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domingo, 28 de novembro de 2010

"Morte com data certa", de Ferreira Gullar


ELE A viu, pela primeira vez, numa fotografia. No mezanino da escola, na parede oposta à dos janelões, havia uma série de fotos que documentavam alguns momentos memoráveis daquele estabelecimento formador de quadros políticos que teoricamente iriam mudar a face do mundo.
Não obstante, ali se realizavam reuniões festivas de que participavam diretores, professores, alunos e tradutores. Lina era uma tradutora e, sem sombra de dúvidas, a mais linda de todas.
Ela ocupava, em primeiro plano, o canto esquerdo da foto, os cabelos presos na nuca e um sorriso que lhe iluminava o rosto redondo de menina. Calçava botas de cano alto e uma saia justa que lhe deixava à mostra os joelhos.
Era como uma fada jovem, numa aparição de encanto, naquele universo político-ideológico. Suspirou, certo de que aquela mulher estava fora de seu alcance, fora do alcance mesmo de seus olhos. Seria, talvez, uma visitante, que ali aparecera como convidada em alguma das festas.
Viu a tal foto na primeira semana de sua chegada ao instituto, quando os cursos mal se iniciavam e as turmas ainda estavam incompletas. Poucos dias depois, as aulas começavam e foi aí que a viu em pessoa, lanchando na "stalovaia" da escola. Ela estava numa mesa próxima, tomando café e conversando com um grupo que falava espanhol.
Em determinado momento, seus olhos se cruzaram, mas ela logo se voltou para alguém, disse-lhe alguma coisa ao ouvido e riu discretamente. De noite, na cama, antes de dormir, lembrava-se dela, daquele sorriso, daqueles cabelos ruivos presos na nuca.
Soube depois que era tradutora encarregada dos coletivos de alunos de língua espanhola, todos latino-americanos. Como os brasileiros se enturmavam com estes, também se davam com ela e foi assim que, certa tarde, na mesma lanchonete, ela sentou-se na mesa em que ele estava com um casal carioca.
Foram apresentados e ela não pareceu dar maior importância ao fato, embora ele tivesse a impressão de que o seu olhar de algum modo a perturbava.
Por sorte, algumas semanas depois, houve uma festa promovida pelo coletivo argentino, com tangos e tudo o mais, e nessa noite ele a tirou para dançar. Disse-lhe ao ouvido que a achava linda ("ótin craciva") e ela empalideceu. Quando a festa acabou, ela, nervosa, sussurrou-lhe que a esperasse na estação do metrô. Pouco depois, tomavam o trem, desciam na estação perto da casa dela e, já de mãos dadas, penetravam num parque escuro e deserto àquela hora da noite.
Puxou-o pela mão, sentaram-se num banco e ela, sorrindo, soltou os cabelos ruivos que lhe caíram encantadoramente sobre o rosto. Tentou beijá-la, mas ela se esquivou, ergueu-se do banco e o levou pela mão até à porta do edifício onde morava. Ali, beijou-o na testa e, com um adeusinho, sumiu no portão. Ele, de volta a seu quarto na "abchejite", mal acreditava no que acabara de viver.
Ela era casada, vivia com o marido mas já não eram marido e mulher; é que, no socialismo, se o casal ganhara um apartamento, não tinha direito a outro, pouco importando se o casamento acabara ou não. Na primeira noite em que ela o levou à sua casa, o marido ainda não havia chegado. Serviu-lhe um jantar, na cozinha, e ele, não podendo conter-se, declarou-se apaixonado por ela. Foi então que Lina lhe ofereceu a boca para um beijo que jamais esqueceria.
O marido, Andrei, chegou lá pelas nove horas. Beberam vodca juntos e, como nevasse muito, aproveitou para dormir lá mesmo, no sofá da sala. De manhã, quando o marido se preparava para ir trabalhar, fingiu que ainda dormia e só se levantou depois que ele se foi. Aí entrou no quarto, jogou-se sobre Lina na cama e se amaram loucamente.
Mas aquele amor tinha data certa para acabar: terminaria o curso e ele teria de deixar o país. Na véspera da partida, foi para a casa dela e lá ficaram, os dois, de mãos dadas, beijando-se e chorando. Nem ele podia ficar nem ela podia mudar de país. Sem alternativa e para não perder o metrô, decidiu ir embora, sabendo que nunca mais a veria na vida. Mesmo assim, saiu e atravessou o parque, como um autômato.
Na manhã seguinte, como um autômato, foi para o aeroporto, entrou no avião e partiu. Faz 37 anos e seis meses. Nunca mais se viram.



quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Violência no Rio de Janeiro


JANIO DE FREITAS

Rio, Brasil


Pelo visto, cada vez mais, estamos destinados a aceitar a solução mortífera para obter a mínima segurança



JÁ FIZERAM com os passageiros de ônibus, há pouco tempo, agora repetem com os de uma van: jogam a gasolina e tocam fogo sem esperar que os passageiros desçam. Desta vez, quatro não conseguiram sair antes de sofrer consequências do incêndio. É possível entender esse grau de perversidade?
Doze mortos. Um horror, como um confronto em qualquer frente de combate militar, mas ocorrido na região da velha e tão cantada Penha.
Já ontem mesmo, "especialistas" -como agora se diz à vontade na imprensa- criticaram a violência mortífera da polícia. Têm razão quanto à violência e à adjetivação, mas se calaram antes de dar resposta a uma pergunta. Denúncias levaram à busca de alguns dos incendiários, que receberam a polícia a bala e se deu o longo combate. Como deveriam ser buscados?
Os bandos de criminosos armados já ultrapassaram há muito tempo as condutas da marginalidade voltada para o assalto, o roubo, o latrocínio, a fuga ao cerco ocasional.
E, sem rapapés, a verdade simples é que os bandos do crime bem armado já não deixam margem alguma para serem enfrentados com padrões menos bárbaros do que os seus próprios.
A urbanização de favelas, a melhoria de suas casas, as Unidades de Polícia Pacificadora, tudo isso é humanamente necessário, está bem feito onde foi feito e não deve parar. Mas, no seu aspecto de correção e prevenção de tendências a condutas marginais, começou muito tarde. A dimensão quantitativa e de criminalidade a que os bandos armados chegaram não permite, a esta altura, a espera pelos resultados do trabalho de reparação nas áreas contaminadas.
Será penoso, mas, sem ter pensado em tempo na reação aos governantes que fizeram de nossas cidades o que elas são, pelo visto estamos destinados a ir aceitando, cada vez mais, até que já nos seja indiferente, a solução mortífera como solução para nossa mínima segurança.

