“existe uma ordem no mundo a priori; e, se houver, no que
consiste?”
Wittgenstein
A navalha expõe o remoto
José Umberto
Para André Olivieri
Setaro
O
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conto Viagem à roda de mim mesmo que Machado de Assis
publicou em 1885 é a coroação paradigmática do seu `instinto´ de desencanto. De
um mundo considerado quase suspenso na caverna protozoária das ocasiões. Numa
fisiologia de percurso metafísico a desandar na biologia primeva. Desse
universo latente com o sabor da perdição. Com o encanto de ilusões submersas nos
pântanos. Distante da nostalgia e próximo do desvelamento. Essa regressão como
atalho ao redemoinho do tempo. Como se desse uma síncope de reversão: o profeta
das origens. Um começo que se expande para o sem-início, numa queda de pressão.
E de lá contempla o imponderável. Num acerto de contas com a sutileza. Ou a
seara de linguagem do indefinível. A exigir o mergulho em ambientes também
indeterminados. Daí estabelecer a ponte entre níveis recônditos do ser e as
aparências dos eventos. Talvez um dom quiçá inato de dialogar e interpretar os
fatos extraordinários. Procedimentos de uma língua tão da intimidade dos magos.
Esses ilusionistas a transgredir as barreiras do limite.
E é quando o `bruxo´ de Cosme Velho estiliza, nesta
narrativa curta, o que também desenvolvia em outros gêneros como romance,
poesia, crônica, teatro, além da atividade crítica. Aliás, esse conto pontifica
uma síntese desses recursos literários. Um escritor que já está com o coração
patético de sol em excesso. Um urbano andante debaixo de uma lua arcaísta. Uma
personalidade de fina verve porém desafiante desconstrutor de futuro. E com a
ironia na ponta da caneta de tinteiro. Observando o passar dos dias com
palavras que acertam nas horas vagas e empurram os ponteiros do relógio com o ar
certeiro de mestre reservado no seu convívio econômico.
Um fluminense cercado de personagens, tipos tardios
e de situações inusitadas ao desfile da humanidade que não evolui nem regride,
tampouco se imobiliza, porém aprecia os saltos do abismo da paisagem. Uma visão
do indivíduo que se perpetua na espécie. E se dilacera no dia a dia
(des)trilhado. Num retrato em preto-e-branco que perfura a realidade com a
navalha do espírito. Numa fotogenia das intimidades que se vai imprimindo à
galeria do social. São sombras ambulantes de dramas ridículos do nosso ser.
Mergulho sem dó, até incomplacente. Ferino e afiado. Num palco de
sensibilidades anônimas onde o artista faz o seu esforço de mandarim.
Marionetes de fios invisíveis que cabem na câmara escura da imaginação de um
mulato descrente da aura da felicidade. Num solipsismo cético que cabe o riso,
o sarcasmo e o exílio à ronda de suas próprias criações. Quando a máscara cai e
revela o vazio do espaço opaco. E as paredes ficam nuas de doer. A remover a
tinta de nosso rosto no espanto da luz e no esboço do escárnio.
A tênue fresta de confissão revela um fio delgado
de sinceridade que se confunde com orgulho. Porém a uma distância milimétrica
do sórdido. Sem escapar à covardia. Uma protoética que se revela sob a reserva
da casca dura do escondido. Há uma dialética entre o explícito e o
subentendido. Um jogo de lacunas exposto na textura da ambigüidade. Que se
expande em imaginação apoteótica e pontos de vista orbitais. Ampliando-se os
deslocamentos, os ângulos e as perspectivas. Por desdobramento permanente de
possíveis interpretações e deduções. Num leque de exposições e encobrimentos
oblíquos. Aberturas e clausuras. Mal-me-quer & bem-me-quer. Truques. Travessuras. Investigações
da suprarrealidade em sucessivas dimensões. Incansáveis invenções feéricas a
sobrepor-se ao lúdico e ao mágico. Camadas intuitivas em plenitude de
expressão.
