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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Ensaio de José Umberto sobre Machado de Assis



existe uma ordem no mundo a priori; e, se houver, no que consiste?
Wittgenstein


A navalha expõe o remoto

José Umberto



Para André Olivieri Setaro

O
conto Viagem à roda de mim mesmo que Machado de Assis publicou em 1885 é a coroação paradigmática do seu `instinto´ de desencanto. De um mundo considerado quase suspenso na caverna protozoária das ocasiões. Numa fisiologia de percurso metafísico a desandar na biologia primeva. Desse universo latente com o sabor da perdição. Com o encanto de ilusões submersas nos pântanos. Distante da nostalgia e próximo do desvelamento. Essa regressão como atalho ao redemoinho do tempo. Como se desse uma síncope de reversão: o profeta das origens. Um começo que se expande para o sem-início, numa queda de pressão. E de lá contempla o imponderável. Num acerto de contas com a sutileza. Ou a seara de linguagem do indefinível. A exigir o mergulho em ambientes também indeterminados. Daí estabelecer a ponte entre níveis recônditos do ser e as aparências dos eventos. Talvez um dom quiçá inato de dialogar e interpretar os fatos extraordinários. Procedimentos de uma língua tão da intimidade dos magos. Esses ilusionistas a transgredir as barreiras do limite.

E é quando o `bruxo´ de Cosme Velho estiliza, nesta narrativa curta, o que também desenvolvia em outros gêneros como romance, poesia, crônica, teatro, além da atividade crítica. Aliás, esse conto pontifica uma síntese desses recursos literários. Um escritor que já está com o coração patético de sol em excesso. Um urbano andante debaixo de uma lua arcaísta. Uma personalidade de fina verve porém desafiante desconstrutor de futuro. E com a ironia na ponta da caneta de tinteiro. Observando o passar dos dias com palavras que acertam nas horas vagas e empurram os ponteiros do relógio com o ar certeiro de mestre reservado no seu convívio econômico.

Um fluminense cercado de personagens, tipos tardios e de situações inusitadas ao desfile da humanidade que não evolui nem regride, tampouco se imobiliza, porém aprecia os saltos do abismo da paisagem. Uma visão do indivíduo que se perpetua na espécie. E se dilacera no dia a dia (des)trilhado. Num retrato em preto-e-branco que perfura a realidade com a navalha do espírito. Numa fotogenia das intimidades que se vai imprimindo à galeria do social. São sombras ambulantes de dramas ridículos do nosso ser. Mergulho sem dó, até incomplacente. Ferino e afiado. Num palco de sensibilidades anônimas onde o artista faz o seu esforço de mandarim. Marionetes de fios invisíveis que cabem na câmara escura da imaginação de um mulato descrente da aura da felicidade. Num solipsismo cético que cabe o riso, o sarcasmo e o exílio à ronda de suas próprias criações. Quando a máscara cai e revela o vazio do espaço opaco. E as paredes ficam nuas de doer. A remover a tinta de nosso rosto no espanto da luz e no esboço do escárnio.

A tênue fresta de confissão revela um fio delgado de sinceridade que se confunde com orgulho. Porém a uma distância milimétrica do sórdido. Sem escapar à covardia. Uma protoética que se revela sob a reserva da casca dura do escondido. Há uma dialética entre o explícito e o subentendido. Um jogo de lacunas exposto na textura da ambigüidade. Que se expande em imaginação apoteótica e pontos de vista orbitais. Ampliando-se os deslocamentos, os ângulos e as perspectivas. Por desdobramento permanente de possíveis interpretações e deduções. Num leque de exposições e encobrimentos oblíquos. Aberturas e clausuras. Mal-me-quer & bem-me-quer. Truques. Travessuras. Investigações da suprarrealidade em sucessivas dimensões. Incansáveis invenções feéricas a sobrepor-se ao lúdico e ao mágico. Camadas intuitivas em plenitude de expressão.

