Por Cacá Diegues
A população do país precisa se dar conta da importância da Lei 12.485 para todos nós brasileiros. Essa lei, recentemente aprovada pelo Congresso, trata de conteúdo nacional nas televisões por assinatura. Mas não se trata de reivindicação corporativa, benefício exclusivo para a atividade que fabrica esse tipo de produto. Trata-se de exibir, nas telinhas brasileiras, sons e imagens do Brasil, num diálogo com o público que esteja à altura de nossas criatividade e diversidade, que seja um espelho de nossos costumes e, ao mesmo tempo, capaz de propor novos comportamentos para novos tempos.
Quando dizemos “sons e imagens”, estamos nos referindo a toda uma família do audiovisual da qual o cinema é apenas um avozinho que gerou descendência luminosa, da televisão aberta à internet, do DVD à televisão por assinatura. Além dos múltiplos novos formatos que ainda vêm por aí.
Poucos sabem que o cinema brasileiro é um dos mais antigos do mundo. A primeira sessão de cinema se deu no dia 28 de dezembro de 1895, num café de Paris. Em junho do ano seguinte, já se realizavam projeções, aqui mesmo no Rio de Janeiro, na rua do Ouvidor, as primeiras sessões de cinema na América Latina. Cerca de apenas um ano depois, um fotógrafo ítalo-brasileiro já estava filmando a entrada da Baia da Guanabara, realizando assim o primeiro filme sul-americano.
Mas o cinema brasileiro nunca teve uma história fluente, sempre viveu de ciclos que se abriam com grande euforia e, depois de muito pouco tempo, se fechavam melancolicamente, vítimas de circunstâncias políticas, econômicas ou institucionais. Foi assim com a vasta produção de filmes brasileiros na primeira década do século 20, com os ciclos regionais dos anos 1920 e 30, com a chanchada, a Vera Cruz, o Cinema Novo, a Embrafilme.
Desde a promulgação da Lei do Audiovisual, ainda durante o governo Itamar Franco, o cinema brasileiro vive um novo período que, passados 20 anos, já podemos desconfiar de que não se trata de mais um ciclo, mas da inauguração do cinema como atividade permanente no Brasil.
Isso significa que podemos enfim contar com a fabricação regular de uma imagem para o país através de seu cinema. Uma imagem que deve ser espelho e estímulo, descoberta e reflexão, capaz de colaborar com a construção de nossa identidade. Sendo que a identidade de um povo não se determina pela data imutável de seu nascimento no passado, mas pelo futuro do que ele for capaz de construir.
A Lei 12.485, pela qual tantos lutaram, inclusive os responsáveis pelo sucesso de nossa televisão aberta, representa a consolidação desse movimento coletivo, abrindo nossas telinhas àqueles novos sons e imagens, representantes de nossa diversidade geográfica, étnica, cultural. Essa lei reserva, para a exibição do audiovisual nacional independente, três horas e meia semanais (cerca de dois por cento de toda a duração da semana) da programação de cada canal, além de 1/3 de canais nacionais (tipo Canal Brasil) nos pacotes de cada operadora.
Contra isso, se insurgem alguns poucos insatisfeitos, como a Sky, recorrendo à Justiça para impedir essa redenção do nosso audiovisual. Ora, a lei não estupra ninguém, não impede que cada canal faça sua programação como bem entender, contrate o produto nacional que lhe for mais conveniente, estabeleça preços de mercado para essas operações. Ninguém se mete na vida deles, apenas pedimos licença para ocupar um espaçozinho modesto em nossa própria casa.
Não basta que a Ancine e os cineastas brasileiros se unam na defesa dessa lei. É preciso que a população compreenda que ela é uma necessidade do país como um todo, uma necessidade que não atende apenas à corporação do cinema mas ao interesse de todos. Não estou exagerando: temos que lutar pela regulamentação e execução da Lei 12.485 como fizemos há quase dois séculos pela independência do país. Ou como nos empenhamos, mais recentemente, para livrar o país da ditadura que nos oprimia.
Em contrapartida, é preciso que a Ancine ouça a todos e que todos colaborem com a Ancine para evitar a burocracia que estrangula as leis e as torna ineficazes. É preciso produzir uma regulamentação que não sufoque nem exclua o produtor independente mais modesto, que não imponha nem cerceie a liberdade das operadoras e programadoras.
Essa semana, em entrevista na televisão, um político respeitável como Aldo Rebelo, liderança proeminente do mesmo partido do presidente da Ancine, alguém que já passou pelos cargos mais importantes do Legislativo e é hoje Ministro dos Esportes, reclamava do que chamou de “excesso de burocracia no país”. Se um ministro da confiança do governo tem esse cuidado, imagine nós que não temos o seu poder.
O Globo, 10 de março de 2012
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