Ao sair da sessão de "Tropa de Elite 2" não pude evitar de pensar em alguns filmes.
O caminho escolhido pelos autores, desta vez, me pareceu próximo ao dos grandes filmes político-policiais italianos, como Elio Petri e Damiano Damiani, sobretudo, fizeram.
No policial italiano, quanto mais um crime é investigado, mais se sobe na hierarquia, mais se adensa o mistério: topa-se, no fim da linha, com a Máfia.
No novo "Tropa", o agora tenente-coronel Nascimento é elevado à categoria de subsecretário da Segurança Pública.
De certa forma, é encostado num gabinete.
Só que estamos falando, ainda, do velho Nascimento. De maneira que ele, dali, consegue mexer seus pauzinhos para controlar o tráfico.
O problema é que aí já não se trata mais com os renegados de Canudos, da Revolta da Vacina, com os pretinhos, pardos e mulatinhos que o Bope costumava arrebentar sem dó.
Não se trata mais dessa imensa população que o Brasil culto não entende, não quer entender e tem raiva de quem entende.
(Daí Euclydes da Cunha ser, a rigor, tão pouco lido e uma das frases mais desinteressantes do livro inteiro ter se tornado lugar-comum).
Agora são os que ou passaram daquela faixa para outra, tornando-se policiais, ou mesmo os beneficiários da corrupção endêmica no país.
Ou seja, isso que o coronel chama de "o sistema".
A polícia, corrupta, transforma-se nas Milícias e garante "a paz" nas favelas ao mesmo tempo em que pratica a extorsão livremente.
A mídia (representada por um programa de TV tipo Datena) adora isso e fatura em cima. O governador, que quer se reeleger, acha ótimo.
E assim vamos.
Mas Nascimento se mantém intacto e puro.
A pureza contra a política?
Bem, aí entra o outro filme que me veio à cabeça: "Arquitetura da Destruição".
Esse magnífico ensaio sustenta que Hitler não aspirava senão a criar um mundo de beleza, livre de impurezas como retardados mentais, ciganos e, claro, judeus.
Acho que isso pode ser um paradigma: o caminho do excesso, no caso, não leva à sabedoria, como dizia William Blake.
Leva ao desatino.
Então, penso, todo esse excessivo combate à instituição política que vemos em "Tropa" leva a quê?
Terror em Paulínia
Não sei dizer, com franqueza, se o que me assusta é o filme ou uma parte da população brasileira.
Essa parte que, na sessão em Paulínia, aplaudia em cena aberta no momento de um brutal espancamento.
Talvez o filme esteja certo e nossa política seja mesmo uma porcaria.
Mas eu me pergunto se vivemos num país de imaculada pureza dominado por um núcleo de desviantes corruptos ou coisa parecida.
O Congresso Nacional, por onde o filme passeia a horas tantas, não seria então representativo do que é o Brasil, do que somos nós?
Somos todos bons e os políticos são ruins? É isso, então? A idéia é consoladora, é verdade, mas é uma pena que não seja muito realista.
O filme sustenta, talvez com razão, que levará muitos anos para solucionarmos problemas como a corrupção, porque não é corrupção de uma pessoa, mas de um "o sistema".
O que é "o sistema"?
A idéia de impunidade está vinculada a ele, claro.
O cara que tem a arma na mão pode fazer o que quiser.
Ele é o começo e o fim das coisas.
Na verdade, não existe nenhuma diferença ontológica entre o Bope e os tiras corruptos das Milícias.
São duas faces da mesmíssima moeda. Ambos dispõem de um poder absoluto.
(Os políticos ficam, quase naturalmente, por trás de ambos, se equilibrando: o negócio deles são os votos.)
O fato de o Bope representar "o bem", "a pureza", não altera nada. Nunca se ouviu dizer que Stalin era desonesto (e tal seria: se dissesse alguma coisa, era eliminado no ato), mas fez o que fez e a coisa deu no que deu.
Nascimento é direito? Puro e duro? E daí? E se, com as armas e a corporação que tem na mão, ele não for direito?
Quem diz que o Bope é essa ilha de perfeição e pureza que o filme sustenta ser?
Isso não será apenas uma outra ficção?
Pela "Tropa"
Isso pode parecer que estou contra o filme, o que não é bem verdade.
Filmes como ele me parecem necessários por vários motivos, inclusive por olhar coisas que o filme brasileiro não costuma olhar, por um ângulo que costuma evitar.
Com isso, e com a ambiguidade que caracteriza, de maneiras diferentes, os dois filmes, algumas questões podem ser colocadas.
A primeira, mais urgente, é a da herança da tortura, ou seja do desmando do aparelho repressivo durante a ditadura.
O Brasil paga caro por isso em matéria moral.
Todo mundo fica em cima do cara que rouba umas galinhas, como se fosse o fim do mundo. Tudo bem. Não é certo.
Mas a carnificina que houve por aqui, a tortura, tudo isso é como se não tivesse existido.
Enquanto o Brasil não acertar contas com essa história (a Argentina fez, até o Chile fez) acho difícil derrotar "o sistema".
Enquanto não acertar as contas com Canudos, não compreenderá a si mesmo e os seus.
Fundamentalismo
Só para terminar: o culto ao Bope e ao capitão Nascimento pode servir muito bem para catarse.
Mas não resolve nossos problemas.
Acho que foi o Simão, que vê tudo antes, quem falou que já estamos numa república em que os dirigentes são civis, mas obedecem aos religiosos.
Então,vamos parar de falar mal do Irã, de Israel.
A gente está igual.
Essa história em torno de aborto é vergonhosa. Até Portugal, que é aquela coisa atrasada, já aceita. Até a Itália, com o Papa plantado lá dentro.
Só o Brasil... Bem, a catolicidade não se incomoda com a carnificina anual de mulheres (pobres, naturalmente) que fazem aborto e morrem ou sofrem problemas seríssimos.
A catolicidade (e acho que uma parte dos evangélicos também) se incomodam com os fetos, com os "puros" (com aqueles que certos padres e bispois tentarão transar, dali a uns anos, poderiam acrescentar).
Não acredito, francamente, que Dilma Rousseff deixou de ganhar no primeiro turno por conta disso. Mas o fato de estar no debate, como está, beira o assombroso.
Para resumir: há muitas coisas que, querendo ou não, "Tropa 2" tem a nos dizer. Não sei se o público quererá escutar.
Por Inácio Araujo às 13h36
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