o do estio
Único resto. Esta tristeza é mais
Que a da paisagem pobre e adormecente;
Talvez por não ter rosas, não ter gente,
E a solidão vagueie pelos currais.
Mas, certo é que nesta hora, ressurrecto,
O mito abandonado busca o luxo
Antigo de existir; dispõe espectros
Que em volta cirandeiam do repuxo...
         Ah! Mais que basta para o instante magro
         Galinhas ver – irmãs de Meleagro!

A CABRA

                        FLORISVALDO MATTOS


Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –

teu pelo residência da ternura
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.


Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista; membro da Academia de Letras da Bahia; autor de livros de poesia e ensaios.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

O legado de Chaplin

POR CARLOS HEITOR CONY

Nenhum deles transcendeu o seu veículo específico. Chaplin escapou: o nicho era pequeno para ele 



Sua estreia foi com "Making a Living" (1914). Ainda não era Carlitos. Mas depois de "The Tramp" (1915), ele contou a mesma história.

Tinha desprezo pelo processo cinematográfico. Contemporâneos seus, Ince, Griffith e Sennett marcaram o caminho que surgia. Ince enfrentando a realização ao ar livre. Griffith foi o primeiro a aproveitar aquela brincadeira de laboratório para veículo de ideias: "The Birth of a Nation" e "Intolerance".

Sennett criou o gênero que mais tarde faria o sucesso de Chaplin, cuja obra nasceria de duas vertentes: o teatro popular inglês do século 19 e do próprio Mack Sennett.

Nenhum dos grandes nomes desta fase heroica preencheu tão largo espaço dentro do tempo da nova arte. Nenhum deles transcendeu o seu veículo específico. Ficaram dentro do nicho respectivo. Chaplin escapou: o nicho era pequeno para ele.

Quando Balzac e Dickens começaram a escrever, já havia uma coisa chamada romance. Tal não ocorreu com Chaplin: ele começou a existir paralelamente a uma coisa que ia se chamar cinema.
Griffith, Ince, Sennett e outros lançavam a base de uma estética para aquela arte que nascera do laboratório dos irmãos Lumière. Veio depois da experiência (ou do acaso) de Méliès. Este seria o "fiat" do cinema: o truque, o ônibus que pode virar carro fúnebre.

Chaplin possuía uma concepção anterior ao fato cinematográfico. Para ele, era importante que a câmera expressasse o que já existia dentro dele. Os temas de Chaplin são literários: Ulisses, Dom Quixote, Swift, Dickens, Dostoiévski etc. O paradoxo ficou na resistência de Chaplin ao cinema falado. Pergunta: como a concepção literária, transposta ao cinema, poderia desprezar a palavra?

Chaplin sempre falou através de uma arte anterior: a mímica. Ele dizia que o som aniquila a beleza do silêncio. É preciso não esquecer que, ao iniciar-se no cinema, Chaplin não tinha formação alguma, a não ser a de ator do "music hall" e do circo. Mas em seu mundo interior havia ambições e iras armazenadas pela miséria de sua infância e pelo amor à vida. Aproveitou uma linguagem não gramatizada.

Nascem dos pioneiros as duas vertentes cinematográficas. De um lado, os diretores que eram cineastas e que condicionavam a sua concepção à própria expressão. A outra vertente sairia de Chaplin. Tal como Napoleão que penetrou na história pela porta da Revolução e foi, em certo sentido, a antirrevolução, Chaplin penetrou na história através do cinema e é o anticinema.

Embora sendo a antirrevolução, Napoleão espraiou-a por toda a Europa, fazendo da revolução burguesa da França uma revolução universal. Assim também Chaplin espraiou o cinema, levando-o a camadas que, sem ele, não abririam os olhos à arte que estava nascendo.

Como responsável por uma das vertentes do cinema, Chaplin teria seguidores, em diferentes escalas de talento. René Clair é o mais importante deles. Sendo mais culto que Chaplin, antecedeu-o algumas vezes. "À Nous la liberté" e "Le Dernier Milliardaire" são temas chaplinianos que o próprio Chaplin só mais tarde exploraria.

O neorrealismo italiano surgiu após a Segunda Grande Guerra como a mais importante, talvez, escola do cinema de todos os tempos. Já não era um autor, um criador isolado tentando o seu caminho. Antes do neorrealismo, o expressionismo alemão foi também um conjunto de trabalho e pesquisas, mas faltaram a este a virilidade e a autenticidade que sobraram naquele.