Uma
viagem em volta da minha linguagem
O grão de areia no oceano é um sedimento, talvez um
segredo, um estar-se indiferente, solto ao léu. Não é a solidão. Daí o paradoxo
da correlação. Das torrentes cumulativas projetando a policromia das paixões
oscilantes. O arco-íris de forças polissêmicas que se propagam pela sinfonia
dos afetos em transe. Dissonâncias austeras, elaboradas e profundas. Fundas
camadas escatológicas. Partidas de um cérebro em crises epilépticas
esporádicas, humilhantes. O espasmo que se dissolve em relaxamento. Num
desequilíbrio afortunado. Numa metamorfose ao espelho do princípio da gestalt
da jornada da criatura na crosta rastejante da terra. Que implica em modelo de
observação participante. De ímpeto ao encontro das situações. Das
circunstâncias e de personalidades ímpares: circuncisão do (des)semelhante. Um
impregnar-se de impurezas. Um inocular-se nas artérias da cosmovisão. Farol
voltado para a imensidão de si mesmo à velocidade do dínamo da mente
concentrada, condensada e múltipla. Obra de reconciliação com a inteligência e
o delírio. Construtor de mosteiro profano de cujas paredes ásperas ecoam silêncios,
sussurros. Elaborador de castelos metásticos por onde circulam gracejos e
estertores. As híbridas entonações da alma em trânsito.
A imagem fotográfica que nos fica de um Machado
contido, de bengala, colete e chapéu coco pelos paralelepípedos do Rio de
Janeiro antigo. O escritor mulato entre o dilaceramento e as passagens ditosas
– intercruzamentos. Compondo as pulsões. Decompondo as crispações. Descrevendo
os sorrisos ao avesso. Numa sociedade de deformidades. Em transição. Por
subjetividades de possesso. Baile grotesco à luz de lampião de gás. Disfarces
de sombras chinesas voláteis. Passo pra frente com palhaço; passo pra trás com
anti-herói. Invade o salão um vira-lata. E a paisagem segue em linha reta e em
curvas. É como se a despedida fosse um mantra. Naquela atmosfera melancólica
porém serena, crepuscular. A vida e o seu curso macio, com atropelo. E dando
oportunidade ao leitor calmo para, nas entrelinhas, assomar-se a uma sonata.
Enquanto Machado desliza a sua pena numa escrita noturna à luz de vela em que
se escuta a gravidade das palavras. São garatujas incandescentes, mediúnicas,
nervosas e apaziguadas. Pra lá de insólito.
Fissão literária, abrupta.
O tríptico ontem/hoje/amanhã pluridimensional
desmonta o rigor cronológico hierático. O escritor assume a ruptura no pico da
sua experiência artesanal de interlocução permanente com o leitor. Demandando
uma tensão estética. Enquanto a suprarrealidade é partilhada pelo corte
sistemático da escrita. Um modo de escrever assimétrico onde o curso do tempo
se pauta pelo teor cíclico. Num fluxo descontínuo de acontecimentos em que o
exterior e o interior se fundem em pacotes similares às ondas de luz.
Justaposição de seixos elétricos de saber quantum. Disposição de camadas
fluidas borbulhantes. Escaninhos oceânicos. Idéias que se desprendem da
cachoeira temporal. Trovoadas ideogrâmicas do léxico português. Uma cascata de
sensações e talento.
Viagem à roda de mim mesmo contempla o rio do
tempo à lira ainda saudosa dos vinte e um anos passados. Embora o relato
elimine a linearidade temporal e opte pelas elipses da lembrança na escala da
paixão e da apatia. E olha que já lá se foram as paixões. (...) E se não se tem
o que dizer, melhor calar. O silêncio da sabedoria que vive a dedilhar palavras
incertas. Porém duradouras. Naquele palavreado que tinge a página de incertezas
numa escrita livre e direta. Importa atingir o alvo: a alma.
Por trás das paisagens bruscas, os espíritos se
dispersam nas brumas do tempo. Machado então capta o que envolve numa operação
verbal cirúrgica. Ele sutura seus personagens pelos fios de seus cabelos.
Apesar dos olhos serem o ponto nevrálgico. A sua mônada de inclusão. Sobretudo
os olhos de mulheres: “olhos gelados” de Henriqueta; a Capitu de “olhos de
ressaca”. Não há nenhuma descrição. Nem o autor possui o dote da discrição. Ele
é invasivo: até cruel e imoral com suas criações. Num desatino. Numa
tempestuosa imaginação que beira o transe. Epopéia de frustrações outonais.
Resvalando ao grito sufocado sob o urinol de louça chinesa do fracasso. Um
olhar engajado na ousadia do distorcimento. Na rotação do elogio da queda que
se deprime pela derrota. A exclusão atmosférica da degradação da flor no
paraíso indecente.
