Houve época em que às crianças era apresentado nos bancos escolares (e essa observação vale para o Brasil, para países europeus cuja influência se fez sentir aqui e para os Estados Unidos) um conjunto de obras (literárias, musicais, arquitetônicas...) chamadas clássicas. Naquele tempo, igualmente, os professores ensinavam que clássico era um estilo, que se diferenciava, por exemplo, do barroco, do rococó, do maneirismo; ensinavam que clássico era um período importante da história da cultura, que o próprio sentido da formação escolar era tributária de valores clássicos (a chamada educação refinada). Daí que, para gerações pretéritas, o ensino de clássicos ligava-se a um estágio na formação: o curso clássico, para quem queria seguir carreira em humanidades, e o científico, para os com maior queda para as ciências.
Fazer qualquer tipo de ponderação sobre a importância da leitura de obras clássicas, para mim, evoca um nível de formação perdida nas brumas do tempo. Acho que este é um bom mote para eu me situar tanto em relação ao tema, quanto às dificuldades no uso da palavra “clássico”. Acho interessante esta aproximação por duas razões principais: o sentido da palavra me remete em alguma medida a questões ligadas à formação escolar d’antanho; o uso da palavra, ainda hoje, opera um certo tipo de separação social, daí que a ela seja inevitável um recorte sobre o valor social da leitura. Um ponto que julgo importante e inevitável ao tratarmos do tema, então, refere-se à própria maneira como a palavra aparecia no vocabulário quotidiano: aprendia-se a usá-la como a outras palavras que acompanhavam a vida das pessoas.
Assim, para gerações d’antanho, clássico era o contato com obras antigas, geralmente apresentadas pelos professores de português ou de artes. Na escola ensinava-se que houve uma antiguidade clássica, que incluía dramaturgos como Sófocles, Esquilo e Eurípides, historiadores como Heródoto (o “pai da história”), Tucídides e Tácito, filósofos como Platão, Aristóteles e Epicuro. Ensinava-se, outrossim, literatura portuguesa, onde se lia Gil Vicente, Camões e junto a estes eram feitas referências a Petrarca, Erasmo de Roterdã e Shakespeare. E esses autores, no espírito renascentista, inspiravam-se nos modelos dos clássicos da antiguidade. Tinha-se, assim, um panorama do que era o mundo clássico, do que veio a ser o classicismo, para que se pudesse apreciar, traçar comparações com o que vinha depois na grade curricular.
Nos bancos escolares ensinavam as crianças a reconhecer uma obra do chamado período clássico e, com isso, lhes possibilitavam um primeiro uso da palavra, um sentido genérico, mas que, ao mesmo tempo, lhes fornecia os pilares para o reconhecimento de que Camões é clássico, Machado de Assis, realista e Mario de Andrade, moderno. Foi assim que, no antigo ginasial (atuais dois últimos ciclos do ensino Fundamental), apresentou-se a mim um primeiro sentido da palavra “clássico”.
Assevero, no entanto, que o primeiro sentido da palavra apreendido por mim, com o passar dos anos revelou-se antinômico: clássico não diz respeito tão somente às obras do classicismo, pois esta palavra tem um escopo mais amplo, que inclui realistas como Machado de Assis e Eça de Queirós tanto quanto românticos como Balzac, Stendhal e José de Alencar. Enfim, aprendi que num sentido mais amplo clássico e moderno se opõem.
Com isso, não só a palavra “clássico” ganhou outro relevo como a palavra “moderno”; aprendi que clássico identifica-se com adjetivos como tradicional e conservador e, por isso, que obras clássicas seguem modelos pré-estabelecidos; e, em contraste, o moderno diz respeito à vanguarda, à ruptura, à quebra de convenções. Nesse momento, as caracterizações de uma obra seguindo períodos como barroco, romantismo, realismo, diluíram-se – importantes para quem prestar vestibular (um soneto não identificado de Antero de Quental deve fornecer ao aluno indícios de que se trata de um exemplar da poesia realista portuguesa) –, pois o que se impõe é saber se um determinado autor é clássico ou moderno.