As influências de Chaplin no neorrealismo italiano começaram tênues. Rossellini e Visconti pouco ou nada têm de chapliniano. Mas a dupla De Sica-Zavattini cevou-se fartamente em Chaplin.

Consumada a escola, a influência de Chaplin encontraria em Fellini o seu mais ilustre discípulo. Tal como Chaplin, que veio do "music-hall" com uma mentalidade poluída por experiências anteriores, Fellini veio do jornalismo e da história em quadrinhos.

Jacques Tati é outro ponto da escola chapliniana. Ator secundário em filmes de Clair e Renoir, ex-assistente de Claude Autant-Lara, criou a série de "Monsieur Hulot", o vagabundo promovido à classe média. A influência chapliniana não é apenas temática, mas artesanal. O personagem é mudo e a construção episódica é feita à base de gags desencadeados.

As influências de Chaplin não param aí. Mas cada leitor saberá acrescentar à lista outros diretores que traem essa influência em várias gradações. Inclusive Woody Allen.

FOLHA DE S.PAULO
20/07/2012 

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Para entender a estratégia do PT

EDITORIAL DE 'O ESTADO DE S.PAULO
Concordo em gênero, número e grau (André Setaro)

"Lula malufou" ou "Maluf lulou"? Eu responderia: ambas as coisas, mas Lula age como diretor da orquestra. Porque tanto Lula quanto Maluf são encarnações da cultura política patrimonialista, aquela identificada por Oliveira Vianna (em Instituições Políticas Brasileiras) como "política alimentar" e que Max Weber chamara de patrimonialismo, ou seja, aquela forma de organização política em que o Estado emerge como hipertrofia de um poder patriarcal original, que alarga a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, administrando tudo como se fosse sua propriedade. Era o que John Locke (1632-1704), na sua juventude, quando viajou pela França na época de Luís XIV, identificou como "o mal francês", na pequena obra intitulada De Morbo Gallico, fazendo referência ao absolutismo do rei que falava de si mesmo: "L'État c'est moi".
O Partido dos Trabalhadores, como demonstrou Antônio Paim na obra Para Entender o PT (Londrina: Instituto Humanidades, 2002), constitui, na História republicana contemporânea, a mais completa encarnação do patrimonialismo. Lula tem conduzido o seu partido nessa direção, afastando-o, ciosamente, dos extremos reformista-modernizador e revolucionário e conservando-o no patamar da estratégia de privatização do poder para enriquecimento próprio e dos seus confrades.
É o que o PT tem feito ao longo destes dez anos: ocupar a máquina do Estado como se fosse sua propriedade particular, tentando cooptar os outros partidos. O mensalão seria apenas expediente tático dessa estratégia. E a aproximação com as tradicionais lideranças patrimonialistas (Sarney, Maluf, etc., identificados por Lula como "pessoas especiais") constituiria uma decorrência natural dela. Nesse sentido, o ex-presidente da República prestou um grande serviço para o esclarecimento da natureza alimentar da política petista, tendo posto a nu a sua índole nitidamente patrimonialista e cooptativa. Nessa negociação de apoios cooptados entrou a própria Igreja Católica (mãe do PT, no início dos anos 1980, juntamente com o novo movimento sindical), quando pareceu afastar-se do pragmatismo lulista, que ameaçou, pela boca do ministro Gilberto Carvalho, privilegiar os evangélicos. Brizola, na sua retórica dos pampas, identificou a tendência às cooptações amplas do lulismo com aquela frase que ficou famosa: "O PT é a esquerda que a direita gosta". Trocado em miúdos, Lula tem disposição para cooptar todo mundo que apareça no cenário político, não importando a ideologia.
Lula é animado, nessa estratégia patrimonialista, pelo modelo ético identificado com o princípio de "levar vantagem em tudo", que se aproxima do imperativo comportamental totalitário ao acreditar que, nessa empreitada, "os fins justificam os meios". Essa constitui, a meu ver, a variante destrutiva do lulopetismo, que ignora qualquer outro imperativo ético, bem como a natureza das instituições republicanas, em função da estratégia dominante de conquista do poder para benefício exclusivo da agremiação partidária. Tudo deve ser cooptado: partidos da base aliada, oposição, imprensa, bem como os outros Poderes. O que resta de toda essa força centrípeta é o mar de lama a transbordar no recipiente da História republicana contemporânea. Infeliz pragmatismo que está conduzindo o Brasil à entropia da vida política e social, aproximando-nos lastimavelmente do caudilhismo peronista e do chavismo.
Octavio Paz caracterizou a feição cooptativa e punitiva do Estado patrimonial mexicano na sua clássica obra intitulada O Ogro Filantrópico (1983). Lula está deixando registrada, nos anais dessa modalidade de Estado, uma narrativa que poderíamos intitular O Ogro Pilantrópico, tamanha a desfaçatez com que o guru e os seus seguidores aceitam qualquer tipo de malfeitos, conquanto praticados em benefício da agremiação partidária e dos seus filhotes, e ameaçam, com a mais decidida perseguição, aqueles que ousarem contrapor-se ao projeto de dominação em andamento: a imprensa livre, a oposição e os empresários independentes.
A economia vai mal justamente porque, nesse terreno, impera também a cooptação, mediante a seleção prévia dos empresários amigos que serão guindados às alturas graças às benesses dos empréstimos oficiais subsidiados via BNDES. É a velha prática lusitana do pombalismo em matéria econômica, que constitui o nosso colbertismo tupiniquim. O caso Cachoeira-Delta está a revelar a extensão dessa prática deletéria na economia brasileira. De nada adiantam as articulações do PT e da base aliada para obedecer às ordens da liderança petista no sentido de criar obstáculos ao comparecimento da cúpula da empresa em questão à CPI.
A sociedade brasileira já pressente, na inflação que regressa, o tamanho do rombo. Os excedentes obtidos a partir da valorização das commodities que exportamos foram utilizados pelo governo para encher os bolsos dos companheiros ou cooptar os "movimentos sociais", deixando de fazer o dever de casa no que tange às obras de infraestrutura, que potencializariam o nosso desempenho comercial no mundo globalizado.
Especialistas calculam que o montante a ser aplicado nessas obras de infraestrutura deveria situar-se na faixa dos R$ 800 bilhões, mais ou menos a cifra que, ao longo dos governos petistas, foi despejada pelo ralo da corrupção e da cooptação. Resultados indesejáveis num mundo em grave crise financeira, que não perdoa cochilos das lideranças. Aproximamo-nos, nesse desleixo, da preguiça macunaímica do herói sem nenhum caráter que acordava, na narrativa de Mário de Andrade, pronunciando o bom-dia das sociedades sugadas pelo mostrengo patrimonialista: "Ai que preguiça!".