Uma
viagem em volta da palma da minha mão
A sociedade brasileira debutante de urbanismo
põe-se ao reverso. Isso por intermédio de um minimalismo individual que
transcende o biológico para ingressar na metafísica. Uma filosofia artística,
todavia. Com direito a toda digressão em torno do coração, da política, da
economia, do purgatório, da galhofa, do conhecimento vasto, da lingüística, da
ética, do valhacouto, da alcova, do germe, das vísceras, do cosmo, da moda, do
chiste, do faz de conta... Enfim, uma enciclopédia da comédia humana tropical
sul-americana ou desterritorializada. Ou quando o sorriso brota da sepultura em
flor no parnaso. Enquanto se gera no leito de cada segundo mais uma criatura
com todo o ´legado da nossa miséria´.
E assim a roda gigante gira gira gira pela constelação
dos sofrimentos e das alegrias sob o aplauso de mascarados. A momice da malícia
sem galhardia. A caricatura das personas. As essências na esquina do pudor. Os
vigaristas e as sublimes distorções. A horda das contingências.
Não foi Dostoievski que descobriu o duplo de si
mesmo: a recíproca é verdadeira - o eu já nasce com o outro dentro de nós
mesmo; e nós sendo a carapuça do eu ao quadrado. Uma questão matemática, pois.
Senão, geométrica. Mas interessa a Machado o tom da ambivalência na rede invisível
da rotina do cotidiano. Esse é o mote da sua pena implacável. A realidade
monótona sendo gasta como ´sonhos gastos como moedas´. O
devagar das horas se enfada com o auxílio inexorável do desdém. O diário que se
sucede em acasos ou predestinações ao sabor do vento. Quiçá obediente a um ente
mecânico ausente à existência. Na rotina, que é a graça inválida. Tenha pois
calma, caro leitor. Sossega. E respira fundo, lentamente, pausadamente, quase
ao ritmo manso duma pluma ao ar... uma vez que a morte seja a imobilidade do
tempo. A negação radical de tiranas ampulhetas.
“Acorda, Plácido!”, assim o
narrador oculto de Viagem à roda de mim mesmo se reporta ao personagem principal do nó górdio. Acorda, rapaz,
para os caprichos do destino. Pois o futuro está dentro do bolso de sua velha
casaca. O futuro misturado com a poeira do passado e o pó do presente. Um
amálgama que não dá mais para separar: ta tudo grudado num visgo só. Ir
saltando as fronteiras invisíveis do cíclico. Sem o heroísmo personalista
rapsódico.
O indivíduo seria o
limite do mundo. E o amor se inviabilizaria nesse mundo. Uma vez que a união
implica-se no ilimitado: a fusão exige perfeição. E a comunhão reflete o
eterno: uma qualidade diáfana. Que o corpo nega. E a realidade obedece. Uma
encruzilhada, entretanto, nos interstícios do labirinto. Um recorte pictórico
que beira a simbologia do indecifrável. Num olhar que mira a esfinge nossa de
cada dia. O feijão com arroz do mistério. Quem ousa desvendá-lo?
O amor seria um
crime?
Ah! esse ideal
provocante de combinação metaquímica. O fado que desafia superar os
antagonismos latentes. Sustentando o pêndulo do incômodo real. Carregando o
fardo na ressonância do drama realista psicológico. Num entreato sofrido. E
desentendido. Inconsciente, demente. Numa pândega autoirônica. Patético rito
com o traço burlesco de fantasmas insones. Um turbilhão de formas insatisfeitas
na quintessência. Mas em busca de sentido. De dar significado à coisa em si. De
reconhecer-se. Ao tempo em que se desconhece – oscilação fugidia.
Uma
viagem em volta de minha sombra
Partículas
alucinadas. Essa combustão no vácuo. A provocar desassossego. O mal-estar, desse
modo, não é secreto. O imprevisível impera nos poros das letras conjugadas.
Essa articulação de pesos e medidas. O contrato de aliança permanecendo na
superfície das relações. Sendo uma exigência da condição humana. Uma
necessidade. Que se abre para o precário, para a estupidez ou para a farsa.
Pano de fundo de uma estética do desamparo. Aquela superestrutura do fracasso.
Conquanto revestida de sutileza e esforço de precisão. Ou seja, cortando
desmedidamente os excessos e só deixando a nervura do núcleo de expressão. O
sumo da corrente. Numa equação de severidade lingüística. Com o subentendido
das séries não lineares estilísticas. Resultando na construção artística do
atributo de diversidade pura. Essa complexa e preciosa heterogeneidade
eqüidistante do mecanicismo automático.
O mundo é o
negativo da alma. Essa imbricação de sujeitos. A nódoa no coração. O peitoril
maculado. Numa paisagem embotada cuja efemeridade marca o pano de fundo vazio.