O ALVO
A notícia, de dias atrás, da exigência de autonomia que Henrique Meirelles faria, não foi a causa de seu já confirmado afastamento do Banco Central, no governo de Dilma Rousseff. A versão podia fazer algum sentido, mas em nenhum momento a continuidade de Meirelles esteve nos planos para o novo governo.
Quando, pouco depois da eleição, foi informado que os ocupantes de cargos altos já por oito anos não continuariam (Lula: "oito anos já é um bom tempo"), tratava-se de produzir uma via suave para a substituição de Henrique Meirelles.
O desagrado com a tal exigência de autonomia pode ter causado efeito, isto sim, sobre as hipóteses a lhe serem oferecidas.

SEM FALTA
Com a onda do crime no Rio, na certa virão daqui a pouco, de organizadores da Copa e da Olimpíada, exigências de mais centenas de milhões para a segurança.
Também em pretextos nada se perde, nada se cria.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

As idiossincrasias do casal Tolstói


Amor, sexo e ciúme

A turbulenta vida familiar do casal Tolstói 




RESUMO
A "beatificação" do autor de "Anna Kariênina" e o estigma de "megera" de sua mulher reforçaram a mística em torno do casal Tolstói. Em textos de Liev, contra o casamento e a hereditariedade, e nos diários de Sofia, marcados pelo ciúme e pela devoção, aflora a peculiar visão de amor, sexo e vida familiar do mestre russo.