Malfazejo o destino das palavras; dormiria o sono dos justos se a antinomia ficasse por aqui. A fortuna quis que com o tempo, com as leituras, aprendesse que não há fronteira nítida entre os clássicos e os modernos; que aprendesse nos últimos anos com o pós-moderno que tanto um romance como A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy, de Laurence Sterne, escrito no século XVIII, quanto Morte a crédito, de L. F. Céline, podem ser catalogados como modernos. Se for despropositado afirmar que Sterne não é um moderno, da mesma forma é com propósito que quando estamos lendo Proust, Joyce, Faulkner ou Guimarães Rosa, podemos afirmar que estamos diante de clássicos da literatura. E isso, adrede, causa-me desconforto: um clássico moderno e um moderno clássico desafiam meu senso de apreensão da realidade.
Com isso, apenas quero traçar uma linha demarcatória entre o uso restrito que era feito da palavra quando estava nos bancos escolares (Camões e Boccaccio eram clássicos, Bocage e Quevedo, barrocos, Dostoiévsky e Machado de Assis, realistas, Fernando Pessoa, Mario de Sá Carneiro, Manuel Bandeira e Paul Valéry, modernos) e os numerosos debates que, com a vida e as leituras, me informaram acerca de um sentido mais amplo que é dado à palavra: D. Casmurro, de Machado de Assis, é um clássico da literatura brasileira (negar isso pode causar estranheza, dependendo do contexto); Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, também é um clássico da literatura brasileira.
Bem, mas fiz esta breve digressão para chamar a atenção para uma dificuldade inicial e primária na aprendizagem das palavras, a fim de lançar um olhar retrospectivo para minha formação e poder assinalar qual foi o primeiro sentido da palavra “clássico” que me foi dado nos bancos escolares. Assim, na quinta série do antigo ginásio, na Escola Maria Augusta Siqueira, minha professora de português (Paula, de cujas lembranças são boas, mas da qual o destino hoje me escapa ao conhecimento) me ensinou os primeiros versos de Os Lusíadas, a contar as sílabas dos alexandrinos versos do épico português, e que, assim, estava aprendendo a ler, apreciar e reconhecer um clássico.
No curso de minha vida, portanto, o sentido que aprendi e apreendi da palavra “clássico” foi se modificando: na escola, clássico era Camões; mais tarde, clássico se opunha o moderno e o realista Tolstoi era clássico; mais recentemente, clássico pode ser uma obra que não ultrapassou meia centúria (nas férias mais recentes reli Malone morre, do irlandês Samuel Beckett: um clássico! E, ainda, li Elizabeth Costello, de J. M. Coetzee, Nobel de literatura em 2003: outro clássico!).
Bem, mas o que tentei até aqui foi apontar para algumas dificuldades, para o percurso de meus próprios contatos e como minha compreensão acerca do sentido dado à palavra “clássico” se modificou. Com isso, a partir de minha experiência de leitura, quis mostrar que o tema é tão movediço quanto perturbador, pois tudo que escrevi pode ficar apenas confinado à minha formação. E, assim sendo, corro o risco de psicanalisar em demasia as observações feitas. Contudo, assim entendo, essas singelas e pessoais dificuldades representam a menor porção do iceberg: as questões mais espinhosas, quando me deparo com o tema, diz respeito, na mesma proporção, às questões de gosto e de valor social da leitura de um clássico. Sobre esses dois pontos, deter-me-ei a seguir; guardando, óbvio, os limites de uma pincelada ensaística.
A questão de gosto, como todos sabem, é antiga; por isso é inoportuno alinhavar seus contornos; seria uma pretensão desmedida. No entanto, olho para um aspecto que me parece inquietante: quando me posto diante de um clássico isso significa que aprecio o que estou a ler? Isso significa que estabeleço critérios ditados pela minha disposição interior para considerar uma obra clássica, ou que devo me curvar a um padrão exterior? Quando me faço essa inquirição, dou conta de que para a leitura de um clássico eu poderia ser movido por razões exógenas ao meu gosto e que o meu gosto, pelas minhas experiências pessoais, podem ditar escolhas que escapam completamente ao que um padrão externo tomaria para considerar que uma certa obra é clássica.