Uma viagem em volta da minha linguagem

O grão de areia no oceano é um sedimento, talvez um segredo, um estar-se indiferente, solto ao léu. Não é a solidão. Daí o paradoxo da correlação. Das torrentes cumulativas projetando a policromia das paixões oscilantes. O arco-íris de forças polissêmicas que se propagam pela sinfonia dos afetos em transe. Dissonâncias austeras, elaboradas e profundas. Fundas camadas escatológicas. Partidas de um cérebro em crises epilépticas esporádicas, humilhantes. O espasmo que se dissolve em relaxamento. Num desequilíbrio afortunado. Numa metamorfose ao espelho do princípio da gestalt da jornada da criatura na crosta rastejante da terra. Que implica em modelo de observação participante. De ímpeto ao encontro das situações. Das circunstâncias e de personalidades ímpares: circuncisão do (des)semelhante. Um impregnar-se de impurezas. Um inocular-se nas artérias da cosmovisão. Farol voltado para a imensidão de si mesmo à velocidade do dínamo da mente concentrada, condensada e múltipla. Obra de reconciliação com a inteligência e o delírio. Construtor de mosteiro profano de cujas paredes ásperas ecoam silêncios, sussurros. Elaborador de castelos metásticos por onde circulam gracejos e estertores. As híbridas entonações da alma em trânsito.

A imagem fotográfica que nos fica de um Machado contido, de bengala, colete e chapéu coco pelos paralelepípedos do Rio de Janeiro antigo. O escritor mulato entre o dilaceramento e as passagens ditosas – intercruzamentos. Compondo as pulsões. Decompondo as crispações. Descrevendo os sorrisos ao avesso. Numa sociedade de deformidades. Em transição. Por subjetividades de possesso. Baile grotesco à luz de lampião de gás. Disfarces de sombras chinesas voláteis. Passo pra frente com palhaço; passo pra trás com anti-herói. Invade o salão um vira-lata. E a paisagem segue em linha reta e em curvas. É como se a despedida fosse um mantra. Naquela atmosfera melancólica porém serena, crepuscular. A vida e o seu curso macio, com atropelo. E dando oportunidade ao leitor calmo para, nas entrelinhas, assomar-se a uma sonata. Enquanto Machado desliza a sua pena numa escrita noturna à luz de vela em que se escuta a gravidade das palavras. São garatujas incandescentes, mediúnicas, nervosas e apaziguadas. Pra lá de insólito.

Fissão literária, abrupta.

O tríptico ontem/hoje/amanhã pluridimensional desmonta o rigor cronológico hierático. O escritor assume a ruptura no pico da sua experiência artesanal de interlocução permanente com o leitor. Demandando uma tensão estética. Enquanto a suprarrealidade é partilhada pelo corte sistemático da escrita. Um modo de escrever assimétrico onde o curso do tempo se pauta pelo teor cíclico. Num fluxo descontínuo de acontecimentos em que o exterior e o interior se fundem em pacotes similares às ondas de luz. Justaposição de seixos elétricos de saber quantum. Disposição de camadas fluidas borbulhantes. Escaninhos oceânicos. Idéias que se desprendem da cachoeira temporal. Trovoadas ideogrâmicas do léxico português. Uma cascata de sensações e talento.

Viagem à roda de mim mesmo contempla o rio do tempo à lira ainda saudosa dos vinte e um anos passados. Embora o relato elimine a linearidade temporal e opte pelas elipses da lembrança na escala da paixão e da apatia. E olha que já lá se foram as paixões. (...) E se não se tem o que dizer, melhor calar. O silêncio da sabedoria que vive a dedilhar palavras incertas. Porém duradouras. Naquele palavreado que tinge a página de incertezas numa escrita livre e direta. Importa atingir o alvo: a alma.

Por trás das paisagens bruscas, os espíritos se dispersam nas brumas do tempo. Machado então capta o que envolve numa operação verbal cirúrgica. Ele sutura seus personagens pelos fios de seus cabelos. Apesar dos olhos serem o ponto nevrálgico. A sua mônada de inclusão. Sobretudo os olhos de mulheres: “olhos gelados” de Henriqueta; a Capitu de “olhos de ressaca”. Não há nenhuma descrição. Nem o autor possui o dote da discrição. Ele é invasivo: até cruel e imoral com suas criações. Num desatino. Numa tempestuosa imaginação que beira o transe. Epopéia de frustrações outonais. Resvalando ao grito sufocado sob o urinol de louça chinesa do fracasso. Um olhar engajado na ousadia do distorcimento. Na rotação do elogio da queda que se deprime pela derrota. A exclusão atmosférica da degradação da flor no paraíso indecente.