BERNARDO CARVALHO
ilustração MARCELO COMPARINI


O CASO FAZ PARTE do anedotário da literatura universal: na madrugada de 28 de outubro de 1910, aos 82 anos (48 deles casado), Liev Tolstói (1828-1910) abandona para sempre a propriedade rural da família, Iásnaia Poliana, onde nasceu e onde será enterrado dias depois, a 200 km a sudoeste de Moscou. Como o protagonista de sua novela "Padre Sérgio" (1898), pensa em se refugiar num mosteiro distante ou numa ermida e lá, longe da mulher, Sofia Andrêievna, viver finalmente em paz. 
Não é a primeira vez que foge (ou ameaça fugir) de casa. Vinte e seis anos antes, quando a mulher entrava em trabalho de parto (pela 15ª gravidez), o escritor saiu de casa para fazer a vida na América. E voltou horas depois, a tempo de ver a criança nascer.
"Ele estava passando por sua conversão -para o Cristianismo! Só que nesse Cristianismo, o martírio era meu", escreve Sofia Andrêievna nos diários recém-publicados em inglês, pela Harper Perennial, com tradução de Cathy Porter e prefácio de Doris Lessing. 
ATO PATÉTICO Ao acordar e ler a carta de despedida (desta vez, definitiva) do marido, ela decide se afogar. Está com 66 anos. Atira-se num tanque. O ato patético e intempestivo lembra mais uma cena do filme "A Última Noite de Bóris Grushenko", de Woody Allen, do que um texto do autor de "Anna Kariênina". Não é a primeira vez que ela tenta o suicídio. Nas anteriores, além do tanque, recorreu à inanição, à overdose por ópio e à morte por congelamento, indo deitar-se na neve depois de uma briga conjugal. 
Retirada das águas pela filha mais jovem, Aleksandra, de 26 anos, e pelo secretário do marido, ela passa dias delirando, aos prantos, até receber o telegrama de um jornalista caridoso que revela enfim à família o paradeiro do escritor -conhecido até então apenas pela caçula, que tinha razões de sobra para escondê-lo da mãe. 
"Serei grata até a morte ao correspondente do jornal 'A Palavra Russa'", escreverá anos depois a filha mais velha, Tatiana, num opúsculo publicado em francês, em 1928 ("Sur Mon Père", Editions Allia), para salvar a reputação dos pais -na verdade, mais do pai do que da mãe: "Se hoje saio do silêncio, é porque apareceram certos livros [...] que pintam um quadro falso das relações entre meus pais e, de minha mãe, um retrato deformado pela parcialidade". Ainda assim, não vai se conter em sentenciar sobre a mãe: "Esse ser doente, profundamente infeliz e moralmente só, me causava a maior piedade. [...] A culpa da solidão era dela". 
DEMÔNIO Informada pelo telegrama, Sofia parte às pressas, com os filhos, para Astapovo, onde uma pneumonia obrigou o marido a abortar a fuga -e onde ele agoniza, com febre de 40º C, na casa do chefe da estação de trem. Só vai conseguir vê-lo quando ele já estiver inconsciente. Como se escoltassem o demônio, os próprios filhos preferem mantê-la longe do pai, ao qual reservam tratamento de santo. "Retiveram-me à força, trancaram a porta, atormentaram meu coração", ela desabafa ao diário dias depois, já viúva. 
As circunstâncias da fuga de Tolstói são conhecidas (em seu diário, ele exprime a revolta e a repugnância de pegar a mulher vasculhando entre seus papéis pessoais, na véspera, às escondidas -não é a primeira vez, é claro, nem o pior que ela já fez). 
A julgar pelo testemunho da filha Tatiana, Sofia vai passar os nove anos que lhe restam depois da morte do marido preocupada em limpar o nome: "A calma veio para ela nesses últimos anos. [...] Era menos estrangeira às ideias de meu pai. Tornou-se vegetariana. [...] Mas conservou uma fraqueza: [...] temia por sua reputação. E assim não perdia a oportunidade de justificar suas palavras e seus atos". Não obstante, ainda terá forças para, pouco antes de morrer, durante a guerra civil que sucede à Revolução de 1917, encantar-se com os rapazes mais prestativos do Exército bolchevique acampados em suas terras. 
RAZÃO Contra tudo o que já se disse, a voz convincente dos diários vem dar alguma razão a essa figura condenada pela história a não ter razão nenhuma, megera histérica e intratável, principal estorvo na vida do santo escritor e de seu projeto de despojamento dos valores burgueses e dos interesses materiais. 
A publicação simultânea, na França, da autobiografia inédita, "Minha Vida" (Editions des Syrtes), e de uma nova tradução do único romance que Sofia Andrêievna escreveu, "De Quem é a Culpa?", relançado pela editora Albin Michel como "uma resposta a Liev Tolstói e a 'A Sonata a Kreutzer'" (novela na qual o escritor apresentava uma visão idiossincrática sobre as mulheres casadas e o sexo), faz pensar no sentido de oportunidade revisionista dessas edições como um efeito de certo modo tardio e desesperado dos estudos culturais e de gênero. 
Como se, além de pôr em dúvida a canonização do autor por ocasião dos cem anos de sua morte, já não restasse nenhuma outra forma possível de resistência ou dissonância ao consenso natural que vai se formando em torno do realismo da obra de Tolstói como paradigma absoluto para uma literatura que precisa superar os questionamentos pós-modernos e se massificar para sobreviver. 
MOÇA INEXPERIENTE Quando ele se apaixona por Sofia Behrs, filha de um médico do Kremlin cuja família vai lhe servir de modelo para os Rostov de "Guerra e Paz", tem 34 anos e ela é uma moça inexperiente de 18. Antes de se assentar na propriedade rural de 1.600 hectares e 300 servos, o jovem conde levou uma vida de prazeres em Moscou e São Petersburgo (à qual a mulher vai se referir como "as abominações do seu passado"), viajou pelo Cáucaso e participou como oficial do Exército russo na Guerra da Crimeia (1854-56). 
Mesmo antes de escrever as obras-primas "Guerra e Paz" e "Anna Kariênina", já era um escritor respeitado. Quando se encontram, Sofia está acompanhando a mãe e os irmãos numa visita ao avô, vizinho de Tolstói. Dois meses depois, estarão casados. Duas semanas depois de casados, ele lhe dirá que já não confia no seu amor. E em dois meses, ela estará grávida. 
A primeira gravidez é o batismo de fogo. Sofia passará por outras 15 até os 44 anos. E a provação só vai aumentar conforme também forem se agravando as contradições do ascetismo cristão prescrito pelo marido. Um ascetismo que, embora não lhe impeça o sexo fora do casamento (Tolstói teve um filho, Timofei, com uma camponesa, Aksínia, que vivia em suas terras) nem as crises de ciúmes, condena a contracepção e restringe o sexo matrimonial a fins reprodutivos, banindo-o durante a gravidez: "Ele não me deixa entrar em seu quarto [...]. Tudo o que é físico o enoja. [...] A verdade cruel é que a mulher só descobre se o marido realmente a ama quando está grávida". 
CIÚME Sofia se martiriza lendo o diário do marido às escondidas. É um costume incontrolável, que ela manterá até o fim: "Procuro com avidez [...] alguma referência ao amor, e fico tão atormentada pelo ciúme que já não consigo ver nada claro". Vai acabar encontrando: "Não existe amor, apenas a necessidade física do sexo e a necessidade prática de uma companheira de vida", ela lê no diário do marido. E responde no seu: "Quem me dera tivesse lido isso há 29 anos, então nunca teria me casado com ele". 
Os diários de Sofia revelam o escritor como a maior vítima dos próprios instintos: "Liovochka (diminutivo de Liev) me acordou esta manhã com beijos apaixonados [...]. Sucumbi à libertinagem mais imperdoável - na minha idade! [47 anos] Estou tão triste e envergonhada! [...] Que homem estranho é o meu marido! Na manhã seguinte a uma cena terrível entre nós dois, ele diz que me ama de paixão. Diz que está completamente sob o meu domínio e que nunca imaginou serem possíveis tais sentimentos. Mas é tudo físico". 
Em outra ocasião, referindo-se à filha Aleksandra, ela comenta: "Se ao menos ela soubesse como o 'papai' dela ficava animado depois de desfrutar do amor que ele nega!". 
