CARLOS HEITOR CONY
Aos olhos do Criador, um excremento humano ou bovino pouco difere de um hambúrguer ou pizza
Ezequiel, escravo dos Caldeus, teve uma visão às margens do ribeirão do Cobar, afluente do Eufrates.
Não devemos pasmar de ter Ezequiel visto animais de quatro faces e quatro asas -isso andava em moda naqueles tempos, e o todo-poderoso, cuja autoria dessas visões bíblicas é inconteste, tinha pouca imaginação e muito se repetia.
Mas devemos pasmar da sutileza de Yahveh (também conhecido como Javé), que mandou a Ezequiel um estranho mandamento: comer, durante 390 dias, pão de cevada coberto de excremento humano.
O profeta cumpriu o mandamento sem relutância, mas, à altura de 156 dias, já estava farto de comer excremento humano e apelou para a misericórdia divina no sentido de obter pasto mais saboroso. A bondade divina logo se fez sentir, e Ezequiel obteve consentimento para comer excremento bovino.
Homens ímpios dos séculos que se seguiram acharam semelhante mandamento indigno da majestade divina. A impiedade de tais homens fez com que fosse esquecido um detalhe: aos olhos do Criador, um excremento humano ou bovino pouco difere de um hambúrguer ou de uma pizza napolitana.
Depois de Ezequiel ser submetido a tão longa e extraordinária dieta, não é de estranhar que a leitura de seus livros (que integram o Antigo Testamento da Bíblia, tanto a judaica como a cristã) fosse proibida nas sinagogas aos menores de 30 anos -limite moral que os povos posteriores baixariam para os 18 e, mais tarde, para os 16. Pois Ezequiel é como um ancestral do Nelson Rodrigues, um Henry Miller, uma Dercy Gonçalves dos velhos tempos.
Vejamos o edificante capítulo 26 de seu profético livro: "Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão umbilical, estáveis completamente nua, eu me apiedei de vós: depois crescestes, vosso seio se formou, vosso sexo cobriu-se de pelos, eu passei e vos vi e cobri vossa ignomínia, estendi sobre vós o meu manto, vos lavei, perfumei e vesti".
Quem diz isso é o Senhor. E o mesmo Senhor prossegue no seguinte passo, ainda segundo o relato atribuído ao Espírito Santo ou a Moisés -o direito autoral dos livros sagrados é irrelevante: "Então confiante em vossa beleza, fornicastes por vossa conta com todos os passantes e vos prostituístes até nas praças públicas e abristes as pernas a todos os viajantes e vos deitastes com os egípcios, os medas, os persas, os assírios, os caldeus, os filisteus e os homens de todas as tribos ao longo do Eufrates". A expressão "abrir as pernas", que muito se usa no futebol e na política para significar amolecimento do jogo ou maioria parlamentar, tem, como vemos, uma origem respeitável.
Além do capítulo 26, há o 28, cujo santificado teor é o seguinte: "Oola era louca pelos jovens senhores, deitou-se com os egípcios desde a mais tenra idade".
Pelo visto, o divino Espírito Santo nutria birra especial para com os egípcios, pois deitar com eles era cúmulo, o sumo da vergonha e da depravação. Logo em seguida, há o relato das aventuras da irmã de Oola, cujo nome era Ooliba, e que fornicou até com os medas e assírios (outra pinimba do Espírito Santo). Quando descobriu sua vergonha, tratou de multiplicar suas fornicações. No fim da vida, só fornicava com homens "cujo membro se parece com o do asno e que expandem sua semente como cavalos".
O sábio Concilio de Trento (1545 a 1563), manifestando-se sobre esses piedosos trechos, louvou a sutileza de simbolizar em Oola e Ooliba as iniquidades de Jerusalém e de Samaria.
E o profeta Ezequiel, por cuja boca falou o Senhor de todas as coisas, aí está a espera que um consórcio ítalo-americano, sob direção de Scorsese, Spielberg ou Zeffirelli, ou mesmo de um produtor nacional com patrocínio da Petrobras e com os benefícios da Lei Rouanet, faça um filme sobre as duas irmãs.
Seus edificantes ensinamentos bem merecem uma superprodução histórica, com leões, elefantes, trovões, raios e coriscos, palácios de papelão, gladiadores, música de Morricone, cor em alta definição, censura livre e bonequinho de "O Globo" aplaudindo de pé. Se precisarem de mim, estou às ordens para fazer o papel de um dos egípcios. Em último caso, de um assírio.
Folha de S.Paulo
01/06/2012
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