Uma viagem em volta da palma da minha mão

A sociedade brasileira debutante de urbanismo põe-se ao reverso. Isso por intermédio de um minimalismo individual que transcende o biológico para ingressar na metafísica. Uma filosofia artística, todavia. Com direito a toda digressão em torno do coração, da política, da economia, do purgatório, da galhofa, do conhecimento vasto, da lingüística, da ética, do valhacouto, da alcova, do germe, das vísceras, do cosmo, da moda, do chiste, do faz de conta... Enfim, uma enciclopédia da comédia humana tropical sul-americana ou desterritorializada. Ou quando o sorriso brota da sepultura em flor no parnaso. Enquanto se gera no leito de cada segundo mais uma criatura com todo o ´legado da nossa miséria´.

E assim a roda gigante gira gira gira pela constelação dos sofrimentos e das alegrias sob o aplauso de mascarados. A momice da malícia sem galhardia. A caricatura das personas. As essências na esquina do pudor. Os vigaristas e as sublimes distorções. A horda das contingências.

Não foi Dostoievski que descobriu o duplo de si mesmo: a recíproca é verdadeira - o eu já nasce com o outro dentro de nós mesmo; e nós sendo a carapuça do eu ao quadrado. Uma questão matemática, pois. Senão, geométrica. Mas interessa a Machado o tom da ambivalência na rede invisível da rotina do cotidiano. Esse é o mote da sua pena implacável. A realidade monótona sendo gasta como ´sonhos gastos como moedas´. O devagar das horas se enfada com o auxílio inexorável do desdém. O diário que se sucede em acasos ou predestinações ao sabor do vento. Quiçá obediente a um ente mecânico ausente à existência. Na rotina, que é a graça inválida. Tenha pois calma, caro leitor. Sossega. E respira fundo, lentamente, pausadamente, quase ao ritmo manso duma pluma ao ar... uma vez que a morte seja a imobilidade do tempo. A negação radical de tiranas ampulhetas.

“Acorda, Plácido!”, assim o narrador oculto de Viagem à roda de mim mesmo se reporta ao personagem principal do nó górdio. Acorda, rapaz, para os caprichos do destino. Pois o futuro está dentro do bolso de sua velha casaca. O futuro misturado com a poeira do passado e o pó do presente. Um amálgama que não dá mais para separar: ta tudo grudado num visgo só. Ir saltando as fronteiras invisíveis do cíclico. Sem o heroísmo personalista rapsódico.

O indivíduo seria o limite do mundo. E o amor se inviabilizaria nesse mundo. Uma vez que a união implica-se no ilimitado: a fusão exige perfeição. E a comunhão reflete o eterno: uma qualidade diáfana. Que o corpo nega. E a realidade obedece. Uma encruzilhada, entretanto, nos interstícios do labirinto. Um recorte pictórico que beira a simbologia do indecifrável. Num olhar que mira a esfinge nossa de cada dia. O feijão com arroz do mistério. Quem ousa desvendá-lo?

O amor seria um crime?

Ah! esse ideal provocante de combinação metaquímica. O fado que desafia superar os antagonismos latentes. Sustentando o pêndulo do incômodo real. Carregando o fardo na ressonância do drama realista psicológico. Num entreato sofrido. E desentendido. Inconsciente, demente. Numa pândega autoirônica. Patético rito com o traço burlesco de fantasmas insones. Um turbilhão de formas insatisfeitas na quintessência. Mas em busca de sentido. De dar significado à coisa em si. De reconhecer-se. Ao tempo em que se desconhece – oscilação fugidia.

Uma viagem em volta de minha sombra

Partículas alucinadas. Essa combustão no vácuo. A provocar desassossego. O mal-estar, desse modo, não é secreto. O imprevisível impera nos poros das letras conjugadas. Essa articulação de pesos e medidas. O contrato de aliança permanecendo na superfície das relações. Sendo uma exigência da condição humana. Uma necessidade. Que se abre para o precário, para a estupidez ou para a farsa. Pano de fundo de uma estética do desamparo. Aquela superestrutura do fracasso. Conquanto revestida de sutileza e esforço de precisão. Ou seja, cortando desmedidamente os excessos e só deixando a nervura do núcleo de expressão. O sumo da corrente. Numa equação de severidade lingüística. Com o subentendido das séries não lineares estilísticas. Resultando na construção artística do atributo de diversidade pura. Essa complexa e preciosa heterogeneidade eqüidistante do mecanicismo automático.