Com 18 anos, Sofia ainda esperava que o nascimento do primeiro filho pudesse resgatá-la do martírio. Era só o início de um ciclo. Quando nasce Sergei, ela não consegue amamentá-lo, por causa de uma inflamação nas mamas. Tolstói se recusa a chamar uma ama de leite; acha que é dever da mãe amamentar a criança. Dois anos depois, tendo dado à luz a filha Tatiana, ela desabafa ao diário: "Agora estou bem de novo e não grávida -fico aterrorizada só de pensar na frequência em que estive nesse estado". 
E, alguns anos mais tarde: "Pensar nesse novo bebê me enche de tristeza; meus horizontes se estreitaram tanto e meu mundo é um lugar tão pequeno e lúgubre". Dos 13 filhos do casal que sobreviverão ao parto, 11 serão amamentados pela mãe. 
MANUSCRITOS Logo, entretanto, ela vai encontrar uma função além de procriar, amamentar, educar os filhos e administrar a propriedade: passa a datilografar os manuscritos do marido, obsessiva e incessantemente. É outra maneira de dar sentido ao casamento. "Liovochka estava mais carinhoso hoje. Chegou a me beijar pela primeira vez em dias. Estou copiando sem parar e fico feliz por ser de alguma utilidade." 
Quando Tolstói termina "Guerra e Paz", ela relata: "Liovochka passou o inverno escrevendo, irritadiço e excitado, muitas vezes com lágrimas nos olhos". A depressão, o temor da morte e a crise espiritual vão ganhando a alma do escritor. Ele abre uma escola para os camponeses, começa a escrever "Anna Kariênina", o filho Nikolai morre de meningite com apenas 10 meses e Sofia perde uma filha no parto. 
É inevitável ver na equação conflituosa e contraditória do ascetismo cristão defendido pelo autor da célebre abertura de "Anna Kariênina" ("Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira") um círculo vicioso e uma explicação possível para a sua inaptidão à vida familiar: o horror da iminência da perda, a ameaça de um sofrimento potencial que o maior número de filhos só faz renovar e que será confirmada pela morte prematura, em 1895, do temporão Ivan, adorado pelo casal, marcando com tintas trágicas os últimos 15 anos da vida do escritor. "A cada nova criança, sacrificamos um pouco mais de nossa vida e aceitamos um ônus ainda mais pesado de aflições e doenças", Sofia escreve no diário. 
HUMILHAÇÃO PÚBLICA É difícil não pensar também nesse horror como o que está por trás da visão tão peculiar e paradoxal que ele vai acabar exprimindo sobre o casamento, a mulher e o sexo em "A Sonata a Kreutzer" -e que Sofia receberá como uma humilhação pública. O amor é insuportável, porque é a iminência da perda. É a própria perspectiva do amor individual (e de suas consequências) que o leva ao cúmulo de prescrever a abstinência sexual no casamento, contradição que só se resolve no ideal do amor universal. 
O conflito se torna insustentável conforme Tolstói vai percebendo a incompatibilidade entre seus ideais e a realidade da vida familiar, que a mulher, cuidando dos filhos e da propriedade, passa a representar. Realidade que ele associa aos valores burgueses e, em última instância, à injustiça e à desigualdade social da Rússia czarista. O escritor passa a pregar o amor desinteressado pela humanidade, sem objeto definido, sem família. É o momento da "conversão". 
Quanto mais a mulher assume as responsabilidades da casa (ocupando-se das doenças e da educação dos filhos, da administração da propriedade e dos direitos autorais das obras do marido), mais ele rejeita tudo o que é material. Aos poucos, também a literatura vai dando lugar aos panfletos e artigos de cunho religioso e social, a ponto de fazer o autor renegar os próprios romances como moralmente irresponsáveis. 
Contra a truculência e a corrupção do Estado e da Igreja Ortodoxa, ele propõe um ascetismo incompatível com sua posição de proprietário de terras, tendo que sustentar mulher e uma prole que não para de crescer: "Hoje ele gritou [...] que o seu maior desejo é abandonar a família". 
PAPEL INGRATO Num cabo de guerra progressivo e silencioso, o escritor vai lutar para impor à mulher seu desejo de abrir mão dos direitos de propriedade, inclusive intelectual, condenando-a ao papel ingrato de matriarca insanamente apegada aos bens materiais em nome do futuro dos filhos. Ao principal discípulo e interlocutor, Vladimir Tchertkov, ele descreve a relação com Sofia como "uma luta até a morte". 
E ela se queixa ao diário: "Todos nesta casa -especialmente Liev Nikoláievitch, que as crianças seguem como um rebanho de ovelhas - me impingiram o papel de carrasco. [...] Pergunto-me por que já não acredito cegamente nele como escritor. [...] Liovochka tem agora apenas dois assuntos extremos de conversa: contra a hereditariedade e a favor do vegetarianismo". 
Aos poucos, Iásnaia Poliana se transforma em centro de peregrinação dos discípulos do escritor que Sofia identifica a fanáticos e aos quais chama "obscuros": "Não há entre eles um único normal. E a maioria das mulheres é histérica" (ironicamente, será o principal deles, Tchertkov, que, levando a obra do mestre para o exílio inglês, vai salvá-la da sanha destruidora do obscurantismo czarista). 
SONATA É nessa época que Tolstói ouve o filho Sergei ao piano, tocando a "Sonata a Kreutzer", de Beethoven, acompanhado pelo professor de música ao violino. Em 1890, a novela homônima é publicada, sendo em seguida censurada e oficialmente proscrita. Humilhada pela condenação veemente que o marido faz da vida matrimonial, Sofia reage, escrevendo o romance "De Quem é a Culpa?", publicado postumamente. 
"A Sonata a Kreutzer" conta a história de um homem que assassina a mulher, por ciúme. O personagem desfere um ataque radical ao casamento: "O inferno terrível, em consequência do qual aparecem bebedeiras, assassínios, o envenenamento de si mesmo ou do cônjuge [...] Insisto: todos os maridos que vivem como eu vivia têm que se entregar à devassidão, divorciar-se ou matar a si mesmo ou a esposa, como eu fiz". 
E sobre o sexo: "Observe o seguinte: os animais unem-se unicamente quando podem engendrar uma descendência, e o imundo rei da natureza, sempre que lhe apraz. E, como se fosse pouco, eleva essa ocupação simiesca a pérola da criação, a amor". 
Ainda assim, é Sofia quem vai tomar a iniciativa de pedir uma audiência ao czar, em São Petersburgo, para pleitear a suspensão da censura à novela do marido. Quando o czar lhe pergunta se ela deixaria os filhos lerem um livro como aquele, ela responde: "A história tomou infelizmente uma forma demasiado radical, mas a ideia fundamental é que o ideal da castidade absoluta é inatingível". E lhe assegura que o marido está disposto a deixar de lado os textos religiosos e filosóficos e voltar à literatura. "Seria ótimo! É um grande escritor!", o czar responde. E a publicação de "A Sonata a Kreutzer" é liberada. 
IMPASSE Os textos doutrinários de Tolstói fazem crer que o escritor abriu mão da literatura por um ideal moral superior e ascético de justiça para o mundo. O que se depreende dos diários de Sofia é, ao contrário, que a descrença do escritor na literatura era resultado do impasse ao qual fora condenado pela própria loucura. Nas últimas semanas antes da fuga, ele andava lendo "Os Irmãos Karamázov" e achando os diálogos ruins. 
"Acredito em bons e maus espíritos. O homem que eu amo foi possuído por maus espíritos, mas não sabe disso. Sua influência é perniciosa: seu filho está sendo destruído, suas filhas estão sendo destruídas, assim como todos os que entram em contato com ele", ela desabafa num dos instantes de maior desalento. E, sem perceber, descreve o que está na base do desespero do escritor. 
"Um cristão só pode contrair matrimônio sem cometer pecado no caso de saber que todas as crianças que existem têm a vida assegurada", Tolstói escreveu no comentário a "A Sonata a Kreutzer". Estava falando da miséria do mundo, é claro. 
Mas não é preciso chegar ao extremo de reduzir sua imagem pública de santidade e ascetismo a mera vaidade e egoísmo, como faz Sofia Andrêievna em sua exasperação cega, para entender que, se ele chegou à verdade terrível e autopunitiva dessa frase, foi porque também amou e viu a morte dos próprios filhos, dentro de casa. 

