EDITORIAL DE 'O ESTADO DE S.PAULO
Concordo em gênero, número e grau (André Setaro)
"Lula malufou" ou "Maluf lulou"? Eu responderia: ambas as coisas, mas
Lula age como diretor da orquestra. Porque tanto Lula quanto Maluf são
encarnações da cultura política patrimonialista, aquela identificada por
Oliveira Vianna (em Instituições Políticas Brasileiras) como "política
alimentar" e que Max Weber chamara de patrimonialismo, ou seja, aquela
forma de organização política em que o Estado emerge como hipertrofia de
um poder patriarcal original, que alarga a sua dominação doméstica
sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, administrando
tudo como se fosse sua propriedade. Era o que John Locke (1632-1704), na
sua juventude, quando viajou pela França na época de Luís XIV,
identificou como "o mal francês", na pequena obra intitulada De Morbo
Gallico, fazendo referência ao absolutismo do rei que falava de si
mesmo: "L'État c'est moi".
O Partido dos Trabalhadores, como demonstrou Antônio Paim na obra
Para Entender o PT (Londrina: Instituto Humanidades, 2002), constitui,
na História republicana contemporânea, a mais completa encarnação do
patrimonialismo. Lula tem conduzido o seu partido nessa direção,
afastando-o, ciosamente, dos extremos reformista-modernizador e
revolucionário e conservando-o no patamar da estratégia de privatização
do poder para enriquecimento próprio e dos seus confrades.
É o que o PT tem feito ao longo destes dez anos: ocupar a máquina do
Estado como se fosse sua propriedade particular, tentando cooptar os
outros partidos. O mensalão seria apenas expediente tático dessa
estratégia. E a aproximação com as tradicionais lideranças
patrimonialistas (Sarney, Maluf, etc., identificados por Lula como
"pessoas especiais") constituiria uma decorrência natural dela. Nesse
sentido, o ex-presidente da República prestou um grande serviço para o
esclarecimento da natureza alimentar da política petista, tendo posto a
nu a sua índole nitidamente patrimonialista e cooptativa. Nessa
negociação de apoios cooptados entrou a própria Igreja Católica (mãe do
PT, no início dos anos 1980, juntamente com o novo movimento sindical),
quando pareceu afastar-se do pragmatismo lulista, que ameaçou, pela boca
do ministro Gilberto Carvalho, privilegiar os evangélicos. Brizola, na
sua retórica dos pampas, identificou a tendência às cooptações amplas do
lulismo com aquela frase que ficou famosa: "O PT é a esquerda que a
direita gosta". Trocado em miúdos, Lula tem disposição para cooptar todo
mundo que apareça no cenário político, não importando a ideologia.
Lula é animado, nessa estratégia patrimonialista, pelo modelo ético
identificado com o princípio de "levar vantagem em tudo", que se
aproxima do imperativo comportamental totalitário ao acreditar que,
nessa empreitada, "os fins justificam os meios". Essa constitui, a meu
ver, a variante destrutiva do lulopetismo, que ignora qualquer outro
imperativo ético, bem como a natureza das instituições republicanas, em
função da estratégia dominante de conquista do poder para benefício
exclusivo da agremiação partidária. Tudo deve ser cooptado: partidos da
base aliada, oposição, imprensa, bem como os outros Poderes. O que resta
de toda essa força centrípeta é o mar de lama a transbordar no
recipiente da História republicana contemporânea. Infeliz pragmatismo
que está conduzindo o Brasil à entropia da vida política e social,
aproximando-nos lastimavelmente do caudilhismo peronista e do chavismo.
Octavio Paz caracterizou a feição cooptativa e punitiva do Estado
patrimonial mexicano na sua clássica obra intitulada O Ogro Filantrópico
(1983). Lula está deixando registrada, nos anais dessa modalidade de
Estado, uma narrativa que poderíamos intitular O Ogro Pilantrópico,
tamanha a desfaçatez com que o guru e os seus seguidores aceitam
qualquer tipo de malfeitos, conquanto praticados em benefício da
agremiação partidária e dos seus filhotes, e ameaçam, com a mais
decidida perseguição, aqueles que ousarem contrapor-se ao projeto de
dominação em andamento: a imprensa livre, a oposição e os empresários
independentes.
A economia vai mal justamente porque, nesse terreno, impera também a
cooptação, mediante a seleção prévia dos empresários amigos que serão
guindados às alturas graças às benesses dos empréstimos oficiais
subsidiados via BNDES. É a velha prática lusitana do pombalismo em
matéria econômica, que constitui o nosso colbertismo tupiniquim. O caso
Cachoeira-Delta está a revelar a extensão dessa prática deletéria na
economia brasileira. De nada adiantam as articulações do PT e da base
aliada para obedecer às ordens da liderança petista no sentido de criar
obstáculos ao comparecimento da cúpula da empresa em questão à CPI.
A sociedade brasileira já pressente, na inflação que regressa, o
tamanho do rombo. Os excedentes obtidos a partir da valorização das
commodities que exportamos foram utilizados pelo governo para encher os
bolsos dos companheiros ou cooptar os "movimentos sociais", deixando de
fazer o dever de casa no que tange às obras de infraestrutura, que
potencializariam o nosso desempenho comercial no mundo globalizado.
Especialistas calculam que o montante a ser aplicado nessas obras de
infraestrutura deveria situar-se na faixa dos R$ 800 bilhões, mais ou
menos a cifra que, ao longo dos governos petistas, foi despejada pelo
ralo da corrupção e da cooptação. Resultados indesejáveis num mundo em
grave crise financeira, que não perdoa cochilos das lideranças.
Aproximamo-nos, nesse desleixo, da preguiça macunaímica do herói sem
nenhum caráter que acordava, na narrativa de Mário de Andrade,
pronunciando o bom-dia das sociedades sugadas pelo mostrengo
patrimonialista: "Ai que preguiça!".
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