Reportagem da revista eletrônica Terra Magazine escrita por CLÁUDIO LEAL
Os membros da geração Mapa, liderada na Bahia pelo cineasta Glauber Rocha (1939-1981), questionam a veracidade da narrativa biográfica de "A primavera do dragão" (Editora Objetiva), do produtor musical e jornalista Nelson Motta. O livro retrata a juventude de Glauber, o maior diretor da história do cinema brasileiro, e se estende até o início da trajetória internacional do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", em 1964.
O poeta e historiador Fernando da Rocha Peres se irritou com os erros da obra e dirigiu um telegrama à Objetiva: "Senhor Editor: Recebi dois exemplares não-solicitados do livro A Primavera do Dragão, do Sr. Nelson Motta. Agradeço a oferta editorial. Tenho a dizer que o livreco é feio, mal escrito, mentiroso e mais houvera adjetivos. Deste modo, acredito que o editor vai cuidar de minorar este equívoco que foi a publicação de um livro irresponsável."
Em mais de 25 citações a seu nome, Peres é chamado de "Bananeira". Mas este é o apelido de outro Fernando da geração Mapa, o jornalista Fernando Rocha.
- Tenho esse apelido desde a idade de 12 anos. Em Boa Vista de Brotas, minha casa tinha uma touceira de bananeiras. Eu e minha família distribuíamos bananas aos amigos. O 'Bananeira' vem daí - explica Rocha. - Nunca falei com ele (Motta). É um absurdo isso, rapaz! O cara escreve por ouvir dizer, sem tomar conhecimento.
Peres tem uma opinião mais dura:
- A troca de nomes pelo senhor Nelson Motta revela a sua incapacidade de lidar com o gênero biográfico.
Admitindo a troca, Nelson Motta pede desculpas:
- Gostaria de me desculpar com o poeta e historiador Fernando Rocha Peres e o jornalista Fernando Rocha, por ter atribuído a um o apelido do outro ("Bananeira"), um equivoco que lamento e será corrigido na próxima edição, mas em nada afeta a narrativa em que o protagonista absoluto é outro Rocha: Glauber.
As histórias de "A primavera do dragão" são cravadas de adjetivos: "mentirosas", "folclóricas", "falsas", "inverídicas" e "ficcionais", disparados por amigos de Glauber ouvidos por Terra Magazine.
A geração Mapa (o nome da revista do grupo, inspirado em poema homônimo de Murilo Mendes) atuou na literatura, nas artes plásticas, no cinema e no teatro, contribuindo para a renovação da cultura brasileira nos anos 50 e 60. O núcleo inicial era formado por Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, João Carlos Teixeira Gomes, Fernando da Rocha Peres, Jaime Cardoso, Fernando Rocha, Calasans Neto, Ângelo Roberto, Antonio Guerra Lima (o "Guerrinha") e Albérico Mota. Também se agregaram ao grupo os escritores Carlos Anísio Melhor, Fred de Souza Castro, João Ubaldo Ribeiro, Florisvaldo Mattos, Sônia Coutinho, Noênio Spínola, David Salles e o pintor Sante Scaldaferri, entre outros.
"Anedotário gasto"
Protagonista da Mapa e autor de "Glauber Rocha, esse vulcão" (Ed. Nova Fronteira), reputada pela crítica como a melhor biografia do diretor de "Terra em transe", João Carlos Teixeira Gomes avalia que Motta usa "um anedotário gasto, sem sentido e já desmoralizado".
- Como biógrafo de Glauber, não gosto de analisar livros sobre ele escritos por outros autores. Mas não pode deixar de me incomodar essa tendência, que julgava superada, de se engrossar a crosta de anedotário sobre uma figura da dimensão cultural de Glauber Rocha. O livro está cheio de erros, falhas de informação, que tumultuam a leitura - critica Joca, como é conhecido (no texto de Motta, ele é chamado de "Joca Teixeira", tratamento jamais usado por seus camaradas).
]Para o biógrafo e amigo de Glauber, há "coisas absolutamente estranhas" em "A primavera do dragão".