Contra tudo o que já se disse, a voz convincente dos diários vem dar alguma razão a essa figura condenada pela história a não ter razão nenhuma, megera histérica e intratável, principal estorvo na vida do santo escritor e de seu projeto de despojamento dos valores burgueses e dos interesses materiais 

Com 18 anos, Sofia ainda esperava que o nascimento do primeiro filho pudesse resgatá-la do martírio. Quando nasce Sergei, ela não consegue amamentá-lo, por causa de uma inflamação nas mamas. Tolstói se recusa a chamar uma ama de leite; acha que é dever da mãe amamentar a criança 

O conflito se torna insustentável conforme Tolstói vai percebendo a incompatibilidade entre seus ideais e a realidade da vida familiar, que a mulher passa a representar. Uma realidade que ele associa aos valores burgueses e, em última instância, à injustiça e à desigualdade social da Rússia czarista 

Hélio Fernandes não tem papa na língua


O surpreendente Palocci, que veio de Ribeirão Preto. Acusadíssimo de atos de corrupção, foi Ministro da Fazenda poderoso. Demitido quando “pensava” na Presidência, que vida. NEGATIVA e POSITIVA, até quando?

Helio Fernandes
Sua vida pública, (só a pública?) é cheia de altos e baixos, chamada de negativa e positiva. Não apenas uma vez, mas muitas.
Negativa – Veio de Ribeirão Preto, ex-prefeito, acusadíssimo de atos de corrupção, que depois amenizaram, passaram a ser apenas IRREGULARIDADES.
Positiva – Sem que ninguém acreditasse, foi nomeado Ministro da Fazenda, logo no primeiro dia do governo Lula, 2003.
Ninguém acreditou que fosse verdade. Receberam ordem para “promover” seu nome o mais possível. Recomendação: esquecer especialmente que ele é médico, lembrar que tem grande cultura, “é um dos maiores conhecedores da obra de Marx, embora não seja marxista”. Ha!Ha!Ha!
Positiva – Como Ministro da Fazenda, cresceu tanto, que passou a ser extraordinária sua repercussão. Incensado insensatamente pelo próprio Lula, que chegou a dizer várias vezes: “Fico esperando o Palocci me dar o SINAL VERDEpara pode baixar os juros”. Foi a maior ascensão, que eu me lembre, dos últimos 100 anos.
Negativa – É difícil resistir a isso. Na alucinada escalada do Poder, Palocci não via limites, não impunha conciliação, concordância, cooperação, “a não ser com ele mesmo”. É evidente que esse auge ou apogeu, traz ônus inavaliáveis, que muitos percebem, menos o protagonista ou personagem, o próprio Palocci.
Mais Negativa para Palocci, Positiva para Lula – Delirante de ambição, de Poder, de domínio, o ainda Ministro da Fazenda não olhava para lado algum, só se preocupava com ele mesmo. E numa comparação com FHC, Palocci só olhava para o espelho e na imagem projetada à sua frente. Para ele existia FUTURO, oPASSADO fora esquecido, o PRESENTE era penas a alavanca que o levaria à sucessão do próprio Lula.
Ninguém percebeu os objetivos de Lula, no primeiro período (os 4 anos iniciais). Lula escondeu muito bem o que pretendia. A vítima que abriu o projeto da continuação ilimitada, ininterrupta, inarredável e irrevogável, foi Aloizio Mercadante. Eleito senador, considerava que em 31 de janeiro de 2003, seria empossado senador e logo nomeado Ministro da Fazenda.
Não foi chamado para nada. Esteve na posse de Lula, era obrigatório. Mas ficou no Senado 8 anos, sem uma chance, oportunidade, recompensa, e ainda foi submetido ao desprezo, descaso e depreciação, no episódio da “demissão irrevogável” do cargo de líder do governo no Senado, mas permanecendo na liderança e “ganhando a derrota para governador”, que adiantei muito antes.
Silenciosamente, Lula mostrou toda a sua habilidade política, a capacidade de manobrar com todos, sem mostrar um mínimo de incapacidade. Nesse plano estava incluído José Dirceu, o mais poderoso de todos, tão forte e tão autoritário que, apesar de ser bom analista, não percebeu nada.
Também era o mais íntimo, como revelei há muito tempo, chamava Lula deVOCÊ, o presidente respondia tratando-o de SENHOR. Não era bazófia, e sim a utilização explícita da importância implícita.
Negativa – Voltemos a Palocci. Se andei um pouco no acostamento, tratando de Mercadante e Dirceu, foi para mostrar a desconhecida ou não pressentida trajetória maquiavélica, vá lá, do presidente. Mas a primeira vítima desse projeto de dominar e governar sozinho, teve como primeiro derrubado, Antonio Palocci.
(E começava, sem que se percebesse, a Era Dilma. Mas isso é outra história e outro personagem. Ela já atingiu o primeiro objetivo. Palocci, que já quis muito, se perdeu, quer se reencontrar consigo mesmo e com o Poder. Fica para depois).
Ministro intocável, pelo menos ele pensava (?) que era, Palocci resolveu fazer em Brasília, tudo o que havia feito em Ribeirão Preto, com extraordinário sucesso e impunidade total. A casa do Ministro da Fazenda se transformou num antro. De tal maneira, que Lula resolveu aproveitar a oportunidade e derrubá-lo.
Negativa final – A devassidão da casa do ministro, precisava urgentemente de uma devassa. E essa foi feita aproveitando o ressentimento de um senador. Tendo perdido a presidência do Senado, o que mais desejava, traiu a amizade e a confiabilidade de importante jornalista, que lhe contou, em sigilo, tudo o que se passava na “Casa dos Mortos”.
Palocci começou a cair, ficou tão exposto, que o empurrão de um caseiro, jogou-o do outro lado da cerca. Lula não perdeu a hora (“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”), eis Palocci enterrado e sem a menor esperança de ressurreição.
Morto, teve a sabedoria de compreender que morto tem que ficar obrigatoriamente em silêncio, não usou da palavra, nem para um protesto simbólico. Foram 4 anos de silêncio, até mesmo para “se vingar” do caseiro. Mas foi amplamente derrotado por esse funcionário humilde, mas digno e correto.
Negativa até no Supremo – Processado (indiretamente por ter se vingado do caseiro), foi massacrado pelo mais alto Tribunal do país. Foi desvendado, minuciosamente, todo o jogo do ainda Ministro, usando a Caixa Econômica (hierarquicamente subordinada a ele) para massacrar o caseiro.
Palocci foi humilhado, desprezado, ficou com as vísceras à mostra em praça pública. Perdão, no plenário do Supremo, que foi magnânimo com ele, poupando Palocci do “tiro de misericórdia”.
Mas Lula não teve o mesmo comportamento, demitiu sumariamente Palocci. E substituiu-o por Mantega, por quem Palocci exibia total desprezo.
Negativa política – Desapareceu da cena por determinação dos fatos, pela ação de Lula, mas teve um mérito (não sei se é a palavra certa, mas funciona) de compreender que a nova estrela seria Dilma Rousseff. Juntou-se a ela, “desprendidamente”, apenas com dois objetivos. 1 – Estabelecer com ela, ligação intransponível e indevassável. 2 – Voltar como deputado, embora em alguns momentos acreditasse e admitisse que a opção deveria ser ou poderia ser o governo de São Paulo.
Logo “desembarcou” desta segunda hipótese, se fixou em ser deputado. Como isso era fácil, ficou sempre perto de Dona Dilma, se tornou importante na campanha. Eleita, e formando a equipe de transição, lá estava Palocci preponderante, já não mais prepotente.
Positiva-Negativa – Foi lembrado para vários cargos, incluindo a Chefia da Casa Civil e a volta ao Ministério da Fazenda. Mas quando se falou nos dois cargos, o próprio Lula veio a público e retumbou: “Palocci, não”.
Ninguém entendeu, mas Lula e o PT são assim. E mais surpreendente. Depois da viagem “mágica” ao G-20, da liquidação de Celso Amorim, da elevação de Mantega (tudo por Dona Dilma), o ainda presidente Lula fez também o seu milagre. E REABILITOU Palocci, junto a ele mesmo e com repercussão no setor Dilma Rousseff.
***
PS – Agora, Palocci subiu aos céus. Pode ser escolhido para qualquer cargo. E ao contrário do que disse antes, indicado Ministro, Lula dirá bem alto: “Palocci,SIM”.
PS2 – Portanto, tudo já estava combinado. E surgiram mais cargos que podem ser ocupados por Palocci. E seja o cargo que for, Palocci estará sentado ao lado de quem daqui a pouco mais de um mês mandará em tudo. Pelo menos, é o que parece.
PS3 – E como Palocci pode ser, sem nenhuma surpresa, Ministro da Fazenda, já surgiu a ordem, dos bastidores para a praça pública: “Não esqueçam de divulgar que Palocci é médico”.
PS4 – Nem precisava, está aí José Serra, que pela primeira vez poderá servir de exemplo: “Eu não sou médico, fui Ministro da Saúde”. Na verdade, Serra e Palocci são o quê?
PS5 – No momento, ninguém sabe. Mas que não arrisquem colocar Palocci fora do centro de tudo. Têm 4 anos para isso. Quatro?

domingo, 14 de novembro de 2010

Ferreira Gullar e sua crônica dominical


Ah, se não fosse a realidade!