terça-feira, 10 de julho de 2012

Tenho saudades da 'alma' do cinema

POR ARNALDO JABOR
 
Muita gente chega para mim e diz: "Como é? Não vai fazer outro filme?" "Sei lá", respondo. E penso: "Que cinema? Comercial, metafísico, político, experimental? O quê?" Às vezes, me dá vontade de filmar alguma coisa tênue, poética, não mergulhada no labirinto de produção e distribuição. Nos anos 60, buscávamos um cinema essencial, o chamado "específico fílmico", que estaria talvez nos filmes de Eisenstein, ou em Murnau, ou em Dreyer, sei lá. Os cinéfilos pensavam: "Qual é a alma do cinema? O que é o cinema?" Isso me faz lembrar uma famosa frase do grande cineasta fundador Humberto Mauro que, aliás, já contei aqui nesta coluna. E repito.

Na verdade, tenho saudades do cinema, sim, justamente na época atual, em que as imagens inundam nossos olhos e ouvidos. Mas, tenho saudades de outro cinema, da fragilidade dos filmes antigos e da ideia do "objeto único" a que eles almejavam. Pouco antes de sua morte, conversei com Louis Malle sobre isso, no Rio - falamos do sonho, da utopia dos anos 60, alimentada pelo Cahiers du Cinéma, pelos círculos de fumaça dos "Gitanes" sem filtro, saudades do frisson culto das cinematecas.