Ao tremular de passos na rua suja. Aonde personagens vagam sob as estrelas que
cintilam para o nada. Ao escândalo de pensamentos e emoções tremulantes. Tudo
não passando de um quadro emoldurado e preso na abóbada celeste. Vagas
interpenetrações e ajustes de interdependências. Um conglomerado de
perspectivismos. A concha que reproduz o som da un-idade dentro do uni-verso. Dessa diversidade única, intransferível,
que se manifesta no minimalismo da troca de olhares: close-up na retina do ser.
O paralelismo de
olhares funcionando como o antagonismo do quadro de situação cênica. Uma ética
pictogrâmica na sua correlação de forças telúricas. Uma energia emanada do
imanente. Na divergência de posições que enquadram o perspectivismo do vago
olhar de cada um. Há um oco em cada segmento. Em cada ângulo. Em cada vértice.
Cujos quadros são envoltos pela cortina de fumaça que descreve o circunstancial
das incompatibilidades de gênio. Que se revela ou que se esconde. Numa névoa de
divergências. De transições persistentes. De passagens ao vento dos eus. Num
solipsismo que consiste em transpor o tempo. Em emendar o soneto da existência.
Em reparar equívocos. Na constatação de ilusões. Ou na aquisição compulsiva de
perdas. Mandala dos erros. Carapaça da dissimulação. Esse círculo moralista da
tradição na espiral dos espíritos que viajam no tobogã da eterna expectativa.
Essa ânsia que é uma provação, ou angústia, ou spleen.
A dramaturgia é
atmosfera. A palavra, música. O sentimento, cadência. A gramática, dissolução.
E a inteligência é o tom de corte seco, [in]direto - até
inconveniente. Num esgotamento sereno, quase memorial-espiritual, uma
solenidade de despedida, resignada, impiedosa, uma prece lúdica à natureza
humana dilacerada, condenada à introjeção da prosa do mundo. Essa mônoda
prisioneira do túmulo cósmico panteísta. A fisionomia de um espaço prenhe de
abandono, esse torrão desolado, pasto estéril aonde se divisa o horizonte
desértico das miragens da insensatez na verticalidade do íntimo hibernado. Esse
adormecimento que entorpece os sonhos. E cujo fundo reacende a translucidez do
desvario insigne. O colapso do tino lá no imo.
É Machado num
percurso árido povoado pelo absurdo operístico do humor. A urdidura de um
pequeno conto diante do contexto do riso (...) de Mona Lisa. Vaga sensação de
disparate. De chiste. Ou a fina ironia da sombra para com a desfaçatez da luz.
O sarcasmo disciplinado em letras neutras. Descarnado de ornamento. Língua nua
e crua. Verbo primordial. Morfologia do arcaísmo no presente dilatado,
absoluto. A pronúncia primeva. Sintaxe tardia. O tumulto na alquimia da
clareza. Quando a magia cruza com a filosofia, e a literatura se engravida. Num
surto.
Uma
viagem em volta do meu engano
A memória salta
como relâmpago. Recua e se adianta na curva da inconstância do tempo. Sem
intervalos. A lembrança como cápsula a navegar no éter. Impossível deter-se no
instante preciso. Pois não há precisão das horas. Os ponteiros do relógico
foram arruinados. A sombra fica extática no meio da ponte. Enquanto o rio flui
em ondas e espumas. E a vida é uma galera embriagada de ócio. Embora exija
muita energia para acompanhar o ritmo do movimento continuum. Não há quem o detenha. Quem o paralise. O momento é
volátil. Há uma batalha das horas. Assim como corre, paralela, a guerra do
amor. Esse amor satélite, até “enjoado”. Esse dito amor que não quer
ajoelhar-se aos pés de ninguém nesse mundo grotesco. A curva amorosa na
iminência do desmaio. Quando então a alma dá um soluço e se surpreende golfando
sob as estrelas opacas.
Pois que o espelho
distorcido do personagem nuclear se manifesta na jovem viúva Henriqueta
revestida pelo luto do mistério do himeneu. Uma paixão tão acanhada, que beira
ao ódio recalcado, remoto, por trás da reticência gráfica. Num amor que se
reveste de retaliação ao outro. O ambíguo amor-ódio recôndito que permeia a
relação indecisa do casal. Algo não revelado. Assim não declarado. A fúria ou o
palavrão não ditos ou não escritos no relato, quiçá por recato de estilo. Senão
pela nuance de contar um conto, e pronto. Uma forma de narrar que se assemelha
ao furo da navalha na pele. Recurso literário que se desvia da timidez das
personagens através de pausas elípticas temporais. Que envolve o leitor e o
atrai para o labirinto das experiências humanas. Com a audácia criativa como
âncora da construção artística.