- Nunca soube que Caetano Veloso, que nem tinha vinculação com nossa geração, nem aparecia em nada que fazíamos, teve algum caso de amor com Anecy (Rocha, irmã do cineasta). E, se teve, isso é absolutamente irrelevante para a compreensão da vida de Glauber. São muitos os erros de informação, dando uma visão completamente falsa do que foi a geração Mapa, repleta de anedotários irrelevantes, quando na verdade era uma geração de papel cultural destacado na Bahia.
Na abertura do livro, Motta descreve as fontes de boa parte das histórias: "Conversei com seus amigos de colégio e faculdade, o artista plástico Calazans Neto, os poetas e escritores João Carlos Teixeira Gomes e Fernando Rocha Peres, o cineasta Orlando Senna, o produtor e escritor Rex Schindler, o cineasta e inventor Roberto Pires, que criou uma lente de Cinemascope baiana". Segundo o autor, o romancista João Ubaldo Ribeiro contou "aventuras e travessuras com Glauber".
Ocorre que Peres e Joca, incluídos nessa lista, sustentam que nunca foram entrevistados por Nelson Motta. Apenas teriam sido procurados para fornecer e identificar fotografias. O pintor e gravador Calasans Neto morreu em maio de 2006. Peres reage à citação:
- Esta é uma mentira mais deslavada. Não me recordo que este rapaz tenha me entrevistado e creio que também não entrevistou Sante Scaldaferri e Joca, certamente não entrevistou outros companheiros da geração. O que eu fiz foi atender a um porta-voz dele, que me solicitou a identificação de pessoas em uma fotografia que seria publicada no livro. Fiz isto, a contragosto. Hoje, me arrependo, pois o que eu deveria ter dito é que eu só faço depois de ler o livro, porque constato que esse rapaz não sabe escrever. O que ele sabe é enrolar o público, com muita habilidade e um sorriso muito gentil, através da televisão. A competência dele não passa disso. Lamentavelmente, o sistema editorial brasileiro favorece esse tipo de picaretagem editorial. Por isso mesmo, ultimamente vem ululando escritores que mais parecem macacos de circo.
Em resposta enviada a Terra Magazine, Nelson Motta sustenta que o entrevistou, na capital baiana, há 22 anos:
- Em 1989, quando fui a Salvador fazer entrevistas para o livro sobre Glauber que pretendia escrever na época, fui muito bem recebido por Fernando Rocha Peres, que pode ter esquecido, mas gravou uma entrevista (que tenho até hoje) em que contou com graça e bom humor alguns ótimos episódios da Jogralesca, da revista Mapa e de farras juvenis de Glauber (...) Se o citei como participante de algum episódio em que ele não estava presente, me desculpo e o deletarei na próxima edição. Eram muitos os amigos, conhecidos e colegas de Glauber em sua juventude, não acredito que um a mais ou a menos faça grande diferença para contar como Glauber Rocha se tornou Glauber Rocha.
Além de Peres e Joca, as críticas partem de outros companheiros geracionais de Glauber: o jornalista Fernando Rocha ("Bananeira"), o artista plástico Sante Scaldaferri, o advogado Antonio Guerra Lima ("Guerrinha"), o poeta Florisvaldo Mattos e o pintor Ângelo Roberto. Nenhum deles foi entrevistado.
"Livro é ficção", diz membro da Mapa
No livro, Motta explica a origem do projeto biográfico, que remonta a 1989. "Com as gravações das entrevistas transcritas, eu começava a estruturar o livro quando uma notícia de jornal me fez mudar de ideia: Zuenir Ventura estava escrevendo uma biografia de Glauber Rocha", revela
Contudo, o jornalista Zuenir Ventura desistiu do projeto depois de perder o material pesquisado "no carro de uma amiga que foi roubado numa rua de Ipanema". Autor de "Noites Tropicais" e "Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia", Nelson Motta relata que, a partir de 2010, entrevistou Nelson Pereira dos Santos, Luiz Carlos Barreto, Cacá Diegues, Sérgio Ricardo, Yoná Magalhães, Walter Lima Júnior e Caetano Veloso - personalidades que não integravam o grupo de amigos de Glauber na "fase baiana".
- Adoto o princípio glauberiano: cada um é livre para escrever o que quiser. Mas o livro é uma ficção. É mais para enaltecer Glauber. Ele não tem compromisso com a verdade dos fatos - avalia Guerrinha.