O mundo é o negativo da alma. Essa imbricação de sujeitos. A nódoa no coração. O peitoril maculado. Numa paisagem embotada cuja efemeridade marca o pano de fundo vazio. Ao tremular de passos na rua suja. Aonde personagens vagam sob as estrelas que cintilam para o nada. Ao escândalo de pensamentos e emoções tremulantes. Tudo não passando de um quadro emoldurado e preso na abóbada celeste. Vagas interpenetrações e ajustes de interdependências. Um conglomerado de perspectivismos. A concha que reproduz o som da un-idade dentro do uni-verso. Dessa diversidade única, intransferível, que se manifesta no minimalismo da troca de olhares: close-up na retina do ser.

O paralelismo de olhares funcionando como o antagonismo do quadro de situação cênica. Uma ética pictogrâmica na sua correlação de forças telúricas. Uma energia emanada do imanente. Na divergência de posições que enquadram o perspectivismo do vago olhar de cada um. Há um oco em cada segmento. Em cada ângulo. Em cada vértice. Cujos quadros são envoltos pela cortina de fumaça que descreve o circunstancial das incompatibilidades de gênio. Que se revela ou que se esconde. Numa névoa de divergências. De transições persistentes. De passagens ao vento dos eus. Num solipsismo que consiste em transpor o tempo. Em emendar o soneto da existência. Em reparar equívocos. Na constatação de ilusões. Ou na aquisição compulsiva de perdas. Mandala dos erros. Carapaça da dissimulação. Esse círculo moralista da tradição na espiral dos espíritos que viajam no tobogã da eterna expectativa. Essa ânsia que é uma provação, ou angústia, ou spleen.

A dramaturgia é atmosfera. A palavra, música. O sentimento, cadência. A gramática, dissolução. E a inteligência é o tom de corte seco, [in]direto - até inconveniente. Num esgotamento sereno, quase memorial-espiritual, uma solenidade de despedida, resignada, impiedosa, uma prece lúdica à natureza humana dilacerada, condenada à introjeção da prosa do mundo. Essa mônoda prisioneira do túmulo cósmico panteísta. A fisionomia de um espaço prenhe de abandono, esse torrão desolado, pasto estéril aonde se divisa o horizonte desértico das miragens da insensatez na verticalidade do íntimo hibernado. Esse adormecimento que entorpece os sonhos. E cujo fundo reacende a translucidez do desvario insigne. O colapso do tino lá no imo.

É Machado num percurso árido povoado pelo absurdo operístico do humor. A urdidura de um pequeno conto diante do contexto do riso (...) de Mona Lisa. Vaga sensação de disparate. De chiste. Ou a fina ironia da sombra para com a desfaçatez da luz. O sarcasmo disciplinado em letras neutras. Descarnado de ornamento. Língua nua e crua. Verbo primordial. Morfologia do arcaísmo no presente dilatado, absoluto. A pronúncia primeva. Sintaxe tardia. O tumulto na alquimia da clareza. Quando a magia cruza com a filosofia, e a literatura se engravida. Num surto.

Uma viagem em volta do meu engano

A memória salta como relâmpago. Recua e se adianta na curva da inconstância do tempo. Sem intervalos. A lembrança como cápsula a navegar no éter. Impossível deter-se no instante preciso. Pois não há precisão das horas. Os ponteiros do relógico foram arruinados. A sombra fica extática no meio da ponte. Enquanto o rio flui em ondas e espumas. E a vida é uma galera embriagada de ócio. Embora exija muita energia para acompanhar o ritmo do movimento continuum. Não há quem o detenha. Quem o paralise. O momento é volátil. Há uma batalha das horas. Assim como corre, paralela, a guerra do amor. Esse amor satélite, até “enjoado”. Esse dito amor que não quer ajoelhar-se aos pés de ninguém nesse mundo grotesco. A curva amorosa na iminência do desmaio. Quando então a alma dá um soluço e se surpreende golfando sob as estrelas opacas.

Pois que o espelho distorcido do personagem nuclear se manifesta na jovem viúva Henriqueta revestida pelo luto do mistério do himeneu. Uma paixão tão acanhada, que beira ao ódio recalcado, remoto, por trás da reticência gráfica. Num amor que se reveste de retaliação ao outro. O ambíguo amor-ódio recôndito que permeia a relação indecisa do casal. Algo não revelado. Assim não declarado. A fúria ou o palavrão não ditos ou não escritos no relato, quiçá por recato de estilo. Senão pela nuance de contar um conto, e pronto. Uma forma de narrar que se assemelha ao furo da navalha na pele. Recurso literário que se desvia da timidez das personagens através de pausas elípticas temporais. Que envolve o leitor e o atrai para o labirinto das experiências humanas. Com a audácia criativa como âncora da construção artística.