A estrela trepa no telhado e ri
da miséria alheia. Para completar o escândalo astrológico, o sol saltita em
traje de seda diante dos casarões. A ambiência do urbanismo carioca é afetada
pelo delírio dos trópicos nos finais do século XIX. A periferia do capital
sacode a ordem mental dos personagens provincianos. Mas é o amor que está em
pauta. Ou seria o ódio? Não, é o amor mesmo. Ele, o tal.
O que será que será? (...)
Bem, estamos na berlinda da
impossibilidade do amor, que rima com rancor. Afinal, defrontamo-nos diante do
desejo. E sem subterfúgio. Frente a frente. Escancarado na pena impiedosa, por
capricho de Machado. Ele que projeta o desarranjo. Que nos faz enfrentar o
estranhamento e que tece a trama não convencional de desconforto.
Esse incômodo em torno de uma
palavra singela e querida: amor.
Uma
viagem em volta da minha comédia
Mas bem que poderia ser
carência. Ou a idealização órfica da fusão, da transfusão, do umbilicamento,
das geminações. A inconstância do eu no cobertor do apego. Envolto na posse com
as inevitáveis espumas azedas de raiva, ciúme. A tempestade do afeto em
desamparo. Enquanto o outro sendo a promessa. E nesse tumulto as vozes
dissonantes da alteridade não passam de quimera. Essa polifonia que se projeta
e se esvai nas escalas impuras e infinitas das distâncias estelares. Uma
sucessão de paixões a vagar na trilha sonora cacófona do cosmo.
Na dispersão da mente, da
emoção e do orgânico que convergem para a quiromancia do destino. E sua
aspereza. Esse espasmo de inteligência no contraponto da demência. A desfilar
na atmosfera azul sob nuvens em êxtase de impermanência. Ao crepúsculo da ânsia
pela realização da alma gêmea. Mas que se dilui em frustração ou engodo ou
tolice. Escorrendo pela memória e evadindo pelo esquecimento. Na extração do
sumo da felicidade com o fastio da desgraça.
A gangorra da vida. Fortuna e
azar. Clareza e obtusidade. Entre o murmúrio e a cicio do moribundo. Campo e
contratempo. O prisma que decompõe os sentimentos. A forma que se evapora.
Dilema essencialíssimo. Enamoramento. Mistura, combinação ou obstáculo. A violência se gerando em placenta de lama. A paixão
contempla o precipício. O sangue corre pelo vale das almas. O amor como
subjugação de um pelo outro: déspota das sensações. Seria uma flor de lótus na
caatinga do coração?
É possível.
Desconfio que pelo canal remoto
do medo vaze a dor imemorial da culpa, tirana. O duelo subterrâneo da
solidariedade com o egoísmo, a compaixão e a ingratidão, a indiferença e a
tolice. Constituir-se-á a cortesia uma `barretada` de insignificâncias? Ou tudo
não passará de incertezas? ou de
sutis dubiedades no cerne da personalidade de cada um? A dúvida é o adequado
consolo do escritor _ a interrogação como o travesseiro do sono da
existência-sonho. Ele só não pode ser indeciso no uso preciso da palavra. Ou
quando a presença do silêncio efetiva-se como instrumento paradramático. Só as
personagens têm direito às indecisões, aos enganos e às lacunas. Ao leitor com
soberania: conceito pra lá de obra aberta, escancarada.
A arquitetura da grande arte se
espelha na clareza formal das catedrais. O numinoso que evade desses vitrais
funciona como refúgio à imaginação. A consciência se dilata na proporção
inversa dos quadrados da distância. Numa reverência à beleza como medida de
todas as coisas.
O verbo reproduz a duplicidade
“entre mim mesmo e mim” reaproveitada
pelo classicismo de Camões que vai pongar na modernidade burguesa de
globalização. Divisória internalizada. Essa reunião de duas almas e dois corpos
no discurso. Num amplificado panorama de obras cuja matriz atômica é o desejo
de mergulhar na alma sem recato. Portanto, um projeto de introspecção que vai
podando as arestas da paisagem ordinária para o ingresso sem vertigem no fundo
de alguns abismos. Esse o intento. Essa a determinação. Por trilhas
demasiadamente humanas. Até o insuportável. Embora sem perder o juízo das cenas
epifânicas. E de soslaio, pela coxia da ribalta, a loucura hierática acena da
sacada do sobrado rococó com seus lenços de cambraia azul marinho. À medida que
a cartomante atravessa o umbral do portão de saída. Ou seria de entrada?...