Ninguém imagina que Lula deixe dona Marisa em São Bernardo para instalar-se na alcova de Dilma



DILMA ESTÁ eleita e, a partir de 1º de janeiro de 2011, será a presidente do Brasil. Nunca imaginou que isso pudesse acontecer, nunca sonhou com isso, nunca o desejou e, não obstante, terá em breve, nas mãos, o mais alto posto político do país. Um milagre? Um passe de mágica? Se pensamos assim, o mago é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Inicialmente, apesar de sua indiscutível popularidade, dava a impressão que superestimara seu prestígio, não iria elegê-la.
De fato, como acreditar que uma mulher que nunca se candidatara a nada, destituída de carisma e até mesmo de simpatia, fosse capaz de derrotar um candidato como José Serra, dono de uma folha de serviços invejável, tanto como parlamentar quanto como ministro de Estado, prefeito e governador?
Não obstante, aconteceu. Para espanto meu e de muita gente mais, 56% dos eleitores preferiram votar em alguém que eles mal conhecem do que eleger um político conhecido de todos, contra o qual não pesa qualquer suspeita ou acusação desabonadora. E por que o fizeram? Porque o presidente Lula mandou.
E não foi só o pessoal mal informado que recebe Bolsa Família, não. Empresários, banqueiros e intelectuais famosos também apoiaram sua candidatura, porque Lula mandou. Mas não estou aqui para chorar sobre o leite derramado e, sim, para tentar ver o que pode acontecer em consequência disso.
Advirto o leitor de que não parto do princípio de que vai dar tudo errado, que o governo de Dilma Rousseff está condenado ao fracasso. Nada disso. Como muita gente, diante desse fato inusitado, nunca visto na história brasileira, pergunto: e agora?
Sempre se faz tal pergunta quando um presidente da República, seja ele quem for, assume o mandato. Ocorre que, pela primeira vez, pouco se sabe da pessoa eleita e, mais que isso, eleita porque alguém mandou. A pergunta que está na cabeça de todos -dos que votaram contra e dos que votaram a favor- é: quem vai governar, ela ou Lula?
É uma questão razoável, não só porque ela nunca governou nem mesmo um município, como porque Lula, sabendo disso, deve temer pelo que venha a fazer. E temerá, com razão, já que o fracasso dela, como governante, será debitado inevitavelmente na conta dele, responsável pela mágica que a pôs na Presidência da República.
Estará, assim, criada uma situação também inédita na história do poder central do Brasil: como Dilma não é responsável por ter sido eleita -e ocupar o lugar que só não é do Lula porque a lei não permite uma segunda reeleição-, talvez não possa fazer no governo senão o que for aprovado por ele.
Isso lembra, até certo ponto, a situação vivida por Cristina Kirchner, eleita presidente da Argentina graças à popularidade do marido, Néstor Kirchner, recentemente falecido. Enquanto vivo, era ele quem governava, sem maiores vexames para ela, uma vez que, casados, podiam até na cama discutir e acertar as medidas governamentais que ela tomaria no dia seguinte.
Já o caso de Lula e Dilma será mais complicado, pois ninguém imagina que ele deixe dona Marisa dormindo em São Bernardo para instalar-se na alcova da presidente Dilma, no palácio da Alvorada.
Nem se acredita, tampouco, que optem por um relacionamento clandestino para, em encontros secretos, disfarçados -ele de peruca loura e ela vestida de homem, bigode e barbas-, discutirem a volta da CPMF ou o que fazer com o MST.
Fora daí, o jeito seria divorciar-se e casar com Dilma, mas tendo o cuidado de deixar claro que se tratou de uma paixão repentina, fulminante, e não de um romance secreto que só então veio à tona. Tal solução tem o perigo de manchar a reputação dos dois, por oferecer aos maldosos a chance de sussurrar que a candidatura de Dilma teria origens sexuais. É risco demais, não dá.
A alternativa, então, talvez seja Dilma nomeá-lo chefe da Casa Civil, lugar antes ocupado por ela. Minha dúvida é se Lula, que se acredita o maior estadista brasileiro de todos os tempos, aceitaria função tão subalterna, especialmente depois dos escândalos que envolveram Erenice Guerra, a substituta de Dilma no cargo.
É problema dele. Apenas constato que, se é fácil, com truques mágicos, fazer acontecer o impossível, difícil é resolver os problemas reais. 

sábado, 13 de novembro de 2010

O dólar papel pintado


Em 1944, em Bretton Woods, o ouro foi considerado herança maldita. Substituído pelo dólar, pela primeira vez na História, a moeda de um país passava a servir de troca universal. Mantega não era nascido, podia ter estudado.