Atualmente, a 'cinefilia' soa quase como um vício sexual; talvez tenha sido. Há um mundo secreto, próprio do cinema, que só alguns ainda conhecem. Hoje o cinema é nu. Está exposto nas lojas, feiras e bancas de jornais, está nos hotéis, na ponta dos dedos dos insones, está nas TVs, está rodando bolsinha nas ruas. Mas, se eu reclamo desta profusão, dizem: "Ah, qual é a tua, cara? Isso é bom para o cinema, aumenta a difusão no mercado, etc. e tal.!" Talvez, talvez, mas tenho saudades da sala escura, do cinema segredo, do cinema dos pobres tímidos e solitários, do cinema como realidade alternativa que analisávamos noite adentro nos bares. Como era bom esperar um filme do Fellini, e o novo Antonioni, e o novo Godard... Não chego a ser um cinéfilo puro. Falta-me o gosto arquivista, o detalhe das fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood. Mas tive e tenho amigos que me calam de respeito. Cinéfilo era, por exemplo, o Manuel Puig, o escritor e roteirista argentino que morou no Rio. Ele sabia tudo de qualquer filme. Outro dia, li um artigo sobre os últimos dias de Puig em Cuernavaca, no México. O relato era uma cena digna dos melodramas B que ele amava. Em sua vida, Puig tinha adotado dois "gays" jovens que ele chamava de suas "filhas". Uma delas era Yasmin, "filha" dele com o Ali Khan -, pois Puig brincava com a fantasia de ser a Rita Hayworth; a outra, (esqueci o nome) era "filha" dele (dela) com Orson Welles.

Pois bem, uma noite, velando por sua agonia, à beira do leito do hospital, a "Yasmin" achou que Puig já estava em coma. Mas, na esperança de uma melhora, resolveu testar os sinais vitais de sua "mãe". Segredou-lhe: "Mamãe... ontem eu vi Stella Dallas do King Vidor na TV... chorei tanto..." Eis que a "mãe" Puig balbuciou-lhe do leito: "É... a Barbara Stanwyck está ótima... mas o John Boles nunca me emocionou muito." Yasmin, a bichinha cinéfila, caiu em prantos e ligou eufórica para a "irmã": "Mamãe está melhorando!"

Nesta época, o cinema ainda tinha a tal "alma" que hoje desapareceu nos supermercados e videoclubes. Por isso, me lembrei do Humberto Mauro, que conheci já velhinho. Quando ele fazia seus filmes dos anos 20/30 nos fundos de quintal em Cataguazes e, depois, na Cinédia, todo amigo que ele encontrava na rua dizia para ele: "Humberto, meu querido, você precisa ir no meu sítio filmar a cachoeira que tenho lá! Você vai ver que cachoeira!" E o Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: "Por que querem que eu filme cachoeiras?" Toda hora era isso: "Rapaz, eu vi uma cachoeira incrível pra você filmar num lugar assim, assim!" Humberto Mauro não entendia por quê. Um dia, ele deu uma palestra num cineclube do interior quando, na volta, já na estação, atrasado para pegar o trem, um dos garotos agarrou-o pelo paletó e suplicou-lhe que decifrasse o grande enigma: "Seu Mauro, afinal de contas, diga, qual é a 'essência', a 'alma' do cinema?" E o velho Mauro, em meio à fumaça da locomotiva, teve a grande intuição e deu-lhe a resposta inapelável: "Cinema, meu filho, é cachoeira! É cachoeira!" Esta frase ficou famosa entre os então "amantes da Sétima Arte". E ela me remete a outra definição, do filósofo Henri Bergson, a quem os irmãos Lumière mostraram sua recente invenção: "Creio que o cinematógrafo será útil para sabermos, no futuro, como os antigos se moviam..."

Talvez seja esta a "essência" do cinema: registrar a morte comendo a vida. Hollywood é um lancinante cemitério de estrelas. São beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Fred Astaire dança no ar do nada, James Dean anunciava a morte em sua melancolia trágica. Sei como dói amar uma morta - eu que me apaixonei por Brigitte Helm em Metrópolis e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks e Cid Charisse, na necrofilia da sala escura.

Por isso, a ideia de cachoeira é a metáfora melhor. Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras devem ser retratadas na busca de alguma verdade. A grande desilusão do século 20 foi a tentativa de capturar a vida incessante em fórmulas que a esgotassem.

Não há uma realidade que se congele. Buscá-la, tanto no cinema quanto na ideologia e política, é fracasso certo.