Joca procura condensar parte das críticas ao livro:
- Vários os episódios relatados jamais testemunhei como integrante da geração Mapa. Nunca soube, por exemplo, de qualquer tentativa de sequestrar o dono do "Jornal da Bahia", João Falcão, para metralhar Juracy Magalhães ou para pichar um navio espanhol em protesto contra a ditadura de Franco. Tudo isso, se ocorreu, jamais foi comentado entre os membros da geração Mapa, que, afinal de contas, ao lado de Glauber, eram os protagonistas da história, que Nelson Motta não soube contar - diz Teixeira Gomes, incluído na bibliografia de "A primavera do dragão".
Motta minimiza a polêmica e considera que "não dá para levar a sério" o relato das conspirações - "nem era para isto."
- As "conspirações" de araque - como a tentativa de pichar o navio Ciudad de Toledo, a de explodir bancas de jornais, de assassinar políticos, de sequestrar banqueiros, de "espalhar o caos bakuniniano" na Bahia - que compõem alguns dos momentos mais divertidos da história, e que obviamente não eram sérias, apenas fantasias anarquistas de jovens movidos a cerveja e alegria, me foram relatadas pelo artista plástico Calazans Neto, pelo escritor João Ubaldo Ribeiro e pelo cineasta Orlando Senna, em entrevistas gravadas, às gargalhadas - argumenta o jornalista.
Na Bahia, o artista plástico Calasans Neto era conhecido pelo talento para fabular e contar anedotas nem sempre fidedignas. Cético, Peres duvida que Ubaldo tenha se equivocado:
- Não creio que João Ubaldo tenha sido o grande informante do senhor Motta, pois sendo mais jovem não fazia parte de nosso grupo e portanto não pode ter tanta memória. A amizade acontecida entre os dois, posteriormente, possivelmente, não teria permitido informações inverídicas, levianas e grosseiras. Com a palavra João Ubaldo!
Ciudad de Toledo
Indignado, Fernando da Rocha Peres se incorpora ao testemunho de Joca: ainda que o gesto pareça heróico, nunca houve a tentativa de pichar o navio espanhol Ciudad de Toledo, "atracado a 500 metros do cais" de Salvador, em protesto contra o generalíssimo Franco (Pág. 65). Para o poeta, o autor ouviu Glauber numa "sessão espírita":
- Eu suponho que esses fatos que têm uma conotação política e pseudo-revolucionária, apontados no livro deste senhor, não passam de uma invenção, quem sabe captada numa sessão espírita, ouvindo Glauber Rocha. Ele deve frequentar alguma casa de baixo espiritismo para escrever os livros que edita - ironiza o historiador.
Ladrão x Glauber
Guerra Lima e Peres (chamado, uma vez mais, de Bananeira) não testemunharam qualquer assalto à residência de Glauber Rocha, como está relatado no livro ("Glauber estudava na sala com Bananeira e Guerrinha"), e desmentem o suposto diálogo entre Glauber e um ladrão, uma das histórias mais saborosas da biografia (Pág. 95). Glauber teria falado para Lúcia Rocha: "Calma, mãe, este homem não é um ladrão: ele está é com fome!". "Não estou com fome porra nenhuma! Eu sou é ladrão!", ouviu do assaltante.
- O livro é mais ficção do que biografia. Ou estou desmemoriado, ou não estava ali - contesta Guerrinha.
Nelson Motta diz que Glauber lhe contou o diálogo:
- O episódio do encontro de Glauber com um ladrão me foi contado, ou inventado, pelo próprio Glauber. E depois confirmado em entrevista gravada com dona Lucia Rocha, uma das muitas que fiz em 1989, que foi minha principal fonte, e que pode ter se equivocado em relação aos dois amigos que estudavam com Glauber quando um ladrão entrou em sua casa. Vou tirar os nomes dos que dizem não estar presentes e substituir por "dois amigos" (...) E não há motivos para duvidar da palavra de sua mãe - afirma o autor.
