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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Cordas e Camarotes: cinturões da exclusão



TEXTO DO PROFESSOR E MÚSICO MESSIAS G. BANDEIRA

A recente declaração de Bell Marques (Chiclete com Banana), justificando a manutenção das cordas no carnaval de Salvador, é o sintoma mais aparente do preconceito de classe que subsiste na Bahia. A novidade é que, ao expressar publicamente sua índole, Bell aperta, até o último buraco, o cinturão da exclusão na maior festa popular do mundo.

Poderíamos dizer que se trata de uma fala isolada, um deslize. Não é o caso. O carnaval dá relevo a uma situação sistêmica da desigualdade em Salvador. Bell Marques e sua turma acentuam a discriminação, empurrando as cordas e o preconceito contra aqueles que, ironicamente, deram-lhes palco, prestígio e riqueza.

O silêncio de outras estrelas da axé music diante de tal declaração é um aval ao apartheid pretendido por muitos blocos, camarotes e suas correias de transmissão instaladas nos órgãos e secretarias da (des)governança da cidade de Salvador. Eles não podem continuar dando as cartas. E o município não pode amesquinhar-se ante aqueles que operam no submundo do esquema marqueteiro.

Da aviltante “popcorn experience” — acreditem: um cercado que permite aos ilustres pagantes dos camarotes a vivência do carnaval no asfalto “sem se misturar” — ao sequestro dos espaços públicos por alguns camarotes, tudo parece nos expulsar do carnaval.

Não carrego ilusões. O carnaval baiano não é a festa da igualdade. No limite, ele subtrai o distanciamento físico de estratos sociais, falseando uma equidade que, na realidade, se apresenta apenas de forma simbólica durante 6 dias. Ou seja: entre “chupar um geladinho na corda” e apreciar um drink no espaço gourmet do camarote, há um imenso abismo. Inclusão social? Capitalismo de estado? Qual? Aquele que oferece 9.837 m2 ao Camarote Salvador e 0,6 m2 ao isopor de cerveja?

É bem verdade que o carnaval não será o locus da superação de disparidades sociais históricas. Trata-se de uma festa. Mas é exatamente por isso que o vetor mercadológico deveria estar submetido ao core cultural da festa. E não o contrário. O carnaval também é um campo de disputa política. Cordas e camarotes até podem ser justificáveis em algumas situações. No entanto, usá-los como forma de opressão é inaceitável.

Bem, eu poderia fugir do carnaval e virar as costas pra tudo isso. Mas estarei ali, ocupando o espaço público, na companhia de cidadãos que querem celebrar o carnaval, que exigem respeito e dignidade. E não apenas porque pago os meus impostos — o que me reduziria a um simples consumidor de serviços públicos. Mas, sobretudo, porque vivo nesta cidade.

Minha fórmula? Abaixem as cordas e desçam do camarote. Venham viver não a “popcorn experience”, mas a “human experience”. Depois de 35 anos pulando atrás do trio de Dodô e Osmar, eu garanto: além de uma atitude cidadã, é muito mais divertido!

 Messias G. Bandeira

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O prazer de ler romances



Por João Paulo (Estado de Minas)

Entre os maiores prazeres do mundo está a leitura de um bom romance. Por isso é preocupante que as pessoas leiam pouco: elas estão deixando de lado uma das melhores coisas da vida. Resumir a capacidade de ser feliz é sempre um problema. Para o filósofo Spinoza, o que caracterizava a felicidade era a ampliação do mundo. No caminho contrário, sempre que diminuímos o horizonte operamos um trabalho em favor da tristeza. 

Há prazeres e prazeres. Nossa época padece de uma mescla contraditória de hedonismo e ascetismo. Todos querem gozar muito e rápido, deixando de lado a lenta e agradável tarefa da preparação. Por outro lado, o que é considerado felicidade ficou tão contido na estreita faixa do consumo que a realização se tornou muito mais uma obrigação que um ato de liberdade. 