A estrela trepa no telhado e ri da miséria alheia. Para completar o escândalo astrológico, o sol saltita em traje de seda diante dos casarões. A ambiência do urbanismo carioca é afetada pelo delírio dos trópicos nos finais do século XIX. A periferia do capital sacode a ordem mental dos personagens provincianos. Mas é o amor que está em pauta. Ou seria o ódio? Não, é o amor mesmo. Ele, o tal.

O que será que será? (...)

Bem, estamos na berlinda da impossibilidade do amor, que rima com rancor. Afinal, defrontamo-nos diante do desejo. E sem subterfúgio. Frente a frente. Escancarado na pena impiedosa, por capricho de Machado. Ele que projeta o desarranjo. Que nos faz enfrentar o estranhamento e que tece a trama não convencional de desconforto.
Esse incômodo em torno de uma palavra singela e querida: amor.

Uma viagem em volta da minha comédia

Mas bem que poderia ser carência. Ou a idealização órfica da fusão, da transfusão, do umbilicamento, das geminações. A inconstância do eu no cobertor do apego. Envolto na posse com as inevitáveis espumas azedas de raiva, ciúme. A tempestade do afeto em desamparo. Enquanto o outro sendo a promessa. E nesse tumulto as vozes dissonantes da alteridade não passam de quimera. Essa polifonia que se projeta e se esvai nas escalas impuras e infinitas das distâncias estelares. Uma sucessão de paixões a vagar na trilha sonora cacófona do cosmo.

Na dispersão da mente, da emoção e do orgânico que convergem para a quiromancia do destino. E sua aspereza. Esse espasmo de inteligência no contraponto da demência. A desfilar na atmosfera azul sob nuvens em êxtase de impermanência. Ao crepúsculo da ânsia pela realização da alma gêmea. Mas que se dilui em frustração ou engodo ou tolice. Escorrendo pela memória e evadindo pelo esquecimento. Na extração do sumo da felicidade com o fastio da desgraça.

A gangorra da vida. Fortuna e azar. Clareza e obtusidade. Entre o murmúrio e a cicio do moribundo. Campo e contratempo. O prisma que decompõe os sentimentos. A forma que se evapora. Dilema essencialíssimo. Enamoramento. Mistura, combinação ou obstáculo. A violência se gerando em placenta de lama. A paixão contempla o precipício. O sangue corre pelo vale das almas. O amor como subjugação de um pelo outro: déspota das sensações. Seria uma flor de lótus na caatinga do coração?

É possível.

Desconfio que pelo canal remoto do medo vaze a dor imemorial da culpa, tirana. O duelo subterrâneo da solidariedade com o egoísmo, a compaixão e a ingratidão, a indiferença e a tolice. Constituir-se-á a cortesia uma `barretada` de insignificâncias? Ou tudo não passará de incertezas? ou de sutis dubiedades no cerne da personalidade de cada um? A dúvida é o adequado consolo do escritor _ a interrogação como o travesseiro do sono da existência-sonho. Ele só não pode ser indeciso no uso preciso da palavra. Ou quando a presença do silêncio efetiva-se como instrumento paradramático. Só as personagens têm direito às indecisões, aos enganos e às lacunas. Ao leitor com soberania: conceito pra lá de obra aberta, escancarada.

A arquitetura da grande arte se espelha na clareza formal das catedrais. O numinoso que evade desses vitrais funciona como refúgio à imaginação. A consciência se dilata na proporção inversa dos quadrados da distância. Numa reverência à beleza como medida de todas as coisas.

O verbo reproduz a duplicidade “entre mim mesmo e mim” reaproveitada pelo classicismo de Camões que vai pongar na modernidade burguesa de globalização. Divisória internalizada. Essa reunião de duas almas e dois corpos no discurso. Num amplificado panorama de obras cuja matriz atômica é o desejo de mergulhar na alma sem recato. Portanto, um projeto de introspecção que vai podando as arestas da paisagem ordinária para o ingresso sem vertigem no fundo de alguns abismos. Esse o intento. Essa a determinação. Por trilhas demasiadamente humanas. Até o insuportável. Embora sem perder o juízo das cenas epifânicas. E de soslaio, pela coxia da ribalta, a loucura hierática acena da sacada do sobrado rococó com seus lenços de cambraia azul marinho. À medida que a cartomante atravessa o umbral do portão de saída. Ou seria de entrada?...