Helio Fernandes
A Segunda Guerra Mundial estava acabando. Desesperados, os alemães tentavam acordo de “paz em separado”, com os soviéticos, precisavam retirar tropas para fortalecer Berlim. Stalin não admitia, sabia que era ali, naquele momento e naquele local, que Hitler seria destruído para sempre. (Da mesma forma que Napoleão, 140 anos antes, derrotado pelo “general Inverno”.
Churchill e Roosevelt, que haviam feito boa camaradagem com Stalin, não queriam fortalecê-lo. Roosevelt era sincero, Churchill um tremendo jogador de xadrez político, que bebia, jogava e fumava, mas jamais perdia o rumo. Stalingrado ardia como a maior batalha dessa guerra, Moscou a 100 quilômetros de distância parecia uma chama, provocada pelas tropas de Hitler, entrando na União Soviética pela bela Ucrânia.
Enquanto ouviam as notícias pelo rádio (ainda não existia a televisão), Roosevelt e Churchill tratavam de um assunto que não pretendiam dividir ou debater com Stalin: a situação econômica do mundo. Sinceramente queriam o fim de Hitler, mas se usassem de sinceridade total, admitiriam que se Stalin desaparecesse junto com Hitler, não derramariam uma lágrima.
Convocaram então reunião de “aliados” para Bretton Woods, onde pretendiam fixar as condições e as regras da economia mundial. Lógico, tinham que dizer alguma coisa a Stalin, era imprescindível reconhecer a contribuição da União Soviética para a vitória sobre a Alemanha.
Mas para ele, para os países participantes, e até para o mais importante economista da época, John Maynard Keynes (o líder e organizador do encontro), não falaram tudo. Diziam que era para “regular a economia do mundo que surgiria depois da guerra”, mas não passavam daí. Era o que Keynes sabia e pensava que fosse verdade.
Apesar de ser inglês, Keynes não recebeu a menor instrução ou informação vinda do primeiro-ministro da Inglaterra. Por intuição, (e sem dúvida por competência, para a época era importantíssimo) se convenceu que as grandes potências não queriam mais o ouro como moeda-padrão.
Sabia muito bem como o ouro era raro e existente em poucos países, com isso os que possuíam o metal, ficavam tão poderosos quanto as potências dominadoras. Começou então, da própria cabeça, a planejar a implantação de uma nova moeda.
Já tinha até o nome, se chamaria BANCOR. Quando começou a falar sobre o assunto, ainda reservadamente, com os representantes de alguns países, é evidente que tudo vazou. (Como diria hoje, o “braço direito” de Dona Dilma, Erenice Guerra).
O presidente do Banco Central dos EUA (desculpem, não consigo lembrar o nome), acionado por Roosevelt, chamou Keynes para conversar. Mas o Banco Central criado em 1913 para tratar com os Rotchilds e congelar (“calotear”, como se acusa hoje o Brasil) amigavelmente as dívidas, não tinha importância para conversar com um economista da repercussão de Lord Keynes.
O constrangimento foi total. O presidente do Banco Central não conseguia explicar, Lord Keynes estava longe de entender, sabia que pretendiam alguma coisa dele. E pela forma tímida com que falavam, tinha certeza de que era fundamental.
Sobrou para Roosevelt, que não quis, mas concordou em pedir a Churchill para falar a Lord Keynes, também inglês. Mas esqueceram de contar a Churchill. Este finalmente explodiu e Roosevelt contou: “O que pretendemos é que dessa reunião de Bretton Woods, surja uma nova moeda universal, o dólar”.
Eterno gozador, Churchill perguntou: “Só isso?” Não sabiam se estava de acordo ou perguntando por perguntar. E aí, mais descontraído, Roosevelt, respondendo a uma pergunta sobre “O que Keynes ganharia”, não teve dúvida: “O que ele quiser”. Pode parecer exagero, mas o preço não era exagerado, os EUA estavam tentando controlar o mundo, e conseguiram.
***
PS – Keynes não teve o menor problema. Alguma dificuldade, apenas porque já falara na moeda BANCOR, agora teria que dizer que seria o DÓLAR.
PS2 – Quanto à recompensa, o economista sabia o que é eterno: “No capitalismo, nem um almoço é de graça”. Ficou esperando.
PS3 – Meses depois, o presidente do maior banco de investimentos dos EUA, procurou-o pessoalmente em Londres. Entregou um cheque com “quinhentos zeros”. Disse apenas, “sua conta está zerada”.
PS4 – Menos de 2 anos depois, Lord Keynes morreu de um câncer fulminante. Deus não perdoa.

domingo, 7 de novembro de 2010

Bela lição de Ferreira Gullar

FERREIRA GULLAR 

O imprevisível na arte

Quando as regras foram abandonadas, o imprevisível tornou-se um fator essencial da criação



TALVEZ A nossa visão da expressão artística se enriqueça se tentarmos mudar a maneira usual de entendê-la. Não há dúvida de que uma compreensão cabal desse fenômeno é quase impossível.
Digo isso porque tendo a achar que não há respostas definitivas para os problemas e, particularmente, quando se trata de matéria tão complexa e ambígua quanto a arte.
Estou convencido de que a obra de arte é resultado de um processo, que tem como fator consubstancial a imprevisibilidade. Isso se tornou mais evidente na época moderna, quando a expressão artística se libertou das normas que surgiram, séculos antes, nas academias de arte.
Uma série de fatores levara ao estabelecimento de regras e princípios a que os artistas deveriam obedecer; regras essas que nasceram da convicção de que a função das artes plásticas era representar a figura humana.
Uma coisa condicionou a outra: se a arte alcançaria sua mais alta expressão representando o corpo humano, era, então, obrigatório estudá-lo objetivamente e buscar, com rigor científico, copiar cada detalhe que o constitui.
E assim surgiu um verdadeiro código capaz de orientar o artista na captação fiel das particularidades do corpo humano. Normas e proporções preestabelecidas possibilitaram conceber a figura humana ideal, representada conforme relações e harmonia que não se encontram em nenhum corpo humano real. Por essa razão, a realização artística tornou-se previsível, ou seja, um procedimento regido de antemão por regras conhecidas.
Se é verdade que o grande artista nunca se submeteu integralmente a tais regras, não resta dúvida de que, quando elas foram abandonadas, o trabalho artístico sofreu uma mudança fundamental: o imprevisível tornou-se um fator essencial da criação artística.
O início se dá no cubismo analítico, quando a representação figurativa é substituída pela construção arbitrária da forma dos objetos. Agrava-se com o abandono dos processos propriamente pictóricos, substituídos pelo uso de papel colado à tela, arame, areia, barbante. Se o artista não tem qualquer compromisso com a imitação das figuras, que fatores passam a reger a realização da obra?
Do meu ponto de vista, com o cubismo, a pintura, que antes nascia das formas naturais, passou a nascer, na tela, da imaginação do pintor. "Cézanne, de uma garrafa fazia um cilindro; eu, de um cilindro, faço uma garrafa", afirmava o cubista Juan Gris (1887-1927). Essa autonomia da linguagem levou a uma exacerbação que ultrapassou os limites: tudo o que se punha na tela virava expressão estética, fosse papel, barbante ou areia.
Em contrapartida a esse tipo de construção arbitrária, surgiu a arte geométrico-construtiva, inicialmente com o neoplasticismo de Piet Mondrian (1872-1944). Regida por linhas verticais e horizontais, limitava a composição a quadrados e retângulos em cores primárias, que se repetem de um quadro para o outro.
O grau de imprevisibilidade foi reduzido, mas não eliminado, mesmo porque não era esse o propósito do artista, uma vez que a composição, como um todo, sem o comprometimento com a representação figurativa, era "arbitrária", ou seja, o resultado possível a partir dos elementos postos em jogo. Na verdade, a arte construtiva buscou tornar necessário o que era casual.
No polo oposto a essa arte, situou-se a arte informal ou tachismo, cuja manifestação mais radical terá sido a "pintura cega", como a do italiano Vêdova, por exemplo.
No entanto, pela despreocupação total com a construção da obra, esse procedimento tentou eliminar a relação dialética entre ordem e desordem, previsibilidade e imprevisibilidade, perdendo-se assim a noção de obra, em que sempre intervém a opção do autor: o acaso criaria a obra, mas é a intervenção do artista que faz dela expressão humana, mesmo porque o puro acaso, assim como a natureza, que produz galáxias, não produz arte.
Esta, por maior que seja o grau de acaso que a constitua, é sempre resultado da intervenção do artista. Mesmo Pollock -que, dançando sobre a tela posta no chão, deixava cair sobre ela respingos de tinta que constituiriam a obra- intervinha, depois, para corrigir o que o acaso criara errado.



segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Hélio Fernandes e as eleições


Dilma presidente, nenhuma surpresa. Agora começará uma espécie de terceiro turno. Entre ela e Lula, ela e o PT, ela e o lobista PMDB. O país é o mesmo, os personagens, iguais?