O homem de hoje não escolhe aquilo de que gosta, há uma imposição ditada pelos padrões de consumo que indicam o “lugar certo onde colocar o desejo”. Há algum tempo, a grande cisão se dava entre o ser e o ter. Hoje, no reino do simulacro e da sociedade do espetáculo, o ser foi destronado pelo parecer. As pessoas têm que parecer jovens (mesmo à custa de uma máscara horrorosa de botox e plástica que tira a diferença em nome de uma fealdade típica), parecer ricas (mesmo consumindo o que não apreciam), parecer vencedoras (mesmo à custa de dar rasteira no outro e furar filas).

Com esse receituário, algumas alegrias que atravessaram os séculos correm o risco de se perder no caminho. A leitura de romances parece ser uma delas. Em primeiro lugar, os temas clássicos foram sendo jogados de lado em nome de um realismo brutalista. Como ler se tornou chato, a saída foi aproximar as ficções do que a realidade tem de mais excitante. E dá-lhe livros policiais e assemelhados. Toda narrativa, para ser palatável, precisa ser curta, rápida, violenta e rasteira.

Para dar sequência a uma boa intenção que se perdeu, os romances, além de trocar a dimensão literária pela estética do jornalismo e do cinema, se tornou um produto desprestigiado no mercado cultural pela exigência que cobra do consumidor. Para que ler um livro se posso consumir um resumo, uma adaptação, uma resenha? Não foi por acaso que fez sucesso há poucos anos um livro que se chamava Como falar de livros que você não leu. O lance é parecer que leu.

Um terceiro aspecto do esvaziamento da literatura como entretenimento rico se deu exatamente pelo preconceito contra a diversão. Autores que se julgam sérios decidiram que livros bons precisavam ser cacetes. A chamada alta literatura se afundou num pântano de autorreferência e citações enviesadas, deixando a boa história de lado em nome da metalinguagem. O resultado foi um cisma, que ainda hoje deixa marcas no cenário: livro bom precisa ser metido a besta; livro divertido não merece respeito de gente séria.

Já vai longe o tempo em que autores como Jorge Amado e Erico Verissimo escreviam a melhor literatura brasileira e eram lidos por milhões. Mesmo eles, que algumas vezes chegaram perto da composição de obras-primas (como São Jorge dos Ilhéus e Gabriela, cravo e canela, no caso de Amado; e os vários volumes de O tempo e o vento  e Incidente em Antares, da pena de Verissimo), foram objeto de muxoxos por parte da crítica. 

O poeta José Paulo Paes e o crítico Antonio Candido foram dos poucos analistas literários de peso a defender a importância de uma literatura de entretenimento entre nós. Sofisticados e cultos, sabiam que o sistema literário só funciona se houver uma sedimentação quantitativa, que, com o tempo, prepara o leitor para trabalhos mais exigentes. Os escritores populares de hoje (como foram Balzac e José de Alencar em seu tempo) preparam o caminho e, muitas vezes, ajudam eles mesmos a indicar as melhores picadas. Sucesso de público não é defeito. O pecado é a má literatura.

Outro caminho que parece romper com o esquematismo que divide livros sérios e volumes descartáveis é a chamada literatura pop, marcada pela sensibilidade com os dilemas contemporâneos, de olhos nas pessoas que são gente como a gente. São livros que trazem personagens comuns, vivendo existências convencionais, mas tocados, em algum momento, por alguma sutil manifestação da transcendência. Pode ser o humor, a redenção, o mergulho no mistério. Uma epifania profana, como a dos personagens de Salinger, o mais cult dos pops – ou o contrário. O importante é que seja comunicável, agradável, excite a sensibilidade e incorpore inteligência ao mundo à nossa volta.

Sexo, rock e literatura Um exemplo de livro que reúne tudo que de bom a literatura pode dar ao leitor e ainda proporcionar altas doses de prazer é o romance A visita cruel do tempo, da escritora americana Jennifer Egan, que sai no Brasil pela Editora Intrínseca. A romancista ganhou o prêmio Pulitzer de ficção de 2011 e uma fileira de outras distinções. O livro agradou o público e vende como pão quente. Tem nele a mágica de convencer a crítica e divertir o público. O enredo é simples, os personagens verdadeiros. Tem sexo, drogas e rock’n roll. 

