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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Godard falsifica a si mesmo

Pedro do Coutto

Numa ao mesmo tempo confusa e fascinante entrevista a Fiachra Gibbons, do jornal inglês The Guardian, tradição do Clara Allain, publicada na Folha de São Paulo, o diretor Jean-Luc Godard vice excentricamente um personagem – mais um – que criou para si próprio e afirma, numa batida wildeana, que o autor morreu e o cinema acabou. Quis criar, como tantos intelectuais, uma situação de choque pela surpresa e pela sensação que tenta transmitir de falsa certeza.
Se a lógica comum busca sempre a exatidão de uma ideia em tudo o que se desenrola, ele faz exatamente o contrário: rompe com os símbolos da compreensão. No fundo faz gênero, mas nem por isso deixa de ser um cineasta importante e um produtor de enigmas.
Exceto o grande “Acossado”, está aí sua filmografia para comprovar. “Alphaville” um exemplo, “Pierrot Le Fou”, que Fiachra se esqueceu de relacionar entre suas obras, outro. Entretanto, afinal de contas, na entrevista Godard atingiu plenamente seu objetivo.
Confundir e difundir sua imagem de intelectual hermético. Porém contraditório. Pois se de um lado sustenta que o autor acabou, de outro ele afirma que, com o celular, qualquer um torna-se um autor. E se torna. Produzindo o quê? O cinema, acrescenta, que linhas antes havia dito ter chegado ao fim.
Não chegou. Nem chegará. O cinema e todas as artes são imortais. Sem arte não há vida inteligente e criativa, pois a arte será eternamente uma ruptura a partir e através da dúvida. E, sem dúvida, o tempo não progride, a cultura, seja artística ou científica, não avança. Se em 1610, Galileu não tivesse ousado afirmar que a Terra era redonda, a humanidade não teria dado o salto que deu. Se Einstein não houvesse discordado da lei de Newton, não teria chegado à relatividade em 1905. Einstein tinha apenas 25 anos. Orson Welles revolucionou a técnica e a arte do cinema aos 26 anos, em 1941. Com o Cidadão Kane.
Mas nem por isso o cinema parou, a arte cessou, a criatividade ficou contida no passado. Ao contrário. A busca não cesse. Não é verdadeira a afirmação atribuída ao crítico Moniz Viana, que brilhou nas páginas do Correio da Manhã, tempos idos, de que todos os grandes filmes já foram feitos. Teria dito isso por volta de 1968 quando do Festival Internacional do Rio de Janeiro promovido pelo Museu de Arte Moderna. Nada disso. Apareceram tantas grandes obras depois. Fale Com Ela, de Almodovar, filme belíssimo, basta este para desmontar e desmistificar a tese.
Afirmar que todas as grandes obras já foram feitas significa uma atitude limite de conformismo, um meio falso de justificar que paramos no passado e desistimos de seguir em frente. Uma renúncia à vibração que realimenta a existência. Pode-se sustentar, é claro, que existem obras antigas inultrapassáveis, como Sartre se referia ao marxismo. Michelangelo, Leonardo Da Vinci, Shakespeare, Wagner, Chopin, James Joyce, Proust, Chaplin, mas todas estas – e outras – não são temporais, são eternas. Na verdade, elas não foram feitas, estão sendo feitas novamente, estão surgindo todos os dias, na medida em que centenas de milhares de seres humanos, das gerações que se sucedem, as descobrem. Ou citam seus autores como velhos amigos conhecidos.
Escrevendo ou falando sobre tais gênios, e tais obras, nós, de alguma forma testemunhas tocamos pelo menos levemente o universo mágico que produziram e deixaram como legado democrático porque aberto a todos.
É  isso. Esta me parece ser a melhor visão da eternidade, da arte. Não a visão de Godard ou a que passa através de suas lentes. E quando disse que ele assumia uma batida wildeana me referi apenas ao ângulo de chocar ironicamente, uma das faces do autor de O Retrato de Dorian Gray. Seu estilo. Jean Luc Godard escolheu o espelho da excentricidade para tentar fotografar a si mesmo. Não conseguiu. Mas agitou a cultura.

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