Queima de cadernos
Na página 263, Nelson Motta narra: "Depois, como nos velhos tempos, foram festejar no Tabaris. Mas antes passaram na casa de Bananeira, onde ele juntou todos os seus cadernos escolares em um saco de lixo e levou para o cabaré. Diante da turma, amontoou-os na calçada, despejou uma garrafa de cachaça, acendeu um fósforo e flambou o seu passado, sob gritos e aplausos".
Peres qualifica o relato como "mentiroso". Outros membros da geração, consultados pela reportagem, também desconhecem a "queima" dos cadernos.
- A geração de Glauber Rocha e seus amigos aparecem no livro como personagens de um cordel levado ao absurdo. Grande parte dos acontecimentos são relatados de uma maneira caricata e grotesca. O livro, quem sabe, mereceria ser processado judicialmente. Este assunto ficará no ar - avisa Peres.
João Ubaldo e Glauber no Jornal da Bahia
Ao abordar a entrada da geração Mapa no recém-fundado "Jornal da Bahia", em 1958, Nelson Motta se equivoca: "Dos jovens talentos locais, Ubaldo foi o primeiro a ser chamado para a redação e, dois meses depois, já com alguma moral, trouxe os amigos Paulo Gil, Bananeira e Glauber para a reportagem". (Pág. 170)
João Ubaldo Ribeiro não levou Glauber e demais amigos para o jornal. A biografia "Glauber Rocha, esse vulcão", de Teixeira Gomes - prefaciada por Ubaldo -, e o depoimento unânime dos membros geração Mapa comprovam que Glauber convocou os amigos para formar a equipe de repórteres. A ocupação da imprensa era uma das metas dos agitadores culturais.
- Dentre outros numerosos equívocos do livro, está a informação de que João Ubaldo Ribeiro foi quem levou o grupo Mapa para o novo "Jornal da Bahia", inaugurado em 1958. Isto é uma absoluta inverdade, pois Ubaldo nesta época nem se aproximava do grupo. Ele próprio reconhece que foi uma figura retardatária e que não se considerava propriamente um membro da geração Mapa. Quem nos levou para o "Jornal da Bahia", antes mesmo de o jornal circular, foi Glauber Rocha, que já mantinha contatos com o grupo de jornalistas mais experientes e egressos do Partido Comunista, que iam fundar o novo matutino - corrige Joca.
O poeta Florisvaldo Mattos afirma que foi convidado, igualmente, por Glauber. Ubaldo se incorporou ao grupo na Faculdade de Direito.
Castro Alves 1
Na página 104, Motta escreve que "na véspera do Carnaval, um comando da folia formado por Glauber, Bananeira e Anísio voltou a invadir o cemitério, arrancou a lira de Castro Alves e a entregou a Moby Dick (colunista social Silvio Lamenha)". Na página 103, o autor se refere ao cemitério "Quinta dos Lázaros". Na realidade, o "poeta dos escravos" foi enterrado no cemitério do Campo Santo, no bairro da Federação, em Salvador. Fernando da Rocha Peres ressalta que nunca participou do episódio.
Em "O homem da montanha" (Imprensa Oficial), página 95, o cineasta Orlando Senna conta a mesma história, com o nome correto do cemitério e sem registrar a presença de Peres.
Castro Alves 2
Antonio Guerra Lima, presente na declamação do clássico poema "Navio Negreiro", de Castro Alves, na Faculdade de Direito, quando houve o encontro entre Glauber e Helena Ignez, contesta: o nome do declamador não era "Agripino". Ele se recorda de Péricles Diniz Gonçalves, o Pequinho, o que é confirmado pela biografia "Glauber Rocha, esse vulcão", nas páginas 211 e 212: "Após a indicação da premiação, o próprio Péricles Diniz Gonçalves subiu à tribuna do salão nobre da faculdade, onde se realizava o concurso, para declamar 'O navio negreiro', de Castro Alves", descreve Teixeira Gomes.
"Fuzilamento de Juracy Magalhães"
Estudiosos da obra do poeta Gregório de Mattos e amigos fundamentais de Glauber, Fernando Peres e Joca desmentem relatos "folclóricos", sem precisão histórica. Peres refuta a existência (até mesmo no plano de brincadeira) de qualquer tentativa de ataque ao dono do "Jornal da Bahia", João Falcão, do qual era amigo. Guerrinha, citado como um dos participantes de uma suposta reunião para preparar o "fuzilamento" de Juracy Magalhães e explodir bancas de jogo do bicho, indica outra vez a incidência de "ficção". "Nunca existiu!", disse Guerra, aos risos. Fernando Rocha, o verdadeiro Bananeira, sorriu ao saber da história: "Maluquice danada!".