O que Jennifer Egan tem de especial é a capacidade de contar uma boa história, que tem como atores gente como um executivo do mundo do disco que toma café com flocos de ouro para recuperar o tesão perdido, uma marqueteira que acaba assessorando um ditador sanguinário, adolescentes problemáticos, mulheres em busca do amor, um ídolo decadente do rock em fase terminal, um jornalista de celebridades que sai da prisão por violência sexual contra uma personagem de suas matérias, um pescador desligado do mundo que se alimenta de peixes pescados em rios poluídos. Como se vê, em cada uma das personagens há uma enxurrada de símbolos. Mas o que mais agrada no livro é que a teoria foi deixada de lado. O que importa são as pessoas.

Em meio a um universo entrópico e aparentemente sem saída, o grande personagem da narrativa é o tempo. Desde Marcel Proust, com seu ciclópico Em busca do tempo perdido, a matéria de que somos feitos passou a ser o escorrer dos minutos, que fluem ora para a frente, ora em direção à aurora da vida. A romancista, com um domínio impressionante da estrutura narrativa, divide seu livro em 13 capítulos, cada um passado em uma época, narrado por um personagem, com um foco peculiar. A história se desloca no tempo, no espaço e na voz narrativa.

Como 13 contos que se entrelaçam a partir de detalhes, a construção do universo se dá ao final da narrativa, com o leitor partilhando experiências diferentes, vindas de pessoas sempre no momento de decisão. Em cada um dos capítulos, a narrativa começa de chofre, sem explicar quem fala, em que tempo se encontra, em que mundo habita o narrador. É a própria história, que vai se desdobrando para o leitor, que cria a segurança da identificação e a ancoragem do sentido. A romancista nos coloca em meio a um caleidoscópio que, com o desenrolar da história, passamos a girar para ver brilhar imagens encantadoras ou assustadoras. O nome do brinquedo é tempo.

A visita cruel do tempo reconstitui o prazer de leitura sem abrir mão do esforço do leitor. É um livro tão interessante exatamente na medida em que exige uma entrega à linguagem, à fabulação e à visão de mundo de pessoas já vividas, mas nem por isso céticas ao ponto de desprezar uma história bem contada. Quem acha que não tem o que aprender com romances está perdendo uma boa chance de incorporar humildade no seu patrimônio afetivo. Afinal, o tempo é cruel e não vai deixar de nos visitar na hora certa. E também nas erradas.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Democracia em questão


POR CARLOS HEITOR CONY

Acho que já contei esta história, mas vou repeti-la para justificar o título desta crônica. Faz tempo, o escritor Álvaro Lins, crítico literário e chefe do Gabinete Civil no governo JK, recebeu convite oficial para visitar a Suíça. Começou em Genebra. No primeiro dia, leu os jornais da cidade e ficou sabendo que haveria eleição geral em toda a Confederação Helvética.

O cicerone colocado à sua disposição veio apanhá-lo no hotel e começou a mostrar os pontos mais interessantes da cidade. Em dado momento, Álvaro perguntou: "Li nos jornais que hoje é dia de eleições gerais, mas não estou vendo nenhum movimento, nenhuma fila, nenhuma seção eleitoral...".

O cicerone explicou: "Não, não temos isso de filas e seções especiais. Em cada edifício público, banco ou escola, há uma maquininha, o eleitor aperta o número de seu candidato e vai embora, sem nenhuma outra formalidade".

Álvaro pensou um pouco e novamente perguntou: "E se um eleitor apertar mais de uma vez o número de seu candidato?". O cicerone ficou escandalizado: "Mas dr. Álvaro, quem faria isso?".
Álvaro não teve outro remédio senão recolher o palpite e admitir que na Suíça não haveria ninguém capaz de façanha tão condenável.