Helio Fernandes
Não havia a menor possibilidade de erro: Dilma ganharia a eleição, o que deveria ter ocorrido no primeiro turno. O que aconteceu de circunstâncias, adiando a decisão para 28 dias depois, nem interessa. O importante e irrefutável: Serra não tinha uma possibilidade em um milhão de ser presidente.
Ele mesmo errou na análise e nas conclusões. Afirmou textual e taxativamente: “Tive 33 por centos dos votos, Dilma 46 e Marina 20 por cento. Somando os meus votos e os de Marina, chegávamos a 53 por cento, provando que o povo queria segundo turno”.
Impressionante a falta de compreensão de Serra para os fatos. Digo há 8 anos que “Serra jamais será presidente”, ele não conseguiu obter vantagem nem mesmo enfrentando candidata sem experiência política ou eleitoral, sem capacidade de articulação, sem carisma, sem competência, sem projeto, sem programa, sem compromisso.
Lula, o metalúrgico, com três derrotas, duas vitórias e a compreensão de que só seria vitorioso se não elegesse “nenhum dos grandes do PT”, se fixou em Dona Dilma. Foi um dos raros a entender que não ganharia nada se elegesse Dirceu, Palocci, Mercadante. Tinha que “inventar”, foi buscar alguém que não existia.
A capacidade de Lula se revela e se confirma, gostemos ou não gostemos dele. Não sai de cena, embora não possa ter certeza dos caminhos que serão trilhados pela sucessora. Não há espaço obrigatório para pessimismo ou otimismo, e sim para Dilma e Lula.
Quem não ficou na posição favorável que esperava, é Aécio Neves. Não participou do primeiro turno. Serra perdeu. Participou do segundo, Serra esteve longe de conquistar os votos que precisava. Mesmo dentro do PSDB, a tranqüilidade não dominará o dia a dia da vida do ex-governador de Minas. E Aécio será cobrado por esse resultado.
E é impossível negar a vitória espantosa e grandiosa de Dilma em Minas. Não dá para esquecer ou esconder.
Um fato importante, que precisa ser ressaltado com bastante interesse, é a abstenção. Foi de 22 por cento no primeiro turno, de 21 por cento ontem. Apenas menos 1 por cento, mais de 25 milhões inscritos. É muito.
Serra teve mais votos do que em 2002, quando foi candidato pela primeira vez. Sua votação é maior, direta e proporcionalmente. Isso pode estimular José Serra a concorrer pela terceira vez, em 2014. Não é ilusão, estará APENAS com 72 anos.
Dona Marina desapareceu, eu já dizia isso há muitos dias, depois do primeiro turno. Devia ter se AFIRMADO, feito declaração do voto (dando uma de Tony Blair), caminhando através de uma TERCEIRA VIA. Não tem condições.
***
12 FATOS QUE MERECEM DESTAQUE
1 – O primeiro candidato vitorioso determinado ontem foi Agnelo Queiroz, ex-PCdoB, que entrou para o PT. Mas a vitória não foi dele nem do partido, e sim da ficha-limpa. Quando Roriz renunciou e colocou a própria mulher, a eleição estava decidida. A mulher de Roriz teve ontem, no segundo turno, exatamente a mesma votação do primeiro.
2 – Fato não assinalado por ninguém, embora já esteja confirmado há 28 dias. Os 9 estados, indiscutivelmente os maiores, elegeram governadores no primeiro turno: São Paulo, Minas. Estado do Rio,  Ceará, Bahia, Pernambuco, os três do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
3 – Apenas Goiás (pelos 4 milhões de eleitores) e Brasília (por ser capital) ficaram para o segundo turno.
4 – O Tribunal Eleitoral acertou inteiramente em aplicar o ficha-limpa, mas errou totalmente depois. Devia ter decidido imediatamente nova eleição para o Pará.
5 – Jader Barbalho, que teve 57 por cento dos votos e foi cassado, anulou a eleição, e Paulo Rocha (que também terá o mesmo destino) também será cassado.
6 – O TRE não pode repetir o constrangimento de ter entregue o governo do Maranhão a Roseana Sarney, depois de 2 anos e meio de sua derrota.
7 – Na Paraíba, Cássio Cunha Lima, depois de quase 3 anos, perdeu o mandato, numa votação “decidida” por 4 a 3. O TSE entregou o mandato ao derrotado José Maranhão. Disputou a reeeleição (sem nunca ter sido eleito), não venceu no primeiro turno. Ontem, José Maranhão foi fragorosamente derrotado. O TSE deve estar envergonhado.
8 – Outro fato que mostra a completa falta de renovação da política brasileira. Nos Estados menores, onde houve segundo turno, a disputa foi feita entre a tentativa de reeeleição e um ex-governador.
9 – E em Goiás, o máximo: dois ex-governadores, Marconi Perillo e Íris Resende, que nada fizeram no Poder, mas disputaram a vitória, ganhou Perillo. Terá sido o menos pior?
10 – No Pará, o ex-governados Simão Jatene, derrotou a governadora Ana Julia, ontem. Mas ela já começou a insistir com Lula, para que a eleição de senador seja anulada. Assim ela pode disputar uma das vagas, estará eleita.
11 – No Amapá, o novo governador é Camilo Capiberibe, que além de ser do Partido Socialista, é opositor de Sarney. Este já cassou a família Capiberibe, um deles do Senado.
12 – Lula estava furioso com Eduardo Braga, ex-governador do Amazonas, que fez o sucessor e se elegeu senador. Mas proporcionalmente, foi uma das maiores vantagens de Dilma, 80 por cento.
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PS – Aí em cima. Estão os fatos. A conclusão desses fatos, só depois, mais tarde,  a partir de amanhã, mas é preciso esperar a posse.
PS2 – O que vai acontecer é muito difícil de analisar a partir de agora. Embora eu tenha analisado tudo em profundidade, com uma semana de antecedência.
PS3 – Na entrevista que concedi quarta-feira ao jornalista Marcone Formiga, da “Brasília em Dia” (e repetida aqui), todas as dúvidas concluídas, mas não definidas ou identificadas.
PS4 – Pois sempre coloquei que os problemas surgiriam e surgirão do relacionamento Dilma presidente, Lula ex-presidente, e o PMDB-lobista, ampla maioria.
PS5 – Já disse várias vezes e deixo amplamente em aberto. O que haverá, e tem que haver, não começará hoje ou amanhã.