Hoje, vemos que quanto mais aberta a máquina do mundo, mais vazia e misteriosa ela se torna. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, descrevê-la não a condensa nem explica; ao contrario, dá em tragédia. Hoje, tanto no fanatismo do Oriente, quanto na monolítica massificação ocidental, vemos este perigo e desejo.

Na verdade, somos uma cachoeira olhando a outra e nossas ações têm este fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, nunca veremos fim ou início. A cachoeira é a melhor definição do cinema ou da vida.
Estadão
O Globo
10/07/2012 

domingo, 1 de julho de 2012

Sonho de Ivan Lessa era estacionar no passado


Foto feita durante encontro dos amigos Ruy Castro (dir.) e Ivan Lessa no Rio

Quando os CDs surgiram e tomaram a indústria fonográfica, em fins dos anos 80, todos os patetas do mundo nos desfizemos de nossas coleções de LPs. Era como se, de repente, aquele formato de disco que por 40 anos nos servira tão bem --e no qual nos habituáramos a ouvir a perfeição-- se tornasse portador de lepra.
Tínhamos de nos livrar deles e trocá-los pelos reluzentes CDs, embora, até então, só uma parcela mínima de títulos já estivesse no novo formato. E, de quebra, precisávamos aposentar também os toca-discos --subitamente arcaicos, mesmo que fossem um Thorens, um Colaro ou um MK II da Technics.
No Natal de 1992, quando fui visitar Ivan Lessa em Londres pela primeira vez, surpreendi-me quando ele tirou um LP de Billy Eckstine de uma estante vergada por milhares de LPs. "Mas você ainda tem esses discos?", perguntei. Ele me encarou como se eu lhe tivesse perguntado por que ainda não cortara um braço. Em resposta, tartamudeou algo parecido com "E por que eu me desfaria deles?".