Imaginemos o processo suíço instalado no Brasil. Um candidato a vereador em São José das Três Ilhas (MG) amanheceria junto da maquininha, dela tomaria posse, ali passaria o dia inteiro, apertando o próprio número. Por essa e por outras, Churchill declarou que a democracia era o pior regime político, excetuando-se os outros. Vencedor absoluto da ditadura nazista, Churchill perderia a primeira eleição pós-Guerra. Somente uma democracia estável, em nível superior, explicaria a derrota de um gigante. De um herói incontestável.

O dilema colocado pela política, desde que os povos na mais remota Antiguidade começaram a se estabelecer como nações soberanas, até agora não superou a dicotomia maniqueísta entre democracia e ditadura.

Há pequenas variantes (regimes mistos, parlamentarismo, colégios eleitorais, monarquia constitucional etc.) que não modificam essencialmente um regime do outro.

Qualquer cidadão minimamente politizado conhece e amaldiçoa todos os malefícios, todos os crimes e aberrações das ditaduras. Daí que a democracia é venerada como a melhor forma de regime político, excetuando-se as outras -repetimos Churchill.

Agora a pergunta: depois de viver séculos e séculos cultuando a democracia como a solução ideal para a vida das nações e dos indivíduos, é natural que algum espírito de porco questione o problema. As elites pensantes da humanidade, filósofos, historiadores, estadistas, gênios de toda a espécie ainda não conseguiram criar não digo uma terceira via, mas um sistema de conduta política mais eficiente e justa. E que não poderá ser imposta com tanques, canhões e mísseis dos povos mais fortes.

No momento atual, neste início de século 21, com quase todos os países declarando-se democráticos, atravessamos sucessivas crises que não poupam sequer as grandes economias do mundo.

Quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras, querendo expressar minha posição pessoal sobre a sociedade como um todo, fui buscar o fecho do meu discurso em Eça de Queiroz, que era apenas um escritor, um literato sem formação política nem filosófica. Encontrei em suas "Notas Contemporâneas" as palavras que poderiam me definir ideologicamente:

"A presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criança sem pão, a incapacidade da Monarquia e da República, da Ditadura e da Democracia para realizar a única obra urgente do mundo, a casa para todos, o pão para todos, lentamente me tem tornado um vago anarquista, um anarquista entristecido, humilde e inofensivo."

Bem sei que a anarquia pura e simples, e, sobretudo, inofensiva, sem bombas, saques, sem dinamitar pontes e trens nem degolar criancinhas nos orfanatos, representaria uma solução desesperada, cujo único mérito seria contestar o establishment, levando a humanidade a criar um regime político baseado nas liberdades individuais, operado com paz e produzindo progresso. Liberdade, paz e progresso. Nesta ordem.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O Carnaval do governador

Jaques Wagner não cuidou de sustar a eclosão da greve; se fez alguma outra coisa útil, e de seu dever, não se sabe 


POR JANIO DE FREITAS 

Os feitos da violência na Bahia mostraram, em sua gratuidade na rua e irresponsabilidade no palácio, o mesmo espírito carnavalesco que, como sempre, há semanas invadiu Salvador por antecipação.
A quebra dos limites que levou aos saques e destruição de lojas, a outros roubos e violências, e mesmo a tantos crimes de morte, não foi causada diretamente pela greve da Polícia Militar. Veio da espontaneidade que tem o motivo único e simples de estar liberado. Para vestir o que quiser ou desvestir-se, cantar e dançar nas ruas, assaltar, encher-se de bebida ou de tóxicos, roubar e saquear, agarrarem-se uns aos outros, soltar-se para o sexo ou para o crime: o carnaval autêntico e o carnaval da violência permitidos pela mesma ausência de impedimentos.