Li na infância e gostei de D. Casmurro (seminal para minhas disposições e interesses por literatura com o passar dos anos); li também A pata da gazela e gostei da mesma forma que de D. Casmurro. Mas com o correr dos anos aprendi (lendo Silvio Romero, Antonio Candido, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz...), que há uma distância abissal entre romances como esses dois quando se ajuíza o valor de um livro na história da literatura. Creio de aprendido que não posso confundir minhas disposições pessoais com a fortuna crítica de um livro.
A questão de gosto, pelo menos para mim, é complexa; como gosto de ler romances, por que prefiro Cervantes a Carlos Heitor Cony? Por que, como a maioria das pessoas, exibo conhecimentos da leitura de um Virgilio ou de um Dante? Quando levo em conta o gosto, por que, como muitos, sou irreverente a padrões externos e tomo o meu cânon de “clássicos” como se fosse o Cânon? O ponto a que chego é: a questão de gosto pode muito bem ser excluída quando da leitura de uma obra clássica, justamente porque a apreciação de um clássico requer uma disciplina, a qual é alheia a qualquer imperativo de gosto. O entendimento de uma obra clássica pressupõe esforço e, por conseguinte, trata-se de algo de que podemos ou não gostar.
(Não me era difícil notar como meus colegas de escola resistiam à leitura de José de Alencar, de Machado de Assis, de Euclides da Cunha, de Lima Barreto. Não me é difícil notar, hoje, como grande parte das crianças do fundamental (o antigo ginásio) troça dos romances que devem ler: eles simplesmente não gostam!).
Então, um passo mais e chego ao seguinte ponto: antes do gosto, ler um clássico possui um valor social. Deve-se conhecer a melhor literatura simplesmente porque isso configura um padrão de cultura, de civilidade. A leitura e a exibição, portanto, têm muito mais a ver com etiqueta (no sentido dado por Erasmo, Baldassare Castiglione e Giovanni della Casa) do que com projeções de gosto pessoal. Daí que muitos estabelecem uma discreta distinção entre alta e baixa cultura; entre obras – por assim dizer – para um público elitizado e obras para um público mais amplo: Virginia Woolf, André Gide, Günter Grass ou Edward Albee seriam para uma elite intelectualizada – portanto, que se afirma socialmente pela leitura de clássicos –, enquanto Patrícia Highsmith, François Sagan ou Peter Handkler, para leitores com uma visão mais pasteurizada, mais afeita aos imperativos do consumo.
Claro que esta separação é meramente casual, mas é nesse ponto nos dias de hoje que as coisas se complicam. Minha constante remissão à grade curricular de outrora é para lembrar que a leitura de clássicos e as chamadas humanidades estão encolhidas nos currículos. Em nome do multiculturalismo, da diversidade cultural e do politicamente correto, a grade curricular nas escolas brasileiras (com os “Parâmetros Curriculares Nacionais”), americanas e de paises europeus que influenciam o modo de pensar de educadores brasileiros coloca em xeque o valor social da leitura de clássicos.
A importância do tema, para mim, é o de situá-lo na contra-corrente dos debates pluralistas em educação; é o de reafirmar o valor social da leitura de clássicos, se temos em vista a afirmação de um padrão de cultura e civilização que se forjou com humanistas e iluministas. Com isso, ainda que sinta um certo nonsense na defesa do ensino que valoriza a leitura de obras clássicas, eu me posto ao lado de críticos americanos como Harold Bloom, Robert Hughes e Susan Sontag, que se colocaram no furacão dos debates sobre currículos. Entenderam que não se pode deixar de lado um Mark Twain da disciplina de leitura de uma criança com a alegação de que se trata de um escritor racista.
Antes de qualquer discussão sobre catálogos e gosto pessoal, creio que a pergunta fundamental é: ainda faz sentido ler obras que, respeitado um padrão de cultura, são consideradas clássicas? Ou seja, faz sentido submeter às crianças a disciplina de leitura para que aprendam a ler obras clássicas? A esta pergunta, como se segue do que escrevi atrás, respondo afirmativamente: sinto um orgulho desmedido por ter me submetido à leitura de autores clássicos em minha infância; vejo com muito gosto jovens que quebram as convenções (ditadas pelo imperativo do mass media) e se deleitam com Homero ou Hesíodo antes do sono.
São Paulo, 14/2/2005
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