- Glauber sairá dessa narrativa, tida como biografia, que para mim não é, com uma imagem positiva. Mas o livro é uma narrativa glamourizada, sem compromisso com a realidade, com os fatos. Para quem não viveu aquele tempo e não morou na Bahia, não há nada. Mas, quem conhece Salvador vê muitas informações equivocadas - analisa o poeta Florisvaldo Mattos, ex-diretor da sucursal baiana do Jornal do Brasil.
O pintor Sante Scaldaferri identifica uma falha metodológica:
- A pesquisa foi mal-orientada. Simpatizo com Nelson Motta, mas ele pisou na bola porque não é pesquisador. Poderia mandar o livro para Joca e Fernando Peres tirarem todos os erros. Se fosse humilde, mandaria alguém entrevistar a gente e não errava tanto. Agora, na Globonews, ele falou certo sobre o Glauber cineasta. De resto, foi infeliz. No livro, ele disse que Glauber era batista. Glauber era presbiteriano! Cantava os hinos para a gente. Sempre falei que ele era um homem à procura de Deus.
Pinto de Aguiar
A troca de nomes afetou a compreensão de alguns fatos, a exemplo do apoio do editor Pinto de Aguiar à luta por dinheiro para a impressão da revista "Mapa". Fernando Rocha trabalhou com o dono da Editora Progresso, e não Fernando da Rocha Peres, que virou "Bananeira" na biografia (Pág. 155). O irmão de Fernando Rocha, Wilson, era casado com a filha de Pinto de Aguiar.
- Um dos absurdos do livros é eliminar da geração Mapa a figura do jornalista Fernando Rocha, erroneamente confundido com outro membro da geração, Fernando da Rocha Peres, considerado como Bananeira, quando este apelido muito conhecido por todos os integrantes da geração e pela Bahia em geral, pertence ao outro Fernando, simplesmente o Rocha e não o Rocha Peres. Esse é um dado irrelevante mas que compõe incomodamente o grande número de desacertos de Nelson Motta no seu Primavera do Dragão - lamenta Joca.
Em outro trecho, na página 212, a atriz Sonia Pereira, de Mandacaru Vermelho, é confundida com a escritora Sonia Coutinho. Motta pede desculpas pelo erro.
Glauber, "corno"
Os amigos de Glauber veem um enquadramento moralista na abordagem do fim do casamento do cineasta com a atriz Helena Ignez. Em dois momentos, o enfant terrible do Cinema Novo é chamado de "corno": "Encontrou em Saraceni, recém-chegado da Itália, o amigo e confidente para suas mágoas de amor e seu orgulho ferido. Helena o fizera um corno público em Salvador" (Pág. 255); (...) "Seria duro. Toda Salvador ali, sabendo do escândalo, olhando atravessado, debochando do corno" (Pág. 262).
Helena Ignez, que também diz não ter sido entrevistada, recebeu um exemplar enviado pela Objetiva, mas ainda não teve tempo de ler, pois está envolvida em uma nova peça. Entretanto, tomou conhecimento de algumas histórias e prefere citar o ex-marido Rogério Sganzerla: "Nem tudo é verdade".
Nas primeiras páginas, uma descrição das medidas do pintor Calasans Neto (vitimado por poliomielite) provocou risos nos protagonistas da Mapa: "Dono de uma gargalhada estrondosa e, asseguravam os amigos, de um pau enorme, Calá era a alegria dos almoços na pensão com suas piadas e safadezas".
- É um exemplo gritante da irresponsabilidade deste pseudoescritor: na página 49 do livro, ele exalta o "pau" de Calasans Neto como grande!... A não ser que ele tenha tido essa informação vinda da esposa de Calasans Neto - provoca Fernando Peres.