Ivan estava certo. Conservou sua monumental coleção, iniciada em 1948 (ano de surgimento do LP), e, a partir de 1990, apenas enriqueceu-a com CDs que não tinham um antepassado em vinil. Nunca abandonou suas obras-primas de Eckstine, Dick Haymes, Tony Martin, Herb Jeffries, Al Hibbler, Billy Daniels, George Byron --cantores de graves profundos, seus favoritos-- e de outros que descobriu nos anos 50, quando ninguém ainda ouvira falar deles no Rio: Bobby Short, Mabel Mercer, Blossom Dearie, Hugh Shannon, Joe Mooney, Bobby Troup.
Sem prejuízo, claro, dos incontornáveis e eternos, como Sinatra, Crosby, Astaire, Tormé, Nat Cole, Billie, Sarah Vaughan, Peggy Lee, Doris Day e centenas de outros. Ivan podia falar de igual para igual com qualquer conhecedor de música americana --mas engana-se quem o imagina um desenraizado musical.
IMITAÇÕES
Sambas, marchinhas de Carnaval, valsas, sambas-canções --na verdade, toda a pré-bossa nova: era espantosa a quantidade de letras e melodias brasileiras que Ivan trazia na cabeça, e que exibia à menor solicitação. E, de tanto saber cantá-las, dominou também as vozes dos cantores. Sua imitação de Silvio Caldas era hilariante, assim como fazia à perfeição o cantor brasileiro que ele mais admirava --Lucio Alves.
E, certa vez, em Londres, sua imitação de Billy Eckstine assustou o próprio Mr. B., quando Ivan o entrevistou para a BBC. A diferença de timbres entre Silvio, Lucio e Eckstine não diz algo sobre o alcance da voz de Ivan?
Ter conservado sua coleção de discos era apenas normal para ele. Não se joga fora o passado --era o que sempre parecia dizer.
Guardava tudo na memória: o rosto das ex-namoradas, a embalagem de dezenas de marcas de cigarros, a formação da orquestra Sauter-Finegan em 1950, o time de aspirantes do Botafogo em 1954, a sequência de lojas comerciais --uma a uma, no sentido Leme-Posto 6-- da avenida Nossa Senhora de Copacabana, os nomes dos pianistas, porteiros e leões-de-chácara de todas as boates do Rio e as intimidades de figurões da literatura, do jornalismo e do teatro com quem convivera desde criança, amigos de sua mãe, a cronista Elsie Lessa (alguns desses amigos eram Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Tônia Carrero).
E era uma longa memória, porque ele começou tudo muito cedo --aos 15 anos, em 1950, já tinha trabalhado como ator em dois filmes e fumava quatro maços de cigarros por dia.
Quando o conheci, no Rio, em 1972, Ivan acabara de voltar de Londres, para onde fora, pela primeira vez, em 1968 (e, por isso, não participou da aventura da revista "Diners", dirigida por seu amigo Paulo Francis, nem esteve, ao contrário do que se publicou, entre os fundadores do "Pasquim").
Ao olhar em torno, em seu apartamento de cobertura no Leme, e vendo as paredes abarrotadas de LPs, eu me perguntava como seria transportar aquilo tudo pelo oceano, do Rio a Londres, ida e volta, sem quebrar um disco.
Tempos depois, Ivan se mudou para outro apartamento, na rua Bolívar, sempre na praia, e lá se foram de novo as caixas e caixas de discos, desta vez nos caminhões da Gato Preto. Mas os amigos sabiam que, se um ataque marciano derretesse toda a coleção de Ivan, ele a teria inteira na cabeça --cada orquestração, cada letra, cada interpretação.
Em Londres, para onde voltou (para sempre) em 1978, Ivan foi morar em South Kensington, um bairro de predinhos baixos, cobertos de hera, e românticos pátios e jardins internos. James M. Barrie situou ali a casa de Wendy e seus irmãos em "Peter Pan" (1911), e Walt Disney explorou-o lindamente em seu desenho de 1953, botando todo mundo para voar sobre aqueles tetos.
Uma vizinhança bem de acordo com Ivan, que, a meu ver, sofria do complexo de Peter Pan, o garoto que não quis crescer. Contrariando sua natureza ("Nunca tive jeito para ser jovem", ele disse), Ivan queria ter estacionado em algum lugar do passado --e, com perdão pela psicologia de galinheiro, quem sabe sua impaciência e neurastenia, que às vezes se abatiam sobre afetos e desafetos, não fossem pela constatação daquela impossibilidade.
Nos últimos 20 anos, fomos a Londres várias vezes, e muito por causa de Ivan --numa dessas, em janeiro de 1993, com direito a uma esticada em Paris, Ivan e Elisabeth, eu e Heloisa. Atravessando uma rua perto do Louvre, ele me disse que, quando morresse, morreriam de vez com ele vários personagens importantes de Ipanema, já falecidos, dos quais ele ainda era dos poucos a se lembrar.
Quais? "Liliane Lacerda de Menezes, Zequinha Estelita, Josef Guerreiro, Rony 'Porrada', Carlos Thiré." Perguntei sobre eles. Ele me deu a ficha de cada um, e ali tive a ideia de, um dia, fazer um livro que seria uma "enciclopédia" de Ipanema e se chamaria "Ela é Carioca" (o livro saiu em 1999).
A lembrança de Ivan atravessando ruas e falando depressa, driblando carros, atropelando ideias, como se não pudesse perder tempo para se expressar, contrasta dolorosamente com as de apenas dez anos depois, em Londres, quando subíamos juntos a seu apartamento, no quarto andar do predinho sem elevador, e ele chegava lá em cima sem conseguir respirar.
Ou das últimas vezes em que foi nos encontrar na rua, para irmos às suas queridas lojas de discos --Dress Circle, Ray's Jazz Shop, Mole Jazz, Templar Records. Ivan acreditava que era preciso ir todos os dias às lojas, porque, quem sabe, um único exemplar de determinado disco só apareceria certo dia e, justo neste, outro colecionador iria lá e o compraria. Vindo de qualquer pessoa, essa obsessão seria neurótica. Em Ivan, fazia sentido.
Ivan detestava quando brasileiros o informavam da morte de um de seus velhos amigos no Rio. Ele não queria saber. Mas, nos últimos anos, a morte o cercou --ele perdeu Paulo Francis, José Lewgoy, sua mãe Elsie, o radialista Jader de Oliveira (seu colega de BBC e melhor amigo em Londres), Millôr Fernandes, muitos mais. O mundo estava ficando cada vez mais despovoado e, pelo que ele dizia nos e-mails, só faltava ele.
Finalmente partiu, em junho último, aos 77 anos, como se a carroça-fantasma estivesse atrasada para vir pegá-lo.