Uma viagem em volta do meu réquiem

Inocência é a linha perpendicular de móbile predestinada ao acaso de vento virtuose, suspeito. O inocente equivalendo ao aborto no paraíso. Uma digressão especulativa infernal. Transgressão à galope. Extremo dual confrontado ao uno. A besta se deita no leito do espírito. O mundo é conspurcação. O lodo ofusca o diamante puro. Choque de posicionamentos. Espelhos se intercruzam. Realidade ao viés de sonho. Elegantes pensamentos cósmicos e microscópicos. A viagem é a metáfora de mente na sua inquietude desenfreada. Um complexo deslocamento no campo magnético. Uma projeção. Assim adentra o livro Voyage autour de ma chambre (Viagem à roda do meu quarto) do francês Xavier de Maistre, publicado em 1872, na tradição enviesada dos grandes relatos de aventura do eu. Sem se omitir ao modelo pioneiríssimo de A sentimental journey through France and Italy (Uma viagem sentimental através da França e da Itália) do irlandês Laurence Sterne, publicado em 1768. Frutos suculentos de estímulo à capacidade inventiva. Sincronicidade em traços notáveis. Tropo de singularidade. O assombro.

O antecessor é o fecundo primordial. Desfruta do deleite da forma que precede. Prático prestidigitador da jornada do herói lendário. Essa ritualística mítica. Aparato lingüístico encorpado de código, convenção, signo e símbolo. Quando então se dá conta do afundamento fatalista matriarcal/patriarcal da célula familiar em maçante gestual de sedentário que evoca a hodierna solidão primigênia. A morada de subjacente âncora para a travessia de navegação imprevisível. Rota de invenções farsescas. Motor de deboche. A pantomima de lágrima circense.

Uma literatura em voga de marcha lenta que Machado saboreava com a identificação irônica de uma certeira metalinguagem onde o leitor assume papel de distanciamento crítico diante da mimese. Reviravolta. A circulação de ideias via Atlântico, à periferia morena. Desde quando o urbano ganha contorno e perfil mercantilistas republicanos improvisados e deformados pelo suor dos mares salitrados de uma sociedade patrimonialista com verniz escravocrata. Um iluminismo bruxuleante acentuado pela áurea ainda romântica dos acendedores de lampião que de vez em quando assobiavam polcas na Rua do Ouvidor.

Esse eu prisioneiro do mundo e da própria carapaça. O ego do deixar-se levar do viajor e dos seus desembarques. Mas, cá com o meus róseos botões, a prisão poderá acenar para a liberdade?

Ilha de si mesmo, à deriva do outro, admirando os astros quais pedras preciosas distraídas no céu ausente. Sinais de solidões celestes desligados na aparência mas conectados em essência. Esses transportes encantados de banzo, saudade, de triste-alegria. Céleres afastamentos estelares expansivos a correr para os apartados de outros quarteirões das galáxias. Mundo fechado, inesperado. Mundo aberto, dependurado. Sensação de vastidão cintilante nas nossas cabeças desoladas. Seres sem vizinhança palpável. Numa sina de expectativa e ameaça velada. Pressentindo zonas de desentendimento. Pressentimento de distâncias despovoadas, alheias, desinteressadas.

Hesita-se de que uma possível fundição arremate o mundo. Daí que, viajar é transpor. Tudo vibra através da tradição oral das “mil e uma noites”. Essa lâmina que corta fino o sistema do infinito. Deixa a matemática zonza. E em que o espectador da eternidade cai no escuro do esquecimento histérico. Na renúncia ao tempo que é a “punição do pensamento”. Esse mesmo tempo sendo a serpente que se come pelo próprio rabo. Na hora do canalha buscar a proteção no afago do apego. No último segundo do tolo se refugiar na prisão sob as nuvens na sua inconstância permanente, monótona e sorumbática, porém bela e arredia. Acolá na prudência da alienação. Pro outro lado de cá das constelações faiscantes no campanário bucólico pelo véu da vacuidade: o avesso de si mesmo.

Uma viagem em volta da minha vírgula

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