Uma
viagem em volta do meu réquiem
Inocência é a linha
perpendicular de móbile predestinada ao acaso de vento virtuose, suspeito. O
inocente equivalendo ao aborto no paraíso. Uma digressão especulativa infernal.
Transgressão à galope. Extremo dual confrontado ao uno. A besta se deita no
leito do espírito. O mundo é conspurcação. O lodo ofusca o diamante puro.
Choque de posicionamentos. Espelhos se intercruzam. Realidade ao viés de sonho.
Elegantes pensamentos cósmicos e microscópicos. A viagem é a metáfora de mente
na sua inquietude desenfreada. Um complexo deslocamento no campo magnético. Uma
projeção. Assim adentra o livro Voyage autour de ma chambre (Viagem à roda do
meu quarto) do francês Xavier de
Maistre, publicado em 1872, na tradição enviesada dos grandes relatos de
aventura do eu. Sem se omitir ao modelo pioneiríssimo de A sentimental journey through France and Italy (Uma viagem sentimental através da França e
da Itália) do irlandês Laurence Sterne, publicado em 1768. Frutos
suculentos de estímulo à capacidade inventiva. Sincronicidade em traços
notáveis. Tropo de singularidade. O assombro.
O antecessor é o fecundo primordial. Desfruta do deleite da forma que
precede. Prático prestidigitador da jornada do herói lendário. Essa
ritualística mítica. Aparato lingüístico encorpado de código, convenção, signo
e símbolo. Quando então se dá conta do afundamento fatalista
matriarcal/patriarcal da célula familiar em maçante gestual de sedentário que
evoca a hodierna solidão primigênia. A morada de subjacente âncora para a
travessia de navegação imprevisível. Rota de invenções farsescas. Motor de
deboche. A pantomima de lágrima circense.
Uma literatura em voga de marcha lenta que Machado saboreava com a
identificação irônica de uma certeira metalinguagem onde o leitor assume papel
de distanciamento crítico diante da mimese. Reviravolta. A circulação de ideias
via Atlântico, à periferia morena. Desde quando o urbano ganha contorno e
perfil mercantilistas republicanos improvisados e deformados pelo suor dos mares
salitrados de uma sociedade patrimonialista com verniz escravocrata. Um
iluminismo bruxuleante acentuado pela áurea ainda romântica dos acendedores de
lampião que de vez em quando assobiavam polcas na Rua do Ouvidor.
Esse eu prisioneiro do mundo e
da própria carapaça. O ego do deixar-se levar do viajor e dos seus
desembarques. Mas, cá com o meus róseos botões, a prisão poderá acenar para a
liberdade?
Ilha de si mesmo, à
deriva do outro, admirando os astros quais pedras preciosas distraídas no céu
ausente. Sinais de solidões celestes desligados na aparência mas conectados em
essência. Esses transportes encantados de banzo, saudade, de triste-alegria.
Céleres afastamentos estelares expansivos a correr para os apartados de outros
quarteirões das galáxias. Mundo fechado, inesperado. Mundo aberto,
dependurado. Sensação de vastidão cintilante nas
nossas cabeças desoladas. Seres sem vizinhança palpável. Numa sina de
expectativa e ameaça velada. Pressentindo zonas de desentendimento.
Pressentimento de distâncias despovoadas, alheias, desinteressadas.
Hesita-se de que
uma possível fundição arremate o mundo. Daí que, viajar é transpor. Tudo vibra
através da tradição oral das “mil e uma
noites”. Essa lâmina que corta fino o sistema do infinito. Deixa a matemática
zonza. E em que o espectador da eternidade cai no escuro do esquecimento
histérico. Na renúncia ao tempo que é a “punição do pensamento”. Esse mesmo
tempo sendo a serpente que se come pelo próprio rabo. Na hora do canalha buscar
a proteção no afago do apego. No último segundo do tolo se refugiar na prisão
sob as nuvens na sua inconstância permanente, monótona e sorumbática, porém
bela e arredia. Acolá na prudência da alienação. Pro outro lado de cá das
constelações faiscantes no campanário bucólico pelo véu da vacuidade: o avesso
de si mesmo.
Uma
viagem em volta da minha vírgula
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