Anjo Azul
Outros detalhes de ambientação são questionados por contemporâneos de Glauber. No capítulo sobre a "Glamour Girl" Helena Ignez, Nelson Motta procura descrever o bar "existencialista" Anjo Azul, no Centro de Salvador. "Nas paredes, telas de Carlos Bastos e tapeçarias de Genaro de Carvalho" (...) "Naquela noite, no Anjo Azul, Helena comemorava com amigos a sua indicação para concorrer - vitória praticamente certa - ao título de 'Glamour Girl', quando foi abordada por Paulo Gil ao sair da pista de dança e se encaminhar para a mesa." (Pág. 125)
Os frequentadores do Anjo Azul não se lembram de nenhuma pista de dança. Às vezes, embalados por uma música de Billie Holiday, os casais se levantavam para dançar cheek to cheek. "Era tão apertado que a gente batia numa escultura de Mário Cravo", brinca Florisvaldo Mattos. E não havia "telas", mas um famoso mural modernista de Carlos Bastos, posteriormente destruído, sob protestos.
Contesta-se a afirmação de que Glauber, ainda secundarista, recebia seus amigos "completamente nu", "peladão", em seu quarto, na casa de sua família em Salvador (Pág.50). Este seria um hábito posterior à fase retratada no livro. "Isso é onda. Ele tinha irmã, tinha prima, como ele ia fazer isso?", desfaz Fernando Rocha.
Em 6 de novembro, a Bienal do Livro da Bahia deve acolher o lançamento da obra de Nelson Motta. Os membros da Mapa decidiram: não vão comparecer. O biógrafo João Carlos Teixeira Gomes recomenda uma nova edição (revisada).
- Não faço nenhuma restrição a fatos ligados à vida amorosa de Glauber, como o ciúme possessivo da sua personalidade, em relação a suas numerosas amadas, nem quero moralismo, porque nossa geração era muito liberada sexualmente e artisticamente. Queríamos o novo. Mas é óbvio que me incomodam distorções, simplesmente por não corresponderem à realidade da nossa trajetória coletiva. Aconselharia Nelson Motta, numa eventual segunda edição do seu livro, que corrigisse essas numerosas distorções com o mesmo entusiasmo com que ele se lançou a escrever apenas uma parte da vida de um criador tão inteiriço e indivisível como Glauber Rocha.
Motta defende a pertinência de seu trabalho e procura diminuir a importância dos amigos de Glauber:
- Acredito que são equívocos pontuais e irrelevantes para a narrativa da formação de um personagem extraordinário cercado por inúmeros pequenos e grandes amigos, conhecidos e colegas, que se confundem e se perdem ao longo da sua juventude povoada por uma multidão de personagens que, ao contrário de Glauber, se dissolveram no tempo.
O corte cronológico de Nelson Motta não é uma novidade editorial. Em 1995, Ayeska Paulafreitas e José Júlio Lobo lançaram "Glauber, a conquista de um sonho - Os anos verdes". Desta vez, assevera Peres, "Glauber é pintado na sua juventude com cores nada dignas e também a sua geração".
- Isto me parece indigno. Espero que estas minhas declarações e as de João Carlos Teixeira Gomes e Fernando Rocha não venham a favorecer a vendagem deste livro (A primavera do dragão) que nada acrescenta à história de um grupo, à biografia de Glauber e aos brios baianos. Este rapaz, felizmente, não nasceu na Bahia - mordisca o historiador e membro da Academia de Letras da Bahia, onde realizará a palestra: "Biografia: um gênero em questão", dissecando a obra de Motta.
Em "Glauber Rocha, esse vulcão", Joca evidencia as dificuldades para biografar o cineasta: "Ele tinha efetivamente, certas reações imprevisíveis, o que contribuiu para formar em torno dele um elenco de lendas perniciosas, que sufocavam o seu lado realmente importante e consequente - ou seja, o do intelectual e realizador cinematográfico. Se é verdade que um biógrafo não deve suprimir ao leitor a informação de tais fatos, também é verdade que deve usá-los dentro de rígidos limites éticos, não para favorecer a imagem do biografado, mas sim para não permitir que o secundário, numa personalidade, triunfe sobre o essencial da sua vida". E conclui: "Uma biografia não é um depósito de quinquilharias, insignificâncias e dados irrelevantes".