A cota mais pesada de responsabilidade pelos distúrbios criminosos na Bahia cabe ao governador Jaques Wagner, o mais prestigiado por Dilma Rousseff. Não é imaginável que a greve da sua polícia o surpreendesse. Ainda que o fizesse, já no começo da semana estava concretizada e, portanto, evidente.
Logo se comprovava que o governador não adotou medidas preventivas. Não cuidou de sustar a eclosão da greve, não preparou o deslocamento de contingentes policiais discordantes do plano de greve, não se articulou com os comandos militares para eventualidades previsíveis, e não se coordenou com o governo federal para o auxílio da Força Nacional. Se fez alguma outra coisa útil, e de seu dever, não se sabe.
Diante disso, nem importa saber onde estava e o que fazia o governador enquanto a sua PM cuidava de deixar a capital do Estado desprovida de policiamento, como também outras áreas. A seu favor (se é), só o fato de que não esteve sozinho na omissão. Os secretários de Segurança e de Justiça, o comando da PM e várias assessorias o acompanharam na ausência de ação. Os fatos o atestam.

Efetivada a greve e iniciadas suas consequências sobre a população, o governo baiano tardou ainda dois dias, ou algumas horas menos, para adotar providências perceptíveis. Só na quinta-feira foi possível perceber algumas delas, sobretudo a pedida presença de militares nas ruas.

Greves de serviços públicos essenciais, em especial os chamados de saúde (a rigor, falta de) e os de segurança da população, sempre serão polêmicas. Não precisam, porém, ficar nesse limbo em que permanecem no Brasil. Entre direito, abuso, consequências públicas e particulares desrespeitadas pelo poder público, e outras muitas obscuridades artificiosas. Mas convenientes aos governantes e aos parlamentares, que assim escapam aos ônus eleitorais, em qualquer sentido, da posição definida.
Quando escrevo, as indicações do número de mortos continuavam contraditórias. Mais de 20, por certo. Em circunstâncias também mal definidas. Teriam ocorrido, todas, fossem diferentes a greve e o que se passou à sua volta no governo? Ora, isso não importa aos poderes públicos que têm mais o que fazer. E de preferência o que não fazer. 
 
QUEM SABE?
Pergunta sem resposta: por que um deputado federal se movimenta, como Vicente Cândido, do PT paulista, para que se faça aos fabricantes de cerveja a gentileza de liberar bebidas alcoólicas nos estádios? Não só na Copa: sempre e em todos os estádios.
A proibição foi uma batalha áspera. Já a liberação, exigida na Copa pela casa de negócios Fifa, depende.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Entrevista inédita com Pasolini


''Eu sei que muitos pensam que sou louco, mas o humanismo está no fim''. Entrevista com Pier Paolo Pasolini
Uma entrevista inédita com o escritor italiano Pier Paolo Pasolini, gravada em Estocolmo, na Suécia, no dia 30 de outubro de 1975, pouco antes da sua morte. "Não há mais católicos e marxistas no meu país. Venceu a revolução consumista". O texto completo está publicado no novo número da revista Espresso.

A reportagem é do jornal La Repubblica, 16-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

O senhor foi escritor, ainda é. Como decidiu fazer cinema?

Isso tem raízes distantes. Quando eu era jovem, tinha 18-19 anos, por um momento pensei em ser diretor. Depois, veio a guerra, e isso cortou por longos anos toda possibilidade e toda esperança. E depois houve circunstâncias: depois que eu publiquei o meu primeiro romance, Ragazzi di vita, que teve sucesso na Itália, fui chamado para fazer roteiros. Quando gravei Accattone, era a primeira vez que eu encostava em uma câmera. Ele nunca tinha feito nem uma fotografia, e nem agora eu sei fazer uma fotografia.

O senhor prefere atores não profissionais. Como trabalha? Busca um ambiente e, quando o encontra, escolhe as pessoas depois?

Não é exatamente assim. Se eu faço um filme de ambiente popular, pego pessoas do povo, isto é, não profissionais, porque acredito que é impossível para um ator burguês fingir que é um operário ou um agricultor. Soaria falso de modo intolerável. Ao contrário, se eu faço um filme de ambiente burguês, já que não posso pedir que um engenheiro, um médico ou um advogado venha ser ator para mim, eu pego atores profissionais. Naturalmente, falo da Itália, e da Itália de dez anos atrás. Se eu estivesse na Suécia, provavelmente pegaria atores, porque não há mais diferença entre um burguês e um operário na Suécia. Falo de um fato físico. Na Itália, há uma diferença assim como entre um branco e um negro.

Nos seus últimos filmes, não há elementos religiosos, não é?

Não estou tão certo de que não haja elementos religiosos nos meus últimos filmes. Nas Mille e una notte, também havia uma espécie de inspiração religiosa em todo o filme. Não havia religiosidade confessional, temas religiosos diretos, mas uma situação de mistério e de irracionalidade havia. Todo o episódio de Ninetto, que é a parte central das Mille e una notte...

O senhor participou do diálogo entre católicos e marxistas na Itália?

Não há mais marxistas e católicos na Itália, não há mais católicos na Itália.

Explique, então, qual é a situação.

Na Itália, ocorreu uma revolução, e é a primeira da história italiana, porque os grandes países capitalistas tiveram pelo menos quatro ou cinco revoluções, que tiveram a função de unificar o país. Penso na unificação monárquica, na revolução luterana reformista, na revolução francesa burguesa e na primeira revolução industrial. Mas a Itália, ao contrário, teve pela primeira vez a revolução da segunda industrialização, isto é, do consumismo, e isso mudou radicalmente a cultura italiana em sentido antropológico. Antes, a diferença entre operário e burguês era como entre duas raças. Agora, essa diferença quase não existe mais. E a cultura que foi mais destruída foi a cultura camponesa, que era então católica. Assim, o Vaticano não tem mais sobre as costas essa enorme massa de agricultores católicos. As igrejas estão vazias, os seminários estão vazios. Se você vai a Roma, não vê mais filas de seminaristas que caminham pela cidade, e, nas duas últimas eleições, houve um triunfo do voto secular. E os marxistas também foram mudados antropologicamente pela revolução consumista, porque vivem de outro modo, em uma outra qualidade de vida, em outros modelos culturais e também foram mudados ideologicamente.

São marxistas e consumistas ao mesmo tempo?

Há essa contradição, todos aqueles que são declaradamente marxistas, mesmo que votem em marxistas, são ao mesmo tempo consumistas. Não só isso: o Partido Comunista Italiano aceitou esse desenvolvimento.

Mas quando o senhor fala de marxistas, fala do Partido Comunista ou de outras facções?

Sim, dos comunistas, socialistas, extremistas. Por exemplo, os extremistas italianos jogam bombas e depois, de noite, assistem à televisão, Canzonissima [programa de variedades da RAI], Mike Bongiorno [famoso apresentador de TV italiano].

Ainda existe a sociedade de classes?

As classes existem, mas – e este é o ponto original da Itália – a luta de classes é no plano econômico, não mais no plano cultural. Agora, a diferença é econômica entre um burguês e um operário, mas não há mais diferença cultural entre os dois.

E o novo movimento fascista?

O fascismo acabou, porque se apoiava em Deus, família, pátria, exército, todas as coisas que agora não têm mais sentido. Não há mais italianos que, diante da bandeira italiana, se comovam.

Há, portanto, uma dissolução da sociedade italiana de hoje, não é verdade?

Eu considero o consumismo um fascismo pior do que o clássico, porque o clérico-fascismo, na realidade, não transformou os italianos, não entrou dentro deles. Foi totalitário, mas não totalizante. Só um exemplo que posso dar: o fascismo tentou, durante todos os 20 anos em que esteve no poder, destruir os dialetos. Não conseguiu. Ao contrário, o poder consumista, que diz querer preservar os dialetos, os está destruindo.

Faça uma profecia, seja Tirésias. Há esperança no futuro?

Deveria ser mais Cassandra do que Tirésias. Perguntei hoje a dez jovens suecos com quem falei, fiz-lhes esta pergunta: vocês ainda se sentem mais próximos da civilização humanista ou já se sentem dentro da civilização tecnológica? E me parece que eles responderam, tristemente, contudo, que eles se sentem como a primeira geração de cerca de 30 gerações diferentes daquilo que tem havido até agora. E, para concluir, tudo o que eu disse, eu o disse a título pessoal. Se vocês conversarem com outros italianos, eles lhes dirão: "Aquele louco